10 de maio de 2018

Bartoon 25 anos. Luís Afonso (Arranha-Céus/Público)

Este pequeno volume celebra os 25 anos da tira Bartoon, de Luís Afonso, de uma forma curiosa. Convidando 25 personalidades, dos mais diversos papéis sociais (responsáveis por organismos públicos, académicos, artistas, desportistas, pessoas dos meios de comunicação social, e colegas do autor), a escolherem um conjunto de tiras que denotem as suas escolhas pessoas e algumas dimensões personalizadas desta obra, o leitor terá tanto acesso à própria obra como a estes 25 olhares distintos sobre ela. Acompanhadas essas selecções por breves parágrafos desses ilustres, vai-se desvendando também uma pequena mas personalizada teoria da recepção, significativa para melhor apreciar a tira. (Mais)

Não vivemos num país em que pululem em quantidade as tiras diárias de banda desenhada de comentário social a reflectir, em tempo real, essa mesma realidade social (nem tampouco temos em quantidade tiras de banda desenhada, diárias ou outras, jornais suficientes, e outros problemas, mas enfim). Por isso, o papel de Bartoon acaba por ganhar um peso particularmente distintivo nessa paisagem, e até mesmo uma certa responsabilidade. Luís Afonso, porém, tem vários elementos que comanda, com aparente facilidade (aparente, pois o que lhe subjaz é uma ética de atenção, inteligência e trabalho, disfarçadas pela fortuna dos resultados), destacando-se as suas armas gráficas e o “ouvido” para o diálogo, numa capacidade de síntese e eficácia.


Aquilo que nos surpreende, talvez, neste gesto de balanço, e que as guardas do livro ajudam a explicitar, é a autêntica galeria imensa de personagens, clientes, que passaram e ainda passam pelo Bartoon. Algumas surgem tão-somente por uma razão mecânica provocada pelos acontecimentos, sustentados ou breves (um Sim e um Não, um homem pré-histórico gravador em Foz Côa, um empregado do FMI), ao passo que outros são verdadeiros clientes habituais, e que servem de papel generalizado do cidadão português, interessado em trocar uma ou duas palavrinhas sobre o assunto, seja esse assunto as eleições em curso, a decisão judicial, o cíclico “aperto ao cinto”, o novo desastre ecológico, os acordos internacionais, os conflitos étnicos, o calendário das festas, a controvérsia de ocasião, e até questões de fé.

Esta não é uma tira de continuidade, de um storyworld narrativo, de um posicionamento empedernido para sempre. O próprio barman, tal como muitas das outras personagens com papéis mais difusos, são menos personagens propriamente ditas, do que cifras para ocupar o lugar do assunto do momento.

Comparações possíveis seriam aquelas com outras tiras de banda desenhada regulares que criam uma tessitura narrativa um pouco mais apertada e, a partir dela, criam efeitos de reflexão, mimese e crítica da realidade correspondente, mormente na dimensão política. Encontraremos sobretudo nos Estados Unidos as tradições mais elaboradas e musculadas, que podem, todavia, tomar formas muito díspares entre si. Em termos históricos, teríamos de recuar ao século XIX e o dealbar do século seguinte, encontrando na obra de Thomas Nast o seu expoente máximo, sobretudo no combate que ele fez contra a corrupção de Tammany Hall, ou o Partido Democrático, na governação de Nova Iorque (parte do pano de fundo de Gangues de Nova Iorque). Mas mais próximos desta forma seriam Pogo, de Walt Kelly, e Doonesbury, de Garry Trudeau, a primeira através de uma ménagerie animal a formar metáforas claras, a segunda criando comentários mais mordazes e directos em relação à classe política contemporânea. E ambas criando uma complexa novela das suas próprias personagens.


Em Portugal temos uma história distinta, por razões óbvias. Por um lado, pela dimensão da nossa mediasfera, a qual sempre foi sofrendo vicissitudes de sobrevivência económica, apatia geral e iliteracia do grande público, e uma certa desconsideração generalizada pelas artes do cartoon (com raras mas inteligentíssimas excepções, mesmo no circuito dos políticos, como foram os casos consabidos e públicos de Mário Soares, Jorge Sampaio, Paulo Portas e Guilherme de Oliveira Martins, um dos participantes nesta antologia, apreciadores deste tipo de humor, mesmo quando visados). Por outro, pelas pressões políticas das várias censuras (régias, republicadas, do Estado Novo e, hodiernamente, do mais difuso “poder decisório”). Nos pós-25 de Abril, multiplicaram-se as vozes mas algumas delas já se vinham expressando de antes, não se podendo falar propriamente de uma alteração total. Das circunstâncias e da paisagem política, sim, mas da emergência de novas vozes, talvez menos. Por isso encontraremos talvez em Augusto Cid (Cão Traste) e Sam (Guarda Ricardo) os maiores cultores do território a que Luís Afonso daria continuidade. Também se poderia falar d'O Abutre, de Pedro Massano, mas a circulação desta última obra terá sido, a nosso ver, bem mais limitada e não se ancoraria no imaginário popular da mesma maneira que aqueles outros ícones.

Bartoon ocuparia o espaço deixado pelo Guarda Ricardo no diário Público, e outra afinidade possível com essa tira é a abordagem minimalista do desenho, instrumento necessário se se deseja este ritmo implacável e imperdoável. Todavia, a assinatura gráfica de Afonso é diferente da de Sam, este último lançando tão-somente uma fina linha comprida, como se se tratasse de linhas diáfanas de pesca, Afonso criando uma mais sólida linha, quase escultórica, tanto devedora de uma linha clara como de um design altamente estilizado e iconografia. Existem muitos outros autores do humor constrito e de uma fechada galeria de personagem que se aproximariam, de Max Cannon a Álvaro (Santos), mas o trabalho de Luís Afonso entrosa-se com o tal tecido de todos os dias, tornando-o um corpo mais flexível e preparado para receber dimensões não-planeadas de início. Há algo de zen no seu trabalho, sobretudo se nos recordarmos daquela máxima sobre o bambu, que é forte o suficiente para de vergar antes de quebrar.

Luís Afonso é um criador de situações que apelam menos ao confronto do que ao encontro com as fragilidades e contradições de todos os sentimentos associados ao tecido político hodierno: seja os da vitória e da derrota, a desconfiança ou a esperança, a soberba ou a humildade, a petulância ou a vitimização, não há um sector em relação ao qual o barman não descubra a falha estrutural, a pequena fenda que promete abrir-se e expandir se não for detectada e enfrentada. O seu objectivo não é propriamente tomar um posicionamento claro, nem exibir uma moralidade superior, sequer invectivar e muito menos denegrir. É apenas apontar com uma pergunta e esperar que o leitor pense sobre o assunto. Tomemos um exemplo, quiçá demasiado contrastivo, radical e mal colocado. Vejam-se esta tira sobre as touradas, ainda tristemente continuadas em Portugal, e o cartoon de Charb. Sim, sabemos que o papel e espaço do Público na esfera pública portuguesa (não é de propósito) não é o mesmo que os do Charlie Hedbo, e que toda a tradição da caricatura e cartoon político francês é bem distinta da portuguesa. Não esperamos que Afonso seja tão virulento quanto Charb (nem tampouco quanto Cid ou António Jorge Gonçalves). Não é esse o seu fito. É colocar a pergunta sob a forma de uma tira.


De certa forma, podemos dizer que o barman é, para além de um claríssimo autoretrato do próprio autor, a um só tempo físico e moral, um herdeiro directo da figura-mor do imaginário português, o Zé Povinho. Não no seu fenótipo, talvez, ainda que também nessa dimensão possa ser visto como representante “mediano”, mas na forma como na esmagadora maioria das suas intervenções é menos participante directo ou agente das acções do que seu comentador lateral. Talvez não seja tão “engajado” como se costuma dizer, do que outros possíveis exemplos, mas também não é a posta de pescada atirada pelo taxista a ver se morde. É uma espécie de constatação de um facto, uma estalada zen, para acordar.


Esta é uma colectânea talvez mais eficaz do que uma tentativa de “obras completas”, e sem dúvida mais acerta no que diz respeito ao comércio e circulação. Uma decisão acertada para preservar e celebrar a glória da tira. E ainda conta com uma tira inédita e “secreta”, que foi presente de aniversário ao cantor Sérgio Godinho... Fica apenas a infelicidade de que as tiras do corpo principal não sejam datadas, o que ajudaria à sua navegação e compreensão se se contextualizasse precisamente (ainda que haja comentários, sobretudo de quem trabalhou com responsabilidade sobre a tira no jornal, como Jorge Silva e Henrique Cayatte, que construam parte dessa história), e que a qualidade da reprodução não seja homogénea, se bem que acreditamos que isso se deva à variedade da preservação dos originais e até mesmo a sua factura, tendo havido mudanças profundas nas últimas dias décadas e meia na forma de criar, armazenar, enviar, reproduzir e publicar imagens. Mas sendo este, sem dúvida, apenas o primeiro gesto de muitos outros que se seguirão associadas a esta obra, é de levantar o copo.

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