Há uma
tendência, quase automática e, por isso, irritante e vexante, de
quando certos círculos discutem qualquer acto criativo da parte de
uma mulher, descrevê-lo como contendo “características
femininas”, mas sem jamais as revelar, analisar, explicar e muito
menos compreender o seu papel na articulação do texto total ou,
menos ainda, contextualizá-las no sistema em que emerge. Esse termo
é empregue de maneira fantasmática e mágica, como se o seu emprego
fosse suficientemente explicativo de algo que, no fundo se recusa a
tornar possível. Partindo de uma perspectiva homocêntrica, o que
esse passe de magia cumpre é, no fundo, em primeiro lugar a criação
de uma posição de “tolerância” que permite ao texto “feminino”
a possibilidade de existência e circulação e, sem segundo e mais
permanente lugar, a assunção do próprio sistema hegemónico que se
confere o direito dessa mesma decisão. (Mais)
Afirmamo-lo
porque, no fundo, incorreremos talvez no mesmo problema ao querer
iniciar a leitura de Sem dó através de uma contextualização
de um discurso feminista e, quem sabe, impedindo uma leitura mais
abrangente de outras estruturas interpretativas. Todavia, é-nos
difícil ler a sua intriga sem que vejamos a maneira como se
estrutura enquanto discurso anti-hegemónico, mesmo que de uma forma
subtil e calma.
Aparentemente,
a história apresentada em Sem dó centra-se na intriga de um
caso amoroso entre uma empregada doméstica de São Paulo na década
de 1920, Dolores, ou como é chamada pela sua família, Lola, numa
casa da alta burguesia, e um jovem homem que acabou de chegar à
cidade e a parece conquistar de modo avassalador. Todo o papel social
e profissional de Lola entra em crise com a paixão por este homem.
Falta ao trabalho, mente à família, abraça comportamentos
transgressivos para a época. Porém, os segredos da vida do homem
serão um entrave à felicidade imaginada por Lola, não sem antes se
expressar como obstáculo contra a vontade da sua família, dos seus
empregadores, que não são mais do que reflexos do papel que a
sociedade desejaria que ela cumprisse, enquanto mulher da sua
específica estação social. Da perspectiva de Lola, é a felicidade
que lhe está a ser negada, mesmo que o leitor tenha acesso a muita
mais informação que Lola e se possa aperceber de que o tal homem é
mais ruim do que poderia parecer (o jogo de engano, o modo como evita
mostrar o rosto na fotografia, o anúncio policial, etc.)...
Esta
relação entre o conhecimento do leitor e das personagens é
decisivo no juízo moral que Sem dó constrói, e é aí que
residirá uma parte da tensão que o livro propõe, nada clara. Pois
se, por um lado, se poderia dizer que, munidos de informação,
poderíamos impor um juízo contrário ao de Lola – a de que este
homem não é uma boa escolha para ela, que ela deveria antes
respeitar o contrato social que é expectável, etc. -, por outro, a
narrativa é tecida de maneira a que tenhamos igualmente um acesso
privilegiado à interpretação tintada pelas emoções dos mesmos
eventos por Lola. Compreender que as escolhas de Lola não são tão
abertas quanto as dos homens que a rodeiam é uma constatação de
facto do seu tempo histórico. Imaginar que o homem apenas pretende
um prazer superficial e momentâneo já será da responsabilidade do
leitor ou leitora. Criar laços de empatia com Lola e “ficar do seu
lado” já dependerá de ler o livro na sua íntegra, quer dizer,
não apenas a sua “história” mas toda a sua matéria visual e
estrutural.
Sem dó
é, além dessa novela, uma espécie de retrato ou homenagem
nostálgica da São Paulo dos anos 1920, não apenas por ser esse o
“cenário” da acção, como da pesquisa visual que a autora
proporciona ao longo das páginas e à qual retornaremos avante. Mas
esse retrato serve para tematizar as desigualdadade de género
vigente então (que podem ou não ser distintas daquelas verificadas
nos dias de hoje, servindo então de estímulo a essa mesma
interrogação do nosso tempo e organização social) e tornar
visíveis alguns dos temas propostos pelo feminismo da terceira vaga,
envolvendo questões de inclusividade e igualdade no mercado de
trabalho, a assunção da complexidade e diversidade nos papéis ao
longo do eixo do sexo, e a possibilidade de criar instrumentos de
combate e crítica cultural, que permitam re-articulações da
distribuição tradicional, que está em vigor na narrativa do livro.
A noção
da écriture feminine
nasceu no seio da literatura, e elencava estratégias textuais que
desafiavam a estruturação convencional que sustentaria a ideologia
vigente, patriarcal. Um dos exemplos mais citados dessas estratégias
seria o uso incomum dos pronomes, por exemplo, mas também as
experimentações em torno da caracterização das personagens, as
hierarquias sociais mais usuais, etc., desmontadas pelos exemplos
arrolados das autoras, como o caso expoente no Brasil de Clarice
Lispector. No campo da banda desenhada, temos de procurar outro tipo
de estratégias.
Não há
nada de particularmente anti-narrativo em Sem
dó. Isto é, não há uma
crise em termos do eixo causal, por exemplo, ou a organização
espácio-temporal, uma contradição de vozes e posicionamentos, etc.
O que há, substancialmente, é uma desaceleração e redução da
importância do eixo de acções, abrindo antes espaço a explorar
uma perceção diferente dessas mesmas acções, assim como dos
espaços, ambientes, tempo e do tecido, se assim se se pode dizer,
extrema e ricamente texturado das sensações que lhes estão
associadas. A maneira como a autora dispõe a matéria visual é
muito importante. São várias as sequências ocupadas tão-somente
pelos objectos nos quais cairá o olhar de algumas das personagens,
sobretudo a própria Lola, mas não só. Se uma personagem lê um
jornal ou uma revista, muitas das vinhetas serão ocupadas pelos
anúncios que ocupam essas mesmas páginas, muitas vezes apenas os
logótipos das empresas. Quando Lola observa um zootrópio ou uma das
sessões de cinema mudo, as imagens que se sucederiam nesses
dispositivos ocupam faixas na página impressa que mimam, na sua
disposição e formato, esses mesmos mecanismos. Poder-se-ia
argumentar, até, que Penna está aqui a elaborar um olhar contrário
àquele que Laura Mulvey teorizou como “olhar masculino” (male
gaze), não apenas por
fomentar a agência das personagens que vêem (não apenas Lola, como
o homem sem nome), mas por desligá-lo de um olhar
objectificador/sexualizante do desejo, buscando antes efeitos de uma
espécie de “objectividade” que vai alterar a matéria do
storytelling
do livro. Não quer isto dizer que não seja possível interpenetrar
muitos dos objectos “vistos” como sendo “objectos de desejo”
(de Lola, do homem), quer de um ponto de vista quase literal quer
mais metafóricos (o caso das máquinas cinéfilas, actuando até
como sombra metatextual ou de mise
en abime do próprio livro),
e até mesmo como “pistas” da intriga, mas acima de tudo como
parte integrante e constitutiva da textura discursiva de Sem
dó.
A
alteração da matéria visual opera ao nível, por exemplo, dos
círculos concêntricos que se espalham nos cenários, como se se
tratassem de pequenos símbolos extratextuais (recordem-se dos
“flocos” em Blankets, de Craig Thompson), ou nas formas como as
linhas vigorosas de negro sobre branco, dadas as opções de
distância e ângulo dos desenhos em relação ao que se representa,
e depois da composição, fazerem emergir padrões quase abstractos
na página. Os múltiplos jogos com padrões de toda a espécie,
correspondentes ou não a objectos no interior da diegese (as
vinhetas mostrando a acção de passar a ferro tecidos padronizados
são uma trouvaille
incrível), adensam este trabalho visual. Uma das páginas, que
mostra o momento do encontro entre Lola e o homem, joga com todos os
objectos presentes – os chapéus respectivos e suas fitas, as
linhas dos eléctricos nas ruas de alcatrão, o prédio e sua
esquina, a porta aberta para o interior escuro, etc. para criar um
conjunto de áreas e linhas brancas e pretas numa complexa e elegante
coreografia. Luli Penna deixa que muitos dos momentos se abandonem em
olhares deambulantes e acções estendidas no próprio prazer visual
do seu movimento e progressão, jamais os subsumindo a uma
“velocidade do recontar”.
Apesar de
haver uma organização relativamente linear no que diz respeito ao
tempo, isso não significa que a narrativa seja somente apresentada
numa dimensão temporal. O livro abre com uma imagem ocupando toda a
página de uma caixa de lata de biscoitos Duchen e um rádio a
pilhas. A página seguinte revela a caixa aberta, com as mãos de
alguém remexendo nos objectos guardados nela. A seguir, inicia-se a
acção. O leitor é surpreendido com transições entre vinhetas que
apresentam ora elipses pouco claras, ou experimentações visuais que
necessitam de um trabalho significativo de inferência da parte do
leitor. De quando em vez, regressamos à manipulação dos objectos
da caixa, enquanto o rádio vai emitindo notícias de trânsito ou as
canções que, reconhecendo-as, preenchem um imaginário muito
concentrado da MPB da década de 1970. É dessa forma que
entenderemos, talvez apenas em retrospectiva, que os objectos
guardados nessa caixa correspondem aos souvenirs
da aventura amorosa de Lola naquela década recuada, lançando assim
toda a narrativa central num nível hipodiegético, integrado,
“dentro” da narrativa “do presente”, do acto de rememoração
que acompanha a manipulação. Cada objecto, inclusive a própria
caixa, têm papéis na narrativa. Isso
tornar-se-á claro no fecho do livro, quando esse “presente” se
revela e oferece uma (possível) resolução da mesma novela. Não
deixa de ser significativo que um dos primeiros objectos manipulados
seja um brinquedo de madeira de criança (um kendama,
desconhecemos o termo em português), assinalando como que “o fim
da inocência”, ao passo que o último é uma caixa de anel,
apontando para a resolução, jamais explícita verbalmente, e
visualmente ambivalente, já que a assinatura da autora – uma
figuração rápida, naïf, simples e muito contrastada, que recorda
toda uma família de autores, de Megan Kelso a Dileydi Florez -,
permite que se possam confundir algumas personagens e decidir
múltiplas leituras.
E há
outros momentos complicados, que tornam Sem dó um livro merecedor de
leituras múltiplas e analíticas, que desdobrem as formas como a
autora explorou a composição e organização da sua matéria
narrativa, como na página mostrando o passeio num jardim, em que
algumas vinhetas são ocupadas por postais carimbados. Qual o seu
papel? São aquelas imagens no “presente da narrativa”, com as
interferências gráficas dos selos e carimbos projecções do tempo
“futuro” da rememoração? Tratar-se-ão de objectos tangíveis,
testemunhados pelas personagens no passeio? Serão interjeições
autorais, demonstrando parte dos documentos históricos que
coleccionou, verificou e empregou para a fabricação da “sua”
São Paulo histórica? Seria possível ler esta página como um
exemplo complexo de metalepse na banda desenhada? Estas questões não
merecem propriamente que sejam respondidas com uma solução
inequívoca, mas antes que se fomente a sua interrogação criativa.
Parte
da mimese com o cinema “mudo”, da época (o filme de Sedgwick,
The
Cameraman,
com Buster Keaton, é citado textual/visualmente, e data de 1928, e a
autora explica, em várias entrevistas, como a de Ramon Vitral, como
usou um filme do realizador brasileiro Mário Peixoto), está
presente na opção da autora em apresentar quase toda a narrativa
sem recurso à matéria verbal “no presente”, isto é, sob a
forma de balões de fala misturados nas vinhetas. Quando surge
matéria verbal, é as mais das vezes parte da imagem (quando “lemos”
anúncios, letreiros, notícias, cartazes de rua, montras, etc.); se
se trata de diálogos, surgirá isolado, a letras brancas, numa
vinheta a preto, tal qual as legendas do cinema mudo. Apenas no
fecho, e em meras três frases, surgem balões, tal como nas tais
páginas da manipulação da caixa, “desencaixando” então essas
cenas de toda a outra narrativa “antiga”.
Há,
quanto a nós, duas grandes conquistas efectivadas pela emergência
das vozes feministas (não apenas “femininas”) na banda
desenhada, operadas na década de 1970 acima de tudo, nos Estados
Unidos e França. Em primeiro lugar, houve a conquista da
recentralização da atenção e do olhar sobre o próprio corpo da
mulher, um olhar autobiográfico que o desligava totalmente de
idealizações tradicionais (virginal ou carnal, mãe ou amante,
santa ou puta) para a tornar um efectivo e mutável corpo humano.
Aline Kominsky e Claire Brétecher seriam as duas grandes percusoras
dessa estratégia, e Marjane Satrapi – uma das influências-chave
para que a ilustradora profissional Luli Penna fosse “arrastada”
para o campo da banda desenhada – empregará idênticos
instrumentos em Persepolis.
Penna
dispensa, de certa forma, essa exploração “à flor da pele”,
mas não deixa de a tornar presente em Sem
dó
de
modos oblíquos: a atenção para com os anúncios de moda feminina,
os sonhos de Lola, os papéis “femininos” de bordar, servir,
ser-se subserviente para com a família patriarcal, os favores e
atenção do patrão para com ela, que adivinha outra linha possível
de desenlace, etc. Essa atenção seria também influente em autores
homens (veja-se Fabrice Neaud ou Marco Mendes), mas continuaria a
fazer parte da tal écriture.
Em
segundo lugar, temos a tematização dos desafios e lutas sociais das
mulheres através da construção consciente de narrativas em torno
precisamente dos papéis que as mulheres desenpenham na sociedade –
sejam aqueles que lhes são impostos (a parte substancial de Sem
dó,
aliás aquela que é dirigida pelo próprio título) sejam as que de
tornam o desejo de conquista (aqui metaforizado no movimento do
cinema e no amor livre com o homem). Poder-se-ia argumentar, in
extremis,
que o trabalho de autoras que não
exploram “questões femininas” é igualmente uma conquista do
feminismo, já que na sua complexidade, diversidade e
interseccionalidade, o ser-se livre para explorar qualquer tema ou
género literário-visual é também fruto dessa conquista de
liberdade. Daí a tal “irritação” em se identificar essa
inscrição a qualquer momento, sem se perceber se essa é ou não
uma opção livre e informada das autoras ou autores em questão.
Dito isto, a verificação da sua presença, nas mais diversas
formas, é igualmente importante, e é essa presença clara que nos
leva a ir fazendo esta interpretação do projecto de Penna.
Nota
final: agradecimentos à autora, pela oferta do seu livro.
Sem comentários:
Enviar um comentário