14 de agosto de 2018

Cicatriz. Sofia Neto (Polvo)


Ao acompanhar os trabalhos de Sofia Neto por um punhado de fanzines, não nos surpreende encontrarmos aqui e agora toda uma série de características comuns em termos de interesses temáticos, de tratamento das personagens, de lançamento das circunstâncias espácio-temporais para as suas ficções. Confessemos desde logo que esperávamos ver desenvolvidas de uma maneira mais coerente e musculada num trabalho de maior fôlego esses mesmos traços, como estaria prometido neste livro de 60 e tal páginas. Quer dizer, algo que satisfizesse o mecanismo mental que exige uma narrativa completa, satisfatória em todos os seus pormenores actanciais, e apresenta um desenlace claro, que nos liberta do próprio texto... Todavia, se Cicatriz confirma essas mesmas preocupações, interesses e inquirições, o seu desenvolvimento é algo comedido e limitador dessas expectativas, para nos obrigar a uma travessia e caça mais solitárias. (Mais)

A intriga de Cicatriz é concentrada, não existindo elipses de maior entre as suas acções. Estas têm lugar num par de horas que corresponderiam à velocidade, ritmo e intencionalidade da própria leitura. Podendo descrevê-la, à intriga, em termos gerais, como uma “história de salvamento”, ela não segue, contudo, os ritmos de alta octanagem dos mais triviais exemplos dessa estrutura. A protagonista, cujo nome é somente revelado no fim, o de “Diana”, como a deusa clássica da caça, encontra-se no que entenderemos ser o “exterior” de uma cidade, em busca de uma outra mulher, Salomé. Mas a história não está presa ou sequer interessada na relação entre as duas, ou se essa missão é efectiva e completamente cumprida ou não, já que o propósito de Neto é que a tessitura da narrativa vá permitindo ao leitor que o processo de worldbuilding emerja lenta mas coerentemente.

Através de todas as informações apresentadas de modo paulatino, quer pelas imagens, a interacção entre as várias personagens, os pequenos trechos de diálogo, as informações largadas aqui e ali, vamos criando uma imagem global de um cenário pós-apocalíptico, que apenas veio exacerbar as diferenças sociais e políticas entre trechos da humanidade, cada “metade” da qual julgando a outra como corrupta, falhada e incapaz de compreender a “Verdade”. Cicatriz, dessa maneira, é menos importante como “livro de ficção científica” do que tentativa em medir o pulso às tensões que estão já (ou sempre estiveram?) em curso na sociedade humana. Em termos comparativos, a co-existência do que parecem ser confortos urbanos, comodidades sociais, miséria, tecnologia e regressos a primitivismos, e atenção particular para com as imediatas mas ao mesmo tempo mínimas senão mesquinhas relações humanas, recordam-nos objectos bem distintos e díspares tais como os filmes sociais dos irmãos Dardenne ou as comédias negras Canino e O Lagosta, de Yorgos Lanthimos, ou algumas das premissas da série Black Mirror.

O desenho enxuto, quase enciclopédico, de Sofia Neto é como uma frase de pura sequência, uma construção em parataxe. Não há desvios, não há perfumes, decorações, desvios. Tudo é directo e com o único fito, uma tensa perseguição, a da caçadora pela sua presa. As próprias formas de Sofia Neto, neste seu registo de bandas desenhadas de uma temática difusa e nervosa, não procura fórmulas de beleza, mas de uma sempre presente ânsia e guarda e perigo. A composição é quase absolutamente regular, de 2 x 3 vinhetas, algumas delas fundindo-se para permitir uma panorâmica mais abrangedora.

Em apenas um momento “mergulhamos” numa distinta sequência, já que “vemos”, com Diana, um dos filmes documentais filmados pela própria Salomé, que ficara incumbida de compreender a vida daqueles que vivem no “exterior”, ou os “selvagens”. Filmado com o intuito de propaganda para reforçar a ideia hegemónica da sociedade do “interior”, elas acabam por ser um instrumento de libertação da sua realizadora, que acaba por ficar “cá fora”. O que acabamos por acompanhar, no fundo, é o surgimento do maior inimigo da fé de Diana: a dúvida. Em que medida é que Diana se liberta da sua mundividência? Em que medida é que actua pelo bem e da felicidade do maior número de pessoas? Em que medida é que ela procura coarctar a liberdade de outrem, e em que medida é que tenta ajudar uma sua semelhante? Apesar das acções serem “visíveis” no livro, temos para connosco que apenas o leitor individual poderá tomar essa decisão de interpretação, conforme julgar o futuro imediato dessas mesmas acções, e a “simpatia” que sentir pelas “causas”. O que não será fácil, de modo algum, pelos instrumentos quase desapaixonados empregues por Sofia Neto.

Contudo, o conjunto de todos estes instrumentos expressivos não se parecem coalescer numa forma final equilibrada. Há algo que parece estar ausente, e talvez possa ser descrito precisamente por essa ausência de paixão. Há algo de temeroso em moldar um mundo e personagens que não instilam qualquer simpatia junto aos leitores, obrigando estes a enfrentar o texto de uma maneira quase clínica. No final, oferece-se esse deserto em branco que se parece espalhara para além das árvores, e é ao leitor que caberá a forma de o enfrentar.

A um dado momento, descobrimos o que significa a “cicatriz” nesta narrativa. Mais do que isso, descobrimos algo sobre a natureza dessa cicatriz que derrota a sua própria substância. Uma cicatriz é, na prática da construção de personagens, uma marca física que comporta em si mesma um nódulo narrativo, que por sua vez tem um nicho biográfico e que pode despertar uma série de implicações na vida afectiva dessa mesma personagem. Ao se descobrir o que se descobre, é-nos arrancada toda uma patina da ideia de quem Diana seria. O maior desconforto, talvez, é não saber se perdemos ou se ganhamos com isso... Eis outra travessia no branco que nos é deixada.

Dito desta forma, essas necessidades básicas e simplistas da narrativa não são satisfeitas. Mas tê-lo-ão de ser sempre? Eis, talvez, a força invisível de Cicatriz.
Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta do livro.

Sem comentários: