Poderíamos
começar por dizer que Wagner Willian apresenta aqui uma narrativa
aparentemente mais domesticada do que aquela de Bulldogma.
Até mesmo em termos do género em que se inscreveria, O
maestro, o cuco e a lenda seria
colocado nesse tão vasto território da “aventura de fantasia para
a infância e juventude”. Afinal de contas, uma narrativa que nos
revela um protagonista a regressar a um local da infância, e que,
desviando-se para o bosque atrás da casa e graças a um acidente cai
numa realidade extraordinária, permitindo-lhe descobrir toda uma
vívida galeria de personagens, aproximá-la-ia, elemento por
elemento, tropo
por tropo,
de um rol de títulos clássicos, desde Alice
no país das maravilhas
e O
feiticeiro de Oz
a As
crónicas de Nárnia e
Labyrinth. (Mais)
Os
géneros existem para melhor cartografarmos as interpretações e
para gerir as nossas expectativas e surpresas nesse mesmo percurso, e
têm de ser compreendidas como categorias fortemente codificadas e
historicamente determinadas, mas jamais como contentores inflexíveis.
A pertença cabal a um determinado género deve operar-se quer a
nível semântico quer a nível sintático, isto é, quer no que diz
respeito aos elementos icónicos, temáticos, mais objectuais e
visíveis (tipo de personagens, de espaços, de objectos empregues,
etc.), quer no que diz respeito à forma como se organizam as partes
narrativas, as estruturas actanciais. Pense-se, por exemplo, como
Star
Wars I
está muito próximo do western
em termos de estrutura mas não de assunto: é um exemplo máximo de
correspondência sintática, mas não semântica. O livro de Willian
inscrever-se-ia naquele território ou género indicado acima a nível
semântico, mas não sintático.
O
maestro, o cuco e a lenda
não nos mostra tão-simplesmente o protagonista, sem nome, a visitar
locais maravilhosos com as suas criaturas fantasiosas. A narrativa
inicia com o protagonista na idade adulta, um técnico de bruitage
e captação de som para o cinema, regressando à casa no interior do
Brasil, onde crescera educado pelo avô, um famoso maestro de música
erudita. Uma pequena deambulação pelos locais onde brincara anos
antes leva a que caia por acidente no interior do bosque e, num passe
de prestidigitação típico da banda desenhada, é transformado no
seu próprio eu infantil, permitindo-lhe recuperar algumas das
aventuras, companheirismo mas também penetrar mais ainda fundo no
bosque das suas memórias antigas. Mas essas memórias não são
todas brilhantes ou apascentáveis. É como se se tratasse de uma
viagem até ao fim da noite pelos recônditos dessa mesma memória,
recordando, a um só tempo, dois trabalhos de Neil Gaiman: a
narrativa interna ao arco de A
Game of You,
no qual Barbie revisitava o seu mundo de fantasia (desenhado por
Shawn McManus, e que também incluía um tratamento do tema do cuco)
e Mr.
Punch
(com Dave McKean), na qual também a memória de infância é
tematizada.
No
livro de Willian, porém, e é aqui que aquela domesticação a que
nos referimos no início é apenas aparente, não há qualquer
subsunção dessa viagem pela memória a uma intriga ulterior, onde
se encerraria um segredo
ou um mistério
que, revelado no fim, resolveria uma crise no coração do
protagonista. Quer dizer, existe um segredo, de facto, que se espelha
na dimensão da lenda
que o título promete desde logo, mas ela dirá antes respeito ao
avô, isto é, o maestro,
do que ao protagonista propriamente dito. E apesar de se propor uma
resolução, ela tem um peso ambivalente em relação à porção
principal do livro. É mesmo difícil poder dizer-se que este livro
se pode reduzir a uma intriga. E é aí que se compreendem as
afinidades potentes com Bulldogma.
Este
livro tem uma estrutura paradoxal, uma espécie de armadilha que nos
apresenta elementos aparentemente familiares que nos prendem a
interpretações mais latas e até desterritorializadas. Em termos de
organização do espaço e acção, é uma narrativa particularmente
linear, de um percurso da personagem principal através de um
tradicional topos
mágico: o bosque, a floresta, o reino do maravilhoso. Mas esse
percurso é constantemente interrompido com espaços menores,
pequenos palcos que permitem que cada um dos episódios tenha lugar,
literalmente, os quais se articulam entre si de formas livres: o
interior oco do tronco, o jardim das estátuas, o topo da montanha, a
casa da Dona Rita, o rio, etc. Cada um desses espaços apresenta a
sua própria figura tutelar, uma personagem que funciona como
guardião desse pequeno território e da memória particular que ele
represente, encerra e deve libertar. Em termos do tempo, há algo
complexo igualmente. Por um lado, do ponto de vista da acção
diegética em si, é como se houvesse uma coincidência entre o tempo
da leitura (quase) real e o tempo que o protagonista demora a
atravessar este bosque de sonho, traduzível em umas horas. Mas por
outro, cada um daqueles episódios estará a revisitar recônditos
daquela memória de uma forma mais rizomática, sem uma causalidade
temporal, mas antes através de intensidades emocionais e uma
distribuição que reforça a passível intriga narrativa.
O
livro ultrapassa também a sua putativa inscrição genérica por
permitir, em vários momentos, que a revisitação do que parecem ser
memórias pessoais se entrose em memórias mais vastas, culturais,
históricas, nacionais, anímicas. Toda e qualquer memória
individual é desde logo interseccionada com a memória colectiva,
sem dúvida. Mas nas mãos de uma menor auto-responsabilização,
essa consciência pode nem sempre vir à tona. Willian não está
interessado em transformar a história desta personagem num palco no
qual se digladiariam questões da memória nacional, mas abre fendas
na primeira que dão azo
a que as segundas se lhe atravessem pelo caminho. A questão mais
marcante e que atravessa todo o livro está na origem da produção
de café do avô, alimentando o mito (também no sentido barthesiano
deste termo) da construção da riqueza e independência do Brasil,
colocando a força do trabalho escravo/negro num papel para sempre
subalterno. Ora, há toda uma série de figurações e intervenções
textuais – todo o livro é comandado pela voz na primeira pessoa do
protagonista, gerindo a relação do seu eu contemporâneo com o
passado revisitado e simbolizado pelos espaços e criaturas com que
se depara no seu passeio mágico – que tentam recuperar a figura do
escravo, intentando uma correcção histórica. Não há momento em
que essa realidade tome a dianteira da representação geral do
livro, estando sempre
em relação
ao protagonista, mas por vezes surge com um ímpeto significativo,
como ocorre no spread
em que o jovem menino observa a procissão de um contingente de
escravos. As imagens bebem de todo um arquivo nacional do sofrimento
desses seres humanos transformados em mercadorias e bestas de carga,
mas a impotência é tornada visível também no momento de falhanço
de contacto. Em parte, a estratégia do cuco em ocupar os ninhos dos
outros está presente no uso desta mão-de-obra pelos fazendeiros e
todo o comércio euro-americano. Se não é redimido de forma alguma
neste livro, nem explorado de forma mais politizada (como ocorre na
obra de Marcelo D'Salete, por exemplo) a sua presença demonstra a
vinda à superfície dela mesma às condições do presente.
O
autor, portanto, utiliza os instrumentos em seu poder para,
transformando este livro de aparente fantasia naquilo que o
historiador Y. H. Yerushalmi
chamou de “veículos de memória”, criar um pé-de-cabra: se a
memória é uma maneira de darmos (ou construirmos) um sentido do
passado, essa mesma “representação do passado”, como escreveu
Alon Confino, pode “tornar-se num conhecimento partilhado
culturalmente.”
A
esmagadora maioria dos fantasmas são “privados”: a relação com
Kuane, filha do caseiro e “cafuza” (termo empregue para filhos de
negros africanos e ameríndios), e a origem da sua perda de olho
(somente naquela dimensão “mágica”); os três amigos e o
afogamento de um deles; o pianista-cuco que o obriga a queimar os
vários brinquedos da infância como óbulo do tempo a avançar; os
vários animais e objectos que cartografam o percurso... Não será
de todo fácil “resolver” o enigma de como coalescer todos eles
numa só história coesa e elementar, mas de resto, não é assim que
a nossa memória é composta? Mais de fragmentos soltos cujas
ligações são difusas e esquecidas do que propriamente uma fluidez
totalitária? E é nessa inquirição – aqui permitida pelo
mergulho mágico em regressar à infância, mesmo que não para
actuar mas atravessar somente – que se abrem espaço para mais
questões, as quais, se não levam a respostas definitivas, pelo
menos permitem afinar melhores perguntas.
Desenhado
inteiramente em ambiente digital, não deixa de ser possível
compreender a variedade material, ou melhor, dos “efeitos
aparentes” permitidos por essa tecnologia, mas que o autor emprega
para funções representacionais e emotivas distintas. Há momentos
em que nos parece um trabalho sólido de linha, e noutros casos onde
a acção do (virtual) pincel toma a dianteira, ou até abordagens
próximas do pastel ou do uso do dedo sobre tinta para criar borrões
mais dinâmicos e expressivos. Essa flutuação de registos é
notável igualmente na figuração. Se começamos de formas sóbrias
e anatómicas completas, rapidamente chegamos a uma dinâmica mais
fugidia, de esboço ou sketch,
próximas de um Bastien Vivès, ou de contornos fluidos e vazios de
cinzentos à la Blutch (claro, usos de chibi
não são incomuns). A própria composição de páginas explora
várias estratégias, conforme a acção, a emoção ou gestão da
compreensão dos factos narrativos: pranchas classicamente
ortogónicas, outras totalmente oblíquas e desequilibradas, outras
respirando o largo espaço atravessado pelo jovem protagonista, sejam
os campos brilhantes de milho ou o nocturno e pesado trilho dos
escravos negros.
E
há pormenores magníficos. Um tronco oco a quebrar-se graças à
força exercida pelo leitor ao virar da página, o constante uso das
onomatopeias em “logotectura” de um Eisner, que torna leve e
cómica a fluidez da narrativa, a candura de como a natureza é
representada, como se tivesse um brilho por dentro (comum exímio uso
de cinzentos), o mapeamento de referências, que criará uma patina
de nostalgia junto a uma parte significativa dos seus leitores
internacionais, já para não falar do inventivo rol de personagens
dignas de um Miyazaki (que tem um subtil cameo
na história)
Em
200 pranchas de banda desenhada, Wagner Willian demonstra neste
volume as várias possibilidades de construir uma página adequada às
acções representadas. Muitas delas obrigam não apenas à leitura
dessas mesma acções – um mero compromisso da parte do leitor em
perceber “o que se passa” - mas à própria interpretação
conceptual e estrutural delas mesmas – compreender “como se
passa”, “como são expressas”. Por outras palavras, várias
maneiras de “afinar melhores perguntas” à memória.
Os
leitores são convidados a entrar fundo neste bosque. Mas as
respostas que obterão não serão nem pacíficas nem homogéneas.
Tanto melhor.
Nota
final: agradecimentos ao autor, pelo envio da versão brasileira. A
edição portuguesa da Polvo, no momento da escrita deste artigo, não
foi ainda lançada. Existindo já uma edição em língua francesa
(Casterman), queremos acreditar que existirão outras traduções no
futuro. Indicamos ainda que o autor estará presente no Festival
Internacional de Banda Desenhada em Beja, muito em breve.
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