27 de outubro de 2005

O Rei Macaco. Terada Katsyua (Saiyukiden/Dark Horse)


(Uma vez que se encontra nos escaparates a versão em língua inglesa desta obra, deixo aqui o artigo que escrevi há uns anos para o club otaku, sobre a versão original.)
Heavy Metal Son-O-Kong.
Se os fãs da série Dragon Ball ainda não sabem, já é tempo de o aprenderem...
Um dos clássicos da literatura chinesa, uma das obras seminais e centrais do cânone da literatura asiática é um enorme livro intitulado Viagem ao Oeste. Ainda que seja baseado numa colagem de vários mitos, contos folclóricos, novelas orais perdidas nas tradições, e q.b. de história, a sua recompilação por Wu Cheng-en – durante o século XVI, dinastia Ming – cedo se tornou incontornável na aprendizagem de qualquer das artes da palavra. Viagem ao Oeste, também conhecido no Ocidente por Macaco ou Rei Macaco, conta as aventuras do monge Xuanzang, e dos seus companheiros, numa viagem até à Índia em busca de escritos e da luz do Budismo. Os companheiros são um homem ex-monstro marinho, um porco que abandonara uma vida de crime, e um macaco... mas não um macaco qualquer, o rei-macaco...ou que se auto-proclama rei, para pesar e cólera de muitos, inclusive divindades. As peripécias são fabulosas, desde o roubo do pilar do oceano ao rei dos mares (um dragão), a descida aos Infernos, as lutas com os deuses, a oferta da nuvem voadora, etc. Uma leitura inesquecível que demonstrará que se a tradição do fantástico é relativamente recente no Ocidente, o mesmo não se passará no Oriente.
No Sudoeste Asiático esta personagem mítica é conhecida por Hanuman, e já aparece no épico Ramayana, na Índia do século III, a saga do deus Rama. Na Tailândia, por exemplo, é conhecida como Ramakyen. Se alguma vez visitarem Bangkok, e visitarem o turístico, mas obrigatório Grande Palácio, e o Wat Phra Keo, no seu interior, encontrarão nas paredes uma enorme representação desse épico em frescos, que datam do século XIX, mas sofreram várias remodelações e restauros. E em mais do que menos partes desses frescos verão sempre Hanuman, o rei-macaco, nas suas aventuras fabulosas.
Mas a história a que nos referimos em primeiro lugar é largamente conhecida sobretudo na China, na Coreia e no Japão, com o título de Sayûki. Serve isto para fazer entender que versões destas histórias ou do próprio Rei-Macaco sobejam... e como não poderia deixar de ser, das versões existentes, a banda desenhada faz jus da sua liberdade, inventabilidade e recursos. Até à data, a versão mais fabulosa, apesar de afastada do texto clássico, é de facto a série de Dragon Ball, iniciada por Akira Toriyama em 1985 e que explodiu em uma miríade de parafernália de merchandising pior que Gremlins alimentados debaixo d’água às 3 da manhã... Essa é a mais estranha. Ou não?
Eis que entra Terada Katsyua. Nascido a 7 de Dezembro de 1963, na cidade de Tamano, prefeitura de Okayama, Terada ganhou grande respeito sobretudo como ilustrador. O seu trabalho pode ser visto associado a universos de jogos, filmes e outras séries de banda desenhada (Terra, Blood: O Último Vampiro, etc.), recordando um pouco a relação da arte e dos produtos de que outro mestre ilustrador japonês, Yoshitaka Amano, partilha. Terada foi também o criador também de um design espectacular da personagem Hellboy de Mike Mignola (Dark Horse) e que levou à criação de uma estatueta (julgo que de vinil).
Apesar disto, ele define-se como um artista de rakugaki, isto é os desenhos que fazemos num bloco quando distraídos, esboçamos ou não pensamos muito conscientemente no desenho que nasce na página. O que em inglês se chamaria doodling e em português rabiscar. Terada Katsuya diz fazer rakugaki desde os 3 anos e define-se como aspirante a Rakugaking. Daí ter publicado muito recentemente um livro de 1000 páginas apenas de rabiscos! Mesmo assim, é preciso dizer que embora seja bem conhecido pela sua minuciosidade e capacidades de representação plástica pouco comuns no mundo do mangá, não é um autor prolífico de bd, tendo-se limitado a algumas histórias curtas, a preto-e-branco ou a cores espalhadas nas mais díspares publicações. Dos quatro livros publicados, três são de ilustração: Katsuya Zenbu (Kodansha: 1999), Terra’s Cover Girls (Wani Magazine: 2000) e Rakugaki (Mosh Books: 2002). Mas, em 1998, publicara o primeiro volume de Sayukiden: Daienou (Shueisha: 5ª ed., Dez 99), mais uma versão, como o título indica, da saga do rei-macaco.
O tipo de traço e o uso de cor e de computação gráfica distingue Terada facilmente, se estiverem a fazer um browsing numa livraria de mangá. A influência do tipo europeu é também visível e ele admite ter Moebius como uma força que o atrai plasticamente. De facto, e folheando o seu livro de ilustração Terra’s Cover Girls, outra publicação vem à memória, agora remotamente associada a Moebius: Metal Hurlant, ou na sua versão americana, Heavy Metal. Se se recordarem que a partir dos anos 80 esta(s) revista(s) passaram a ter mulheres despidas, em poses sensuais e com pouca roupa, se não contarmos depois com a inclusão de artilharia de uso pessoal pós-nuclear à sua volta cobrindo as partes pudibundas, entenderão o ambiente.
De facto, Sayukiden é uma versão heavy metal do rei-macaco. A variação de Terada leva-nos a um texto mais adulto, nos campos violento e sexual, assim como a liberdades do foro religioso que seriam impensáveis noutras versões.
A acção começa com um episódio conhecido: o protagonista encontra-se debaixo da Montanha dos cinco dedos, que Buda lhe pôs em cima para lhe acalmar a ira em relação às hostes do céu... Mas as imagens não correspondem a versões mais célebres... as splash pages mostram aves-vampiro, onomatopeias de terror, e um rei-macaco de olhos atravessados por espigões. Um flashback faz-nos retornar a um deserto onde uma mulher bela, de seios abastados e proeminentes parece pedir-lhe ajuda... mas o grande guerreiro dos monos arranca a cabeça à pobre mulher com o costumeiro pilar. Revela-se afinal uma criatura monstruosa...e partir daí, violência a toda a hora, monstros de cabeças decapitadas, encontros com mulheres de corpos que se explodem numa sexualidade frontal, uma cativa que tem poderes desmesurados sempre despertados pelo prazer físico, onomatopeias exageradas e integradas na imagem. Aliás, é esta mulher presa que parece substituir o venerável e santo monge Xuanzang.
A cena mais sensacional é quando os deuses recorrem a Buda lui-même para pôr um fim a um combate estrondoso (no qual Son-O-Kong se multiplica em vários si-próprios); contudo, o nosso anti-herói espeta-lhe com o pilar no olho, e aumenta-o (ao pilar, entenda-se) arrancando metade da cabeça do Despertado. O deus supremo engole-o depois e consegue domá-lo através de conversa, magia, sexo... mas por pouco tempo, aprisionando Son-O-Kong então na montanha, retornando à cena que abrira o livro.
Narrativamente, talvez não seja das obras de mangá mais interessantes. Existem divisões a mais, com separadores imensos, e splash pages que pouco ajudam à injunção de um ritmo regular da estória. Mas Terada Katsyua é conhecido pelas ilustrações e sabe tirar partido do seu talento para equilibrar os seus defeitos de contador. Folhear um livro dele, inclusive este, é uma experiência de imagens, de uma imaginação plástica quase sem limites, que criam uma vontade atroz em que as cenas que se passam, mesmo no limite da obscenidade e do abjecto, não terminem. Posted by Picasa

3 comentários:

Nuno Guronsan disse...

Fiquei com curiosidade... ou não tivesse eu feito parte do fenómeno DragonBall, aqui há uns anos atrás...

Mila disse...

Eu amo Dragon Ball.
O livro pode ser encontrado por aqui (Brail) em Protuguês?

Pedro Moura disse...

Cara Mila,
Em primeiro lugar, a que livro ou série se refere? À de Terada ou ao "Dragon Ball"? Se é esta última, estão editados pela Conrad; se é relação ao livro de que falo, julgo que não, mas existe uma versão americana intitulada "Monkey King", editada pela Dark Horse. É possível que existam ma versão pirata em cbr, mas aí é quase garantido ser mesmo em "protuguês", e não em português...
Pedro