13 de maio de 2018

O maestro, o cuco e a lenda. Wagner Willian (Texugo/Polvo)


Poderíamos começar por dizer que Wagner Willian apresenta aqui uma narrativa aparentemente mais domesticada do que aquela de Bulldogma. Até mesmo em termos do género em que se inscreveria, O maestro, o cuco e a lenda seria colocado nesse tão vasto território da “aventura de fantasia para a infância e juventude”. Afinal de contas, uma narrativa que nos revela um protagonista a regressar a um local da infância, e que, desviando-se para o bosque atrás da casa e graças a um acidente cai numa realidade extraordinária, permitindo-lhe descobrir toda uma vívida galeria de personagens, aproximá-la-ia, elemento por elemento, tropo por tropo, de um rol de títulos clássicos, desde Alice no país das maravilhas e O feiticeiro de Oz a As crónicas de Nárnia e Labyrinth. (Mais) 

Os géneros existem para melhor cartografarmos as interpretações e para gerir as nossas expectativas e surpresas nesse mesmo percurso, e têm de ser compreendidas como categorias fortemente codificadas e historicamente determinadas, mas jamais como contentores inflexíveis. A pertença cabal a um determinado género deve operar-se quer a nível semântico quer a nível sintático, isto é, quer no que diz respeito aos elementos icónicos, temáticos, mais objectuais e visíveis (tipo de personagens, de espaços, de objectos empregues, etc.), quer no que diz respeito à forma como se organizam as partes narrativas, as estruturas actanciais. Pense-se, por exemplo, como Star Wars I está muito próximo do western em termos de estrutura mas não de assunto: é um exemplo máximo de correspondência sintática, mas não semântica. O livro de Willian inscrever-se-ia naquele território ou género indicado acima a nível semântico, mas não sintático.

O maestro, o cuco e a lenda não nos mostra tão-simplesmente o protagonista, sem nome, a visitar locais maravilhosos com as suas criaturas fantasiosas. A narrativa inicia com o protagonista na idade adulta, um técnico de bruitage e captação de som para o cinema, regressando à casa no interior do Brasil, onde crescera educado pelo avô, um famoso maestro de música erudita. Uma pequena deambulação pelos locais onde brincara anos antes leva a que caia por acidente no interior do bosque e, num passe de prestidigitação típico da banda desenhada, é transformado no seu próprio eu infantil, permitindo-lhe recuperar algumas das aventuras, companheirismo mas também penetrar mais ainda fundo no bosque das suas memórias antigas. Mas essas memórias não são todas brilhantes ou apascentáveis. É como se se tratasse de uma viagem até ao fim da noite pelos recônditos dessa mesma memória, recordando, a um só tempo, dois trabalhos de Neil Gaiman: a narrativa interna ao arco de A Game of You, no qual Barbie revisitava o seu mundo de fantasia (desenhado por Shawn McManus, e que também incluía um tratamento do tema do cuco) e Mr. Punch (com Dave McKean), na qual também a memória de infância é tematizada.

No livro de Willian, porém, e é aqui que aquela domesticação a que nos referimos no início é apenas aparente, não há qualquer subsunção dessa viagem pela memória a uma intriga ulterior, onde se encerraria um segredo ou um mistério que, revelado no fim, resolveria uma crise no coração do protagonista. Quer dizer, existe um segredo, de facto, que se espelha na dimensão da lenda que o título promete desde logo, mas ela dirá antes respeito ao avô, isto é, o maestro, do que ao protagonista propriamente dito. E apesar de se propor uma resolução, ela tem um peso ambivalente em relação à porção principal do livro. É mesmo difícil poder dizer-se que este livro se pode reduzir a uma intriga. E é aí que se compreendem as afinidades potentes com Bulldogma.


Este livro tem uma estrutura paradoxal, uma espécie de armadilha que nos apresenta elementos aparentemente familiares que nos prendem a interpretações mais latas e até desterritorializadas. Em termos de organização do espaço e acção, é uma narrativa particularmente linear, de um percurso da personagem principal através de um tradicional topos mágico: o bosque, a floresta, o reino do maravilhoso. Mas esse percurso é constantemente interrompido com espaços menores, pequenos palcos que permitem que cada um dos episódios tenha lugar, literalmente, os quais se articulam entre si de formas livres: o interior oco do tronco, o jardim das estátuas, o topo da montanha, a casa da Dona Rita, o rio, etc. Cada um desses espaços apresenta a sua própria figura tutelar, uma personagem que funciona como guardião desse pequeno território e da memória particular que ele represente, encerra e deve libertar. Em termos do tempo, há algo complexo igualmente. Por um lado, do ponto de vista da acção diegética em si, é como se houvesse uma coincidência entre o tempo da leitura (quase) real e o tempo que o protagonista demora a atravessar este bosque de sonho, traduzível em umas horas. Mas por outro, cada um daqueles episódios estará a revisitar recônditos daquela memória de uma forma mais rizomática, sem uma causalidade temporal, mas antes através de intensidades emocionais e uma distribuição que reforça a passível intriga narrativa.


O livro ultrapassa também a sua putativa inscrição genérica por permitir, em vários momentos, que a revisitação do que parecem ser memórias pessoais se entrose em memórias mais vastas, culturais, históricas, nacionais, anímicas. Toda e qualquer memória individual é desde logo interseccionada com a memória colectiva, sem dúvida. Mas nas mãos de uma menor auto-responsabilização, essa consciência pode nem sempre vir à tona. Willian não está interessado em transformar a história desta personagem num palco no qual se digladiariam questões da memória nacional, mas abre fendas na primeira que dão azo a que as segundas se lhe atravessem pelo caminho. A questão mais marcante e que atravessa todo o livro está na origem da produção de café do avô, alimentando o mito (também no sentido barthesiano deste termo) da construção da riqueza e independência do Brasil, colocando a força do trabalho escravo/negro num papel para sempre subalterno. Ora, há toda uma série de figurações e intervenções textuais – todo o livro é comandado pela voz na primeira pessoa do protagonista, gerindo a relação do seu eu contemporâneo com o passado revisitado e simbolizado pelos espaços e criaturas com que se depara no seu passeio mágico – que tentam recuperar a figura do escravo, intentando uma correcção histórica. Não há momento em que essa realidade tome a dianteira da representação geral do livro, estando sempre em relação ao protagonista, mas por vezes surge com um ímpeto significativo, como ocorre no spread em que o jovem menino observa a procissão de um contingente de escravos. As imagens bebem de todo um arquivo nacional do sofrimento desses seres humanos transformados em mercadorias e bestas de carga, mas a impotência é tornada visível também no momento de falhanço de contacto. Em parte, a estratégia do cuco em ocupar os ninhos dos outros está presente no uso desta mão-de-obra pelos fazendeiros e todo o comércio euro-americano. Se não é redimido de forma alguma neste livro, nem explorado de forma mais politizada (como ocorre na obra de Marcelo D'Salete, por exemplo) a sua presença demonstra a vinda à superfície dela mesma às condições do presente.

O autor, portanto, utiliza os instrumentos em seu poder para, transformando este livro de aparente fantasia naquilo que o historiador Y. H. Yerushalmi chamou de “veículos de memória”, criar um pé-de-cabra: se a memória é uma maneira de darmos (ou construirmos) um sentido do passado, essa mesma “representação do passado”, como escreveu Alon Confino, pode “tornar-se num conhecimento partilhado culturalmente.”

A esmagadora maioria dos fantasmas são “privados”: a relação com Kuane, filha do caseiro e “cafuza” (termo empregue para filhos de negros africanos e ameríndios), e a origem da sua perda de olho (somente naquela dimensão “mágica”); os três amigos e o afogamento de um deles; o pianista-cuco que o obriga a queimar os vários brinquedos da infância como óbulo do tempo a avançar; os vários animais e objectos que cartografam o percurso... Não será de todo fácil “resolver” o enigma de como coalescer todos eles numa só história coesa e elementar, mas de resto, não é assim que a nossa memória é composta? Mais de fragmentos soltos cujas ligações são difusas e esquecidas do que propriamente uma fluidez totalitária? E é nessa inquirição – aqui permitida pelo mergulho mágico em regressar à infância, mesmo que não para actuar mas atravessar somente – que se abrem espaço para mais questões, as quais, se não levam a respostas definitivas, pelo menos permitem afinar melhores perguntas.

Desenhado inteiramente em ambiente digital, não deixa de ser possível compreender a variedade material, ou melhor, dos “efeitos aparentes” permitidos por essa tecnologia, mas que o autor emprega para funções representacionais e emotivas distintas. Há momentos em que nos parece um trabalho sólido de linha, e noutros casos onde a acção do (virtual) pincel toma a dianteira, ou até abordagens próximas do pastel ou do uso do dedo sobre tinta para criar borrões mais dinâmicos e expressivos. Essa flutuação de registos é notável igualmente na figuração. Se começamos de formas sóbrias e anatómicas completas, rapidamente chegamos a uma dinâmica mais fugidia, de esboço ou sketch, próximas de um Bastien Vivès, ou de contornos fluidos e vazios de cinzentos à la Blutch (claro, usos de chibi não são incomuns). A própria composição de páginas explora várias estratégias, conforme a acção, a emoção ou gestão da compreensão dos factos narrativos: pranchas classicamente ortogónicas, outras totalmente oblíquas e desequilibradas, outras respirando o largo espaço atravessado pelo jovem protagonista, sejam os campos brilhantes de milho ou o nocturno e pesado trilho dos escravos negros.


E há pormenores magníficos. Um tronco oco a quebrar-se graças à força exercida pelo leitor ao virar da página, o constante uso das onomatopeias em “logotectura” de um Eisner, que torna leve e cómica a fluidez da narrativa, a candura de como a natureza é representada, como se tivesse um brilho por dentro (comum exímio uso de cinzentos), o mapeamento de referências, que criará uma patina de nostalgia junto a uma parte significativa dos seus leitores internacionais, já para não falar do inventivo rol de personagens dignas de um Miyazaki (que tem um subtil cameo na história)

Em 200 pranchas de banda desenhada, Wagner Willian demonstra neste volume as várias possibilidades de construir uma página adequada às acções representadas. Muitas delas obrigam não apenas à leitura dessas mesma acções – um mero compromisso da parte do leitor em perceber “o que se passa” - mas à própria interpretação conceptual e estrutural delas mesmas – compreender “como se passa”, “como são expressas”. Por outras palavras, várias maneiras de “afinar melhores perguntas” à memória.

Os leitores são convidados a entrar fundo neste bosque. Mas as respostas que obterão não serão nem pacíficas nem homogéneas. Tanto melhor.
Nota final: agradecimentos ao autor, pelo envio da versão brasileira. A edição portuguesa da Polvo, no momento da escrita deste artigo, não foi ainda lançada. Existindo já uma edição em língua francesa (Casterman), queremos acreditar que existirão outras traduções no futuro. Indicamos ainda que o autor estará presente no Festival Internacional de Banda Desenhada em Beja, muito em breve.

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