Tal como a
dois coelhos, é de
uma cajadada só que se dá conta
do recado a estes dois livros. A
sua leitura conjunta é consentânea na descoberta dos instrumentos
próprios do autor e pela força das circunstâncias editoriais. De
facto, por coincidência, deu-se a proximidade da publicação de uma
antologia de trabalhos primitivos de Álvaro, pela Escorpião Azul e
a do conjunto total da série Balcão
Trauma, pela chancela do
próprio autor. Estes dois livros poderão ser vistos então como uma
oportunidade única de ver os primeiros passos do autor no campo da
banda desenhada e aquilo a que veio destilar nos últimos tempos. (Mais)
The
Worst of Álvaro foi uma
iniciativa da parte da Escorpião Azul em agregar alguns trabalhos
que se encontravam inéditos sob a forma de livro (com os perigos que
isso pode acarretar, e a forma como dehistoriciza e descontextualiza
os diálogos permanentes que teria com os materiais em seu redor no
gesto original, como discutimos a propósito de O
espião Acácio, mas ao mesmo
tempo permitindo esse acesso). Tratam-se de quatro histórias curtas
datadas de 1994 e de 1997, e nalguns casos apresentam tendências
narrativas, temáticas e de humor que, apesar de conterem a
virulência conhecida do autor, têm tons ligeiramente distintos.
“Arca Lilith”, por exemplo, é menos humorística que sarcástica
mas também séria, e não destoaria de alguns contributos na Mundo
de Aventuras ou outras
publicações, tratando-se de um comentário sobre a soberba humana,
com laivos de ficção científica. “Salvai-vos, Irmão!” e
“Jeremias” estão bem mais próximas do olhar clínico de Álvaro
sobre a hipocrisia de tantas (todas?) instituições sociais, nos
casos presentes, o da igreja, ou mais concretamente as igrejas
evangélicas com presença televisiva, maioritariamente de origem
brasileira, e a ideia de “empreendorismo” (anos antes desse
vocábulo emético estar nas modas da novilíngua).
Nesse
sentido, é curioso descobrir os instrumentos en
herbe de Álvaro, tal como
descobrir o caminho do qual jamais se desviaria, por hipótese pela
razão de uma putativa maturidade, compromisso social, adaptação a
formas de ver mais domesticadas, ou coisa que o valha. Está fora de
questão. O ácido de Álvaro mantém-se e é certeiro, não se
compadecendo com qualquer espécie de acomodação.
Mas a
grande peça de The Worst,
a melhor história do volume é, sem dúvida, “A derrota dos
porcos”. De acordo com a breve nota introdutória do autor (todas
as histórias as têm), trata-se de uma peça que começara para
acompanhar uma brochura para ser distribuída por toxidependentes,
aliado a um programa de prevenção de doenças e informação, mas
não chegaria a esse porto. Não sabemos se a recusa se deveu a
circunstâncias editoriais, questões de encaixe ou decisões que
tivessem a ver com algum tipo de juízo sobre a produção do autor,
mas não há dúvida de que estamos perante uma história que não
apenas foi mais além do provavelmente se esperaria de um projecto
bem-pensante para a solidariedade social, como acaba por funcionar
como uma espécie de tiro pela culatra, ou mecanismo de
auto-destruição. Ninguém sai incólume desta história...
O traço
de Álvaro é mais titubeante na peça “Arca Lilith”, mas já aí
encontramos a sua assinatura, desde as personagens altamente
estilizadas até ao seu grosso traço de contorno. “Porcos” ainda
não está nesse registo final (de que Balcão
Trauma é sintomático e
apurado), mas contém também algumas características que se
evolariam nos trabalhos futuros. Seguimos nestas mais de 30 pranchas
uma complexa novela, cujos protagonistas são, paradoxalmente, uma
família pseudo-nuclear. Mas a tessitura da intriga espraia-se em
torno de muitas personagens, algumas das quais cruzando-se em
geometrias de relações bem mais densas do que pareceria ao
princípio. É também um ensaio sobre as hierarquias sociais que
existem de facto e que se continuam a alimentar quer pelas
distribuições de poder quer pelas hipocrisias dos “valores”.
Esta história não é sobre redenção, não é sobre culpa, não é
sobre esperança, não é sobre miséria, não é sobre
aproveitamentos políticos, não é sobre a crueldade. É sobre todos
esses temas, mas afundando-os numa ingenuidade, num ponto cego do
trajecto das personagens.
Não é
difícil encontrar paralelos de trabalho para trabalho e até se
poderia imaginar que, no fundo, Álvaro trabalharia como Osamu Tezuka
no sentido de empregar um grupo fechado de “actores de papel”,
que depois vão cumprindo funções ligeiramente diferentes entre
cada título. Não serão as Donas Lulu e Rozette, à porta da escola
de Ritinha, e a falar mal da mãe desta criança, as mesmas velhas
insuportáveis que não se calam no hospital e Trauma?
A grande característica que Álvaro ainda tem nesta história e nos
parece dissipar-se quase por completo em trabalhos posteriores é a
simpatia clara que o autor nutriria por algumas das suas personagens,
nomeadamente a Ritinha, a sua mãe e a o antigo companheiro desta. É
discutível, já que, não o revelando, o autor prepara-lhes um
destino que poderá não ser o mais feliz de todos. Lido com atenção,
chega mesmo a ser doloroso... compreendemos a angústia e até o
receio do autor em perseguir esta linha de desenvolvimento. “A
derrota dos porcos” está muito próxima de uma certa linha da
banda desenhada dos anos 1980, tentada em muitos locais, inclusive em
Portugal, de temática urbano-realista, de que um exemplo maior é
Sangre de Barrio,
de Jaime Martin. Álvaro matiza e suaviza a história, todavia, com
as fugas do seu humor...
Já
Balcão Trauma
mergulha totalmente no humor sarcástico, à beira do paroxismo, da
histeria, do absurdo. O volume reúne todos os materiais desta
“série”, passada nas urgências de um qualquer hospital da nossa
malha nacional. Uma leitura cruzada dos vários livros de Álvaro, a
descoberta das suas “séries”, daria continuidade àquela ideia
da trupe de personagens que aventámos acima, mas as ligações
diegéticas entre as narrativas são ainda mais explícitas entre
este livro e o anterior Sexo,
Mentiras e Fotocópias, da
qual o desesperado cliente se torna o desesperado consulente do
hospital em Balcão Trauma.
O autor já
tira partido aqui de instrumentos gráficos bem distintos. Não
apenas a estilização está apurada, e o minimalismo dos traços o
aproxima daqueles clássicos das tiras norte-americanas (à la Ernie
Bushmiller ou Max Cannon) ou de certas tendências da banda desenhada
infanto-juvenil, como o Photoshop passa a ser um aliado para criar
variações de textura, saliência, distância, etc., permitindo
assim variações subtis de agência e importância mesmo quando se
repetem núcleos de desenhos. Em termos de composição, Álvaro opta
por uma quase contínua grelha regular, ora de 6 vinhetas quadradas,
ora de 3 horizontais, mais há toda uma série de variações ou
estratégias subtis, como o balcão de atendimento principal, que
cria uma divisão em cada vinheta. Esta insistência nestas
estruturas poderia ser, à partida, demasiado repetitiva, mas aliada
precisamente à inexorável repetição dos diálogos inconsequentes
e a desatenção e descuido de quem de direito, torna esta
“perspectiva permanente” ainda mais uma forma de nos manter
obrigados a sofrer com as personagens...
Balcão
Trauma é uma espécie de sitcom,
com várias acções paralelas a decorrer, espalhadas em vários
“sets” no interior deste hospital, e com todas as personagens a
percorrê-los, levando às mais variadas interacções entre eles. É
também um reality show, no
sentido moral, porque chafurda na mais profunda das ignorâncias,
mesquinhezes e estupidez de que os humanos são capazes. E estamos em
crer, para nosso profundo horror, que, tal como ocorre com Conversas
com os putos, não estamos
perante um imenso talento do autor em escrever diálogos hilariantes
e capazes de criar situações e personagens absurdamente ridículas,
mas antes a de um autor capaz de memorizar,com um rigor científico e
documental, a mais pura e aterrorizante das realidades que nos
rodeiam. Caso clássico de rir para não chorar.
Nota
final: agradecimentos à Escorpião Azul, pela oferta do volume dessa
editora.
Sem comentários:
Enviar um comentário