Pelo que
se entende publicamente, a organização desta antologia estava a ser
preparada ainda em vida do artista, num momento em que Fernando
Relvas se apercebia de duas coisas: por um lado, que não seria
provável, devido à doença que o afligia, que voltasse a conseguir
desenhar e dar vazão aos muitos projectos que estariam
interrompidos, por outro lado, por estar consciente do interesse de
vários quadrantes editoriais em “recuperar a memória” da sua
própria obra (como gostamos de repetir aqui neste espaço esse
trabalho de olhar para trás na história da banda desenhada de forma
a consolidar uma tradição a partir da qual novos textos podem
emergir). Demos conta aqui de Sangue Violeta, pela El Pep, e
Rosa Delta Sem Saída, pela Polvo, que farão parte dessa
tendência, a que se vem juntar este novo livro mas que apenas é o
corolário da amizade e interesse contínuos e ininterruptos que os
editores portuenses nutriram pelo autor e de um gesto que foi por
eles fundado, na verdade, quando da edição, já em 1998, pelo
SIBDP, do peregrino L123 + Cevadilha Speed. Poder-se-á dizer
que é o atempado repescar de um projecto de longa data, num momento
em que talvez haja uma melhor recepção e circulação destes
objectos. Além disso, as duas exposições relativamente recentes de
que foi alvo na cidade da Amadora [uma das quais organizadas por este vosso criado] serviram igualmente como mostra
dilatada da sua imensa e variada produção, alguma da qual inédita
ou por recuperar nestes moldes. (Mais)
No
entanto, são precisamente esses mesmos moldes que poderão ser algo
contra-producentes ou perigosos na nova recepção dos
trabalhos antigos de Fernando Relvas. Um recente artigo de Côme
Martin, “Quand la série s'enraye: intégrales tronquées et
feuilletons interrompus en bande dessinée” vem teorizar e
sistematizar uma questão que também abordámos já aqui no Lerbd,
inclusive quando discutimos Sangue Violeta. Vivendo num tempo
em que a esmagadora maioria da banda desenhada, inclusive a mais
popular (o que não significa o mesmo que nas décadas de 1970 e
1980, e menos ainda do que nas de 1910 a 1940) circula sob a forma de
códices, livros, volumes, tankobon, “novelas gráficas” e
outros termos afins, e não na imprensa, revistas, jornais ou outros
veículos, poder-se-á criar a ideia junto aos novos públicos (estes
determinados pela idade ou pela recente re-descoberta de que se pode
ler banda desenhada em adulto) de que toda a banda desenhada tem como
objectivo final a sua existência com esse formato literário e tudo
o que daí advém. A ideia do romance não apenas faz flutuar a ideia
de um significativo volume de páginas e um nobre formato rectangular
com pequenas benesses materialistas (capas, badanas, blurbs,
prefácios, coordenação entre colecções, etc.) mas igualmente a
de estruturas narrativas internas: centralização de uma intriga,
coerência psicológica dos protagonistas, satisfação do arco
clássico de desenvolvimento da acção e das personagens, entre
outras.
Ora essas
qualidades estarão, para sermos simples, “ausentes” de O
Espião Acácio. Não poderemos dizer estar perante um romance,
sequer uma novela, organizada em torno de uma trama narrativa
específica. Não podemos sequer afirmar com total segurança de que
Acácio de Mello é o comandante das acções do livro a que dá
nome. Não se trata de um herói, mas tampouco de um anti-herói, ou
sequer de um herói pícaro, ou outra categoria que esteja já
prevista na teoria literária. Ele é tão-somente uma espécie de
avatar deslocado das vontades do autor Fernando Relvas à medida que
cria estas páginas. Arriscar-nos-íamos a dizer que muito
possivelmente haveria momentos em que criaria novas páginas sem ter
bem em mente o que havia ocorrido nos episódios anteriores (que nem
sequer se podem assim chamar, no fundo) e seguramente que sem se
preocupar em demasia com o que poderia surgir mais tarde. Merecendo
um tratamento bem mais aprofundado do que esta mera asserção,
diríamos que Relvas foi um autor verdadeiramente nietzschiano, no
sentido em que a sua “vontade de poder” se sobrepunha à
subsunção ou compromisso com classes e expectativas pré-concebidas
por fórmulas exteriores. “O Espião Acácio” (entre aspas
referimo-nos à série, em itálico ao livro), assim como “Sangue
Violeta”, por exemplo, são séries que vivem nesse
respeito à vontade autora, numa exploração altamente pessoal da
parte do autor, e não de uma pesquisa em respeitar estruturas
clássicas, como tentaria noutros trabalhos.
Isto
significa que, tal como esse livro publicado pela El Pep, também O
Espião Acácio, isto é, o livro, deve ser lido com cuidado,
tendo em mente sempre a sua circunstância editorial e liberdade de
coordenação, e não somente, ou sequer, como banda desenhada
“livresca” propriamente dita... Até certo ponto, esta edição
tenta manter alguns dos instrumentos próprios dessa natureza
primeira (os sucessivos “fins” ao fim de um episódio de duas
pranchas), mas outros estão ausentes (o “continua” entre dois
quadrados, por exemplo, mais material crítico, suplementos, etc.).
Portanto, este livro reúne a totalidade das pranchas publicadas ao
longo da revista Tintin, indiscutivelmente a publicação mais
influente da sua dilatada época (1968-1982) e que foi de uma
importância fundamental para toda uma geração, ou duas, de
leitores, cultores e criadores de banda desenhada, por vários
factores: a sua qualidade material, a variedade dos conteúdos apesar
de uma maior concentração em histórias do pólo “franco-belga”,
cuja noção na verdade ajudou a criar e consolidar já que misturava
coisas que, de um ponto de vista dos leitores originais francófonos,
eram inconciliáveis (Tintin e Astérix), a sua
pontualidade que formaria rituais, a sua capacidade de estabelecer
diálogos directos e intensos com os leitores através do correio,
clubes e iniciativas e, enfim, a abertura à presença de autores
portugueses de uma forma ou outra que Relvas aproveitaria como
ninguém, mesmo que de uma maneira algo incoerente.
Relvas não
foi o primeiro autor português a ver publicado o seu trabalho na
revista. Mas o que surgira antes eram peças desiguais, como as
bandas desenhadas semi-publicitárias de José Ruy, particularmente
negligenciáveis na carreira desse autor, e o surgimento do “O
Espião Acácio” terá sido surpreendente, sobretudo quando, a
médio prazo, parecia ter um lugar cativo na publicação. Teríamos
de confirmar com maior precisão a seguinte informação, mas estamos
em crer que a secção de banda desenhada a preto-e-branco no início
e/ou no fim do caderno, reservada a artigos e correio, com a excepção
do trabalho de Ruy, terá estreado em torno do ano de 1977, primeiro
com O Enigma da Atlântida, de Jacobs, seguido por Signor
Spaghetti, de Goscinny e Attanasio e, de uma forma então quase
perene, da perspectiva deste então jovem leitor, a série Corto
Maltese. Havia portanto a noção de que haveria de uma maneira
mais certeira uma “secção” a preto-e-branco, mas de forma
alguma presa a géneros ou humores. Seria então que surgiria a série
“O Espião Acácio”, de
uma forma mais sustentada e contínua. A prancha mais antiga data do
Verão de 1978, e a última de Março de 1980, mas não foram
publicadas consecutivamente. Houve algumas interrupções da série
no ritmo semanal da revista.
Terminada
essa série, seguiu-se de imediato (sem interrupção da presença de
Relvas na Tintin) a adaptação de Viagem ao Centro da
Terra, onde o autor português tentava não apenas uma nova
estratégia estrutural e textual da banda desenhada, francamente
inferior (quer no que diz respeito à ideia de adaptação, quer de
narração, ritmo, etc.) como igualmente uma abordagem visual bem
distinta da de “Acácio”, munindo-se de uma linha mais fina,
detalhada, cheia de tramas e efeitos. Depois teríamos, em catadupa,
“Rosa-Delta-Sem-Saída”, “L123”, “Cevadilha Speed”, “Slow
Motion”, e, finalmente, o interrompido “Kriz 3”, por ocasião
do término abrupto da revista, no no. 21 do seu 15º ano, datado de
2 de Outubro de 1982. A presença de Relvas era, portanto, um dos
pilares constantes da publicação, algumas vezes partilhando o
espaço com outros autores portugueses, desde os veteranos aos mais
jovens amadores e iniciantes, mas em relação a todos, sinceramente,
demonstrando uma mais segura capacidade de burilar a linguagem
dinâmica e inteligente entre desenhos e textos.
Graças à
inclusão de uma bibliografia no final deste volume, o leitor poderá
entender como é que Relvas continuaria a produzir banda desenhada
para outras publicações, ora de forma mais esporádica, como na
revista especializada em banda desenhada Mundo de Aventuras ou
aquela associada ao programa radiofónico Pão Com Manteiga,
ou de uma forma mais estruturada, como com o semanário cultural Se7e
(erroneamente grafado “Sete” nesta lista). Seja como for, o
importante a notar é que, com efeito, é nos anos 1980 que Relvas
exerce o seu maior reinado nesta arte, com algumas excepções mais
ou menos conseguidas no período seguinte, como o ácido O nosso
primo em Bruxelas e o institucional Çufo. Não sendo este
o espaço para o debater, diremos tão-somente que nos parece que a
esmagadora maioria da sua produção posterior [como The Last Black Ship, por exemplo] sofria de uma
incompleta tradução entre a “ideia original” que se haveria
plantado na sua cabeça e a sua “execução final”, sem passar
por um necessário e aturado processo de desenvolvimento,
estruturação e edição.
Uma vez
que era uma revista que tentava alegrar a gregos e troianos de todas
as idades, seria natural que Relvas pudesse ser mais ou menos
satisfatório conforme o género que explorava (ficção científica,
fantástico, realismo mágico, etc.) e conforme os interesses dos
variados leitores. Todavia, a sua assinatura tornar-se-ia parte
integrante das expectativas na leitura da publicação, nesta sua
fase derradeira. Mas já em “O Espião Acácio” se notará na
mão-cheia de características que seriam a assinatura de Relvas. Uma
espécie de escrita que respirava em função da ordem do dia, e não
tanto com essa tal clássica planificação aristotélica das
putativas intrigas em que jogaria o seu protagonista, não obstante o
juízo de valor que acabámos de fazer acima. Uma análise cuidada
textual desta série revelaria instrumentos expressivos e categóricos
que atravessam géneros distintos. O humor está sempre presente –
afinal, esta é a obra de um “maluco! Você é um maluco!” -, mas
há flutuações entre períodos de tempo, um verdadeiro périplo
geográfico, uma enciclopédia de referências às culturas
populares, cinematográficas, literárias e musicais e, claro, um
insistente discurso anti-bélico, anti-militar e anti-autoridade.
Estas
características eram consabidas e até públicas. Recordemo-nos que
no número 44 do 12º da revista Tintin, datada de 15 de Março
de 1980, onde se publicam as duas derradeiras pranchas de “Acácio”,
e antes de, no número seguinte, saírem as duas primeiras da
adaptação de Verne, o assistente editorial, Vasco Granja, se
queixava nos seguintes termos: “O chefe de redacção [Diniz
Machado] nem quer que eu fale de Viagem ao Centro da Terra. E
eu ralado! Que hei-de dizer de uma história da qual ainda não vi
uma única imagem?” Uma queixa que não apenas não seria
negligenciada por editores de Relvas por vir, como seria um traço
herdado por outros artistas da nossa praça, para desgraça dos
nervos dos editores... Mas isto serve tão-somente para demonstrar
como esse processo criativo não era apenas uma questão do trabalho
como se reflectiria na própria “escrita” das séries de Fernando
Relvas.
De uma
forma simples, digamos assim: Relvas foi um exímio escritor, mas a
qualidade da sua escrita não era aquela revelada na construção das
intrigas (incoerentes e falhas), ou na consistência das personagens
(flutuantes, na melhor das hipóteses), mas antes do modo como os
diálogos eram espelho de uma atitude genuína em relação ao rés-da-vida. Se isso se
expressará melhor nas suas séries “realistas” (L123, a
título de exemplo), está também presente em “Acácio”, nos
momentos em que os périplos deste espião de boas famílias e de
meia-tijela demonstram ser um comentário em relação quer aos mitos
históricos (Lawrence das Arábias, os combatentes das Grandes
Guerras) quer aos ficcionais (Darth Vader) quer ainda à realidade
imediata do seu tempo e lugar (músicas, a realidade
pós-colonialista, e o amor). E até, se quisermos, auto-ficcionais,
já que quem senão do próprio Relvas é o Professor Alquimedes o
avatar, como possibilidade de comentar a agir no mundo de que ele
mesmo é demiurgo?
Então,
como ler O Espião Acácio senão obra completa e integral?
Que tal como pequenos momentos que captam, como queria Baudelaire, a
eternidade na velocidade fugaz do tempo?
Nota
final: agradecimentos à editora, pela oferta do volume. As imagens foram procuradas na internet, sendo a capa da edição referida, mas do interior directamente das versões da Tintin.
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