As origens
deste pequeno livro são explicadas no seu prefácio, pelas palavras
de Carlos Vaz Marques, na sua qualidade de editor da revista
literária, também ela publicada pela Tinta da China, a Granta.
Até certo ponto decalcada do seu modelo inglês, a Granta
portuguesa acaba por ser um pouco mais confinada à “coisa”
literária, ainda que inclua imagens por alguns dos mais conceituados
ilustradores portugueses. Dito isto, porém, e apesar do prémio
atribuído a João Fazenda, mesmo uma rápida consulta demonstrará
que as mais das vezes essas mesmas imagens acabam por estar
subsumidas aos princípios temáticos da publicação, e menos
propensas a ganhar uma dimensão autónoma e conceptual como poderiam
ter. Daí que o “direito à cidadania” da banda desenhada seja
algo limitada e se tenha pautado pela força de circunstâncias e
proximidade editorial dos autores, e não propriamente por uma
abertura genuína e procura editorial por um diálogo, por exemplo,
entre as pesquisas da literatura e da banda desenhada pelos temas
propostos a cada número. (Mais)
Não
podemos aqui dar início à problemática recepção das revistas,
jornais e suplementos literários à banda desenhada, quase sempre
atreitos aos objectos de maior circulação comercial ou exposição
mediática, ao ponto de confundir esses textos populares com todo o
modo, nem novamente a uma dessas diatribes superficiais de que essa
situação apenas ocorreria nos meios de comunicação nacionais. No
entanto, não há dúvida de que em mercados mais musculados e
sofisticados, a discussão da banda desenhada se faz entre textos e
não propriamente entre “meios”. Isto é, se o interesse de um
determinado órgão se atreita a determinados temas, a pesquisas
formais, a explorações estéticas, a capacidade de observação do
espírito humano, etc., então haverá uma sensibilidade aliada à
informação que seja capaz de procurar, na banda desenhada, os
objectos mais adequados a esse mesmo diálogo. Mas num círculo onde
as coisas acabam por ser algo mais confinadas, a falta de diversidade
é sublinhada.
A dupla
criativa entre Filipe Melo e Juan Cavia tentaram responder ao tema
unificado do número 9 da Granta, que era o de “Comer/Beber”,
mas por força das circunstâncias apenas conseguiram submeter a
história em torno do primeiro termo, com 24 páginas, “Sleepwalk”.
Este livro junta as duas peças, porém, sendo a história
“Majowski”, de 28 páginas, focada no acto de beber. A forma como
cada uma se alia ao tema é relativamente simples, aquela em torno de
uma tarte de maçã, esta numa garrafa de champagne. Uma das regras
que usualmente se podem cumprir com segurança na criação de uma
narrativa é que mais vale partir de uma ideia convencional para
depois explodi-la do que começar com algo absolutamente fantástico
e acabar por acabar por encaixar numa categoria expectável. Ora, o
interesse destas histórias estará menos concentrado nos objectos em
si – a tarte a a garrafa – do que em todos os valores humanos que
são tecidos em torno deles, valores que implicam memórias, laços
de família, momentos de segurança e felicidade, a possibilidade de
lançar alguma esperança mesmo nos piores momentos, ou sentir alguma
força face à adversidade menos conquistável.
“Majowski”,
baseado numa memória familiar de Beatrice Schilling (Nádia
Schilling co-assina o argumento com Melo), roda em torno de um polaco
que é dono de um restaurante/cabaret em Berlim durante os anos da 2º
Guerra, obrigado a servir aos esbirros nazis que o desprezavam a ele
e aos seus. Pequeno relato dos modos como se consegue sobreviver
mesmo sob a bota do inimigo, o objecto afectivo em causa, a garrafa
de champanhe, acaba por ganhar uma espécie de papel de
consubstanciação dos valores da resistência, hombridade, orgulho e
dignidade humanas, sobretudo quando face a quem a descarta em nome de
um poder advindo da força dos números. “Sleepwalk” é uma
concentrada narrativa, e sensível, também em torno da dignidade e
empatia humanas, mesmo onde julgávamos que evaporasse por completo.
Se a primeira história (que não se pode defender com a ideia de ser
“baseada em factos reais”) acaba por explorar simpatias baseadas
em clichés (o pobre judeu polaco face aos nazis facínoras), já a
segunda é mais feliz na construção de personagens mais redondas,
sobretudo pelas suas acções, reacções e emoções – com muito
menos diálogos, exploram-se esses outros instrumentos de construção.
Sendo a
revista de um formato reduzido, e que neste livrinho, de capa dura,
ainda mais pequeno, não será surpreendente que a escolha da
composição das páginas seja feita com muito simplicidade,
oscilando entre as 4 e as 5 vinhetas (tornando as histórias de mais
rápida leitura do que poderia parecer em termos de contagem de
pranchas). A primeira história tira mais partido de divisões
horizontais, ao passo que a segunda parece seguir uma grelha regular
de 2 x 3 para depois explorar as suas variações possíveis. O
desenho de Cavia mantém-se no seu registo estilizado, muito próximo
a uma assinatura de animação contida, e onde as suas limitações
de expressibilidade funcionam melhor em “Sleepwalk” precisamente
pelo tratamento narrativo e emocional, do que na primeira história,
a que necessitaria de maior variação emocional. Apesar das
diferenças de cor, em que a segunda contém mais azuis baços e
cores mais atmosféricas, toda a matéria parece estar oprimida sob
uma camada de ocres, glaucos, e sombras que tornam a legibilidade das
imagens menos imediatas do que seriam a preto-e-branco, por exemplo.
Ainda que
estejamos longe de narrativas que se concentrem propriamente nos
pratos ou bebidas servidas, ou em momentos de comensalidade para
nutrir as complexas relações humanas (como nos festins de Natal de
um Fanny e Alexandre, as refeições de um Comer Beber
Homem Mulher, de Ang Lee, apenas a título de exemplo),
“Majowski” e “Sleepwalk” usam os seus móbiles como objectos
evocativos para despertar as figuras humanas, e quão humanas, das
suas narrativas.
Nota
final: agradecimentos à editora, pela oferta do livro.
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