Perguntamo-nos
se a publicação deste livro se deve a uma atenção para com a obra
deste autor particularmente central na produção de livros cuja
natureza se encontra nos interstícios e experimentação conjunta de
várias disciplinas, que havia sido publicado em 2011, ou se terá
antes a ver com uma esperança de que a sua versão cinematográfica,
realizada por Todd Haynes e em exibição em Portugal este mesmo ano,
possa suscitar interesse junto aos potenciais leitores. A resposta é,
naturalmente, óbvia, até pela capa do livro (veja-se uma nota
final), mas pelo menos isso torna-se garante da sua circulação
entre o público português. (Mais)
Como é a
assinatura de Selznick, este livro apresenta-se sob duas formas
concorrenciais, no pleno sentido da palavra: a imagem e o texto.
Todavia, ao contrário de Hugo Cabret (o qual seria também
adaptado por Scorsese), os textos e imagens não estão aqui (apenas,
ou sempre) numa relação complementar mas apartadas até determinado
ponto. Logo, se havíamos discutido que o livro anterior não se
tratava de “literatura ilustrada”, essa natureza é ainda mais
longínqua neste título. Contudo, mantêm-se muitos dos seus
ingredientes conhecidos: personagens jovens, independentes e
isolando-se numa aventura no interior de um vasto mundo, lançando
relações complexas comas cronologias dos seus coadjuvantes, e
envolvendo espaços que encerram outros espaços, interiores,
fechados e, por isso mesmo, contendo segredos que depois revelam a
sua importância no mundo maior da narrativa.
Wonderstruck
conta duas histórias separadas. Temos a história de Rose Kincaid,
uma menina que vive do outro lado das margens de Manhattan e sonha
com ir visitar, se não mesmo visitar a cidade de Nova Iorque, por
razões de um complexo novelo familiar. Esta narrativa tem lugar em
1927 e é contada somente através das imagens, como é típico do
autor, sob a forma de desenho debuxados a grafite, monocromáticos,
suaves e por vezes intrincados, num belíssimo trabalho de tramas, e
ocupando spreads a sangrar. A segunda história, que na
verdade é a que enquadra o livro, é a de Ben Wilson, passada em
1977. Ben é do Minnesotta, e também ele é levado numa viagem a
Nova Iorque, espoletada por um complexo novelo familiar. Esta
narrativa surge somente (com a excepção de uma imagem de lobos correndo, que corresponde à vida interior do rapaz) sob a forma de texto.
Compreenderão
desde já os leitores que este “complexo novel familiar” enredará
ambas as personagens num encontro, mesmo que não revelemos aqui como
é que ambas as histórias se vêem a encaixar. Tudo isto de um modo
paradoxalmente simples ou suave. Ambas as personagens são movidas
por uma ânsia em encontrarem um espaço liberto das limitações que
se lhes impõem, assim como uma busca pelo amor das figuras
parentais, as quais assumem papéis variados, desde o afastado ao
mítico, ao protector e doloroso. Todavia, o autor cria uma estrutura
de paralelismos e modos especulares que os unem ao longo de ambas as
narrativas, e não apenas nesses enquadramentos emocionais. Tanto
Rose como Ben, ainda que de maneiras diferentes e por razões
distintas, são surdos, e toda essa experiência humana e até mesmo
a cultura que lhe está associada – isto é, não apenas formas de
apreensão do mundo que são diferentes daquelas usualmente empregues
na cultura hegemónica e normalizada, sublinhando a descriminação
quase inconsciente do capacitismo/ableism, como também as
produções de comunicação e expressão próprias – torna-se um
tema explorado com cuidado nas narrativas.
Os
paralelismos são criados pelas acções de ambas as personagens, em
que uma explicação textual do que Ben faz se espelha na acção
cumprida por Rose nos desenhos, ou uma realidade do primeiro tem um
contraponto ideal na da segunda. Quando Ben fica preso na cabana onde
vivera com a mãe, devido a uma tempestade, Rose está a ver um filme
“mudo” (o autor sublinha como esse tipo de cinema permitia uma
comunidade entre os surdos e os não-surdos, que o advento do som no
cinema apartaria) onde decorre uma tempestade. Essa tempestade,
depois real na linha temporal de Rose, é “unificada” com a de
Ben pelas consequências que têm sobre ambas as personagens. Quando
Ben, já em Nova Iorque, é violenta e subitamente assaltado, também
Rose sofre um outro tipo de assalto, quiçá mais doloroso. Ambas as
personagens visitam o Museu Americano de História Natural ao “mesmo
tempo” na matéria folheada no livro, ainda que separados por
décadas na cronologia real. Este Museu assumirá um papel
preponderante na vida de ambos, em termos de imaginário, nas vidas
profissionais, e até mesmo enquanto móbil das acções e estímulo
ao seu encontro. A descoberta dos “segredos” do Museu e da razão
do “livro dentro do livro”, um catálogo/guia de uma exposição
sobre gabinetes de curiosidades precisamente intitulado Wonderstruck,
é o nódulo da aliança que se forma acronologicamente entre Ben e
Rose e, depois, já no interior do fluxo usual do tempo.
Mais
ainda, todas as disciplinas, objectos ou “capítulos do saber”
que o museu apresenta – meteoritos, dioramas de lobos, colecções
de minerais e ossos, modelos miniaturizados de cidades inteiras, os
planetários, a própria história do desenvolvimento do conceito de
museu, etc. - constituem pequenos nós de mise en abîme dos
elementos constituintes das vidas dos dois personagens. Wonderstruck
exige, então, uma leitura dupla, aquela em busca da(s) narrativa(s)
central(is) e sua costura, e aqueloutra em permanente identificação
dos temas que despede e o faz expandir no eu campo de significado.
O livro é
dividido em três partes, sendo a terceira aquela em que se unem as
linhas múltiplas dos dois protagonistas. As histórias, nas outras
duas partes, estão separadas entre a matéria textual e visual, se
bem que neste caso presente, a história de Rose esteja pejada de
informações transmitidas textualmente e que devem ser lidas para a
sua compreensão: recados e notas e postais escritos, legendas de
cinema, títulos de jornais e revistas, letreiros e sinais, pelo que
não se pode considerar que estejamos perante “partes” de
“imagens sem texto”, demonstrando assim como a colonização do
verbal sobre o visual é bem mais naturalizada do que se desejaria.
Tendo em
conta, todavia, que a comunicação escrita, a curiosidade
intelectual e cultural, são factor principal das acções das buscas
respectivas de Ben e Rose e, também, do seu encontro feliz, o seu
papel é salvífico. E enquanto livro dedicado a um público mais
jovem, o modo como constrói inteligentemente e com respeito as
personagens, revelando as suas vontades, anseios e desejos próprios
mesmo quando em conflito ou negociação entre si, é um contributo
inestimável para a compreensão da natureza humana.
Nota sobre
a capa: na esmagadora maioria dos projectos das editoras comerciais,
o design das capas de livros não prima pela qualidade,
inventabilidade ou bom gosto, preferindo-se efeitos totalmente de
superficie. A subsunção de certos romances às capas fotográficas
ou, quando há essa possibilidade, às cinematográficas é uma
fraqueza, mas que no limite tem a sua justificação pelo domínio
comercial da atracção e publicidade gerida pelas versões de
cinema. Certíssimo. Mas num projecto em que é a dimensão
visual o âmago da sua importância, é quase inadmissível que se
apresente um capa que cita o filme e não se procure uma elegância
em torno dessa mesma matéria, usando as capas intensamente buriladas
do autor.
Nota sobre
a tradução: Não tendo algo de especial a dizer sobre a tradução
em si, perfeitamente vertida, fica a surpresa de algumas decisões a
nível editorial, muito em voga em certos sectores (e nalguns dos
quais nós próprios nos envolvemos profissionalmente), de manter no
idioma original certas passagens, expressões, ou até mesmo, no caso
presente o título. Isto ocorre sobretudo como inglês, já que
duvidamos que o mesmo ocorresse se o texto fosse traduzido do polaco,
do mandarim ou do italiano. Neste livro, a letra da canção citada
de David Bowie mantém-se em inglês no texto corrido, assim como um
sem-número de material textual de alguns desenhos. No segundo caso,
compreende-se a dificuldade que seria gerir o re-desenho das capas de
jornais ou dos cartazes de cinema, mas não se percebe qual o
problema em traduzir a canção. Afinal de contas, traduz-se poesia,
ela pede para ser traduzida, como escreve Walter Benjamin. O mesmo se
diria do título. Temos um sub-título que, timidamente, tenta ocupar
esse espaço, mas em toda a estratégia visual, comunicacional e
mesmo textual, é o termo em inglês que sobressai. Haverá assim
limitações na aceitabilidade da imaginação em português? É uma
questão de soar melhor” em inglês, é mais cool? É uma
escolha comercial, para haver coincidência com o filme? Qualquer que
seja a resposta, é uma perda para o nosso próprio vocabulário. A
opção brasileira de o publicar como Sem fôlego é
discutível, mas é no idioma dos leitores.
Nota
final: agradecimentos à editora, pela oferta do livro.
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