Ao
acompanhar os trabalhos de Sofia Neto por um punhado de fanzines, não
nos surpreende encontrarmos aqui e agora toda uma série de
características comuns em termos de interesses temáticos, de
tratamento das personagens, de lançamento das circunstâncias
espácio-temporais para as suas ficções. Confessemos desde logo que
esperávamos ver desenvolvidas de uma maneira mais coerente e
musculada num trabalho de maior fôlego esses mesmos traços, como
estaria prometido neste livro de 60 e tal páginas. Quer dizer, algo
que satisfizesse o mecanismo mental que exige uma narrativa completa,
satisfatória em todos os seus pormenores actanciais, e apresenta um
desenlace claro, que nos liberta do próprio texto... Todavia, se
Cicatriz
confirma essas mesmas preocupações, interesses e inquirições, o
seu desenvolvimento é algo comedido e limitador dessas expectativas,
para nos obrigar a uma travessia e caça mais solitárias. (Mais)
A
intriga de Cicatriz
é concentrada, não existindo elipses de maior entre as suas acções.
Estas têm lugar num par de horas que corresponderiam à velocidade,
ritmo e intencionalidade da própria leitura. Podendo descrevê-la, à
intriga, em termos gerais, como uma “história de salvamento”,
ela não segue, contudo, os ritmos de alta octanagem dos mais
triviais exemplos dessa estrutura. A protagonista, cujo nome é
somente revelado no fim, o de “Diana”, como a deusa clássica da
caça, encontra-se no que entenderemos ser o “exterior” de uma
cidade, em busca de uma outra mulher, Salomé. Mas a história não
está presa ou sequer interessada na relação entre as duas, ou se
essa missão é efectiva e completamente cumprida ou não, já que o
propósito de Neto é que a tessitura da narrativa vá permitindo ao
leitor que o processo de worldbuilding
emerja lenta mas coerentemente.
Através
de todas as informações apresentadas de modo paulatino, quer pelas
imagens, a interacção entre as várias personagens, os pequenos
trechos de diálogo, as informações largadas aqui e ali, vamos
criando uma imagem global de um cenário pós-apocalíptico, que
apenas veio exacerbar as diferenças sociais e políticas entre
trechos da humanidade, cada “metade” da qual julgando a outra
como corrupta, falhada e incapaz de compreender a “Verdade”.
Cicatriz,
dessa maneira, é menos importante como “livro de ficção
científica” do que tentativa em medir o pulso às tensões que
estão já (ou sempre estiveram?) em curso na sociedade humana. Em
termos comparativos, a co-existência do que parecem ser confortos
urbanos, comodidades sociais, miséria, tecnologia e regressos a
primitivismos, e atenção particular para com as imediatas mas ao
mesmo tempo mínimas senão mesquinhas relações humanas,
recordam-nos objectos bem distintos e díspares tais como os filmes
sociais dos irmãos Dardenne ou as comédias negras Canino
e O Lagosta,
de Yorgos Lanthimos, ou algumas das premissas da série Black
Mirror.
O
desenho enxuto, quase enciclopédico, de Sofia Neto é como uma frase
de pura sequência, uma construção em parataxe. Não há desvios,
não há perfumes, decorações, desvios. Tudo é directo e com o
único fito, uma tensa perseguição, a da caçadora pela sua presa.
As próprias formas de Sofia Neto, neste seu registo de bandas
desenhadas de uma temática difusa e nervosa, não procura fórmulas
de beleza, mas de uma sempre presente ânsia e guarda e perigo. A
composição é quase absolutamente regular, de 2 x 3 vinhetas,
algumas delas fundindo-se para permitir uma panorâmica mais
abrangedora.
Em
apenas um momento “mergulhamos” numa distinta sequência, já que
“vemos”, com Diana, um dos filmes documentais filmados pela
própria Salomé, que ficara incumbida de compreender a vida daqueles
que vivem no “exterior”, ou os “selvagens”. Filmado com o
intuito de propaganda para reforçar a ideia hegemónica da sociedade
do “interior”, elas acabam por ser um instrumento de libertação
da sua realizadora, que acaba por ficar “cá fora”. O que
acabamos por acompanhar, no fundo, é o surgimento do maior inimigo
da fé de Diana: a dúvida. Em que medida é que Diana se liberta da
sua mundividência? Em que medida é que actua pelo bem e da
felicidade do maior número de pessoas? Em que medida é que ela
procura coarctar a liberdade de outrem, e em que medida é que tenta
ajudar uma sua semelhante? Apesar das acções serem “visíveis”
no livro, temos para connosco que apenas o leitor individual poderá
tomar essa decisão de interpretação, conforme julgar o futuro
imediato dessas mesmas acções, e a “simpatia” que sentir pelas
“causas”. O que não será fácil, de modo algum, pelos
instrumentos quase desapaixonados empregues por Sofia Neto.
Contudo,
o conjunto de todos estes instrumentos expressivos não se parecem
coalescer numa forma final equilibrada. Há algo que parece estar
ausente, e talvez possa ser descrito precisamente por essa ausência
de paixão. Há algo de temeroso em moldar um mundo e personagens que
não instilam qualquer simpatia junto aos leitores, obrigando estes a
enfrentar o texto de uma maneira quase clínica. No final, oferece-se
esse deserto em branco que se parece espalhara para além das
árvores, e é ao leitor que caberá a forma de o enfrentar.
A
um dado momento, descobrimos o que significa a “cicatriz” nesta
narrativa. Mais do que isso, descobrimos algo sobre a natureza dessa
cicatriz que derrota a sua própria substância. Uma cicatriz é, na
prática da construção de personagens, uma marca física que
comporta em si mesma um nódulo narrativo, que por sua vez tem um
nicho biográfico e que pode despertar uma série de implicações na
vida afectiva dessa mesma personagem. Ao se descobrir o que se
descobre, é-nos arrancada toda uma patina da ideia de quem Diana
seria. O maior desconforto, talvez, é não saber se perdemos ou se
ganhamos com isso... Eis outra travessia no branco que nos é
deixada.
Dito
desta forma, essas necessidades básicas e simplistas da narrativa
não são satisfeitas. Mas tê-lo-ão de ser sempre? Eis, talvez, a
força invisível de Cicatriz.
Nota
final: agradecimentos à editora, pela oferta do livro.
Sem comentários:
Enviar um comentário