12 de outubro de 2005

Prestige de l'uniforme. Hugues Micol & Loo Hui Phang (Dupuis)


Não há muito tempo, fui confrontado com dois artigos, em duas publicações bem diferentes, de duas pessoas com objectivos bem diferentes, que insistiam não só numa tipologia “dura” da banda desenhada, como ainda de uma polarização, sobretudo entre os Estados Unidos, por um lado (do Atlântico), e do eixo franco-belga, por (este) outro lado. Essa polarização apresentaria, portanto, uma banda desenhada, a americana, mais centrada na acção e cujas personagens seriam sempre dotadas de características físicas, psicológicas (e, apesar de não o acrescentarem, morais), superiores à dos “comuns mortais”. São, obviamente, os super-heróis. E, contrastando com essa produção, uma outra banda desenhada, “europeia” (o que é a “Europa”?), que se dedicaria, através de personagens mais falíveis nas suas personalidades, mais próximas das nossas falhas estruturais humanas, à exploração dos tortuosos caminhos da psique, aos enganadores sendeiros da moralidade, à falibilidade do quotidiano...
Bom, escusado será dizer que me parece esta divisão um tremendo disparate. Aceito, mas só até determinado patamar de uma discussão, que há de facto géneros que parecem ter sido mais felizes de um e do outro lado do Atlântico, mas isso deve-se a um ror de razões, não necessariamente apenas relacionadas com os impulsos criativos de um punhado de cidadãos, ou pior, ao “Geist” de um povo. Seria o mesmo disparate dizer que só existe cinema de acção nos E.U.A. e cinema de autor em França, como se jamais tivessem existido Altman e Hartley, ou Besson e Gans (o que adaptou Crying Freeman, mangá de K. Koike e R. Ikegami) - exemplos somente, independentemente de se gostarem destes realizadores ou não, independentemente de existirem outras referências mais obscuras. Como se, discutindo uma qualquer produção ou modo artístico se pudesse reduzir a conversa a listagens de nomes, movimento, “escolas”, “géneros”...
Por isso, não acredito em bruxas... mas que elas existem... Afinal, o que me leva a estas exposição de credo se ao ler Prestige de l’uniforme não me viessem à cabeça esses mesmos superficiais antagonismos entre “estilos nacionais”, e à “ponte” (mais uma, sem dúvida que na continuidade de muitos outros títulos) que prece estabelecer.
Por alguma razão (que se deve alojar como um lagarto na parte de trás da minha cabeça), há sempre uma grande expectativa dos álbuns franceses que não se repete com nenhum outro centro de produção. Quer dizer, sou capaz de ter prazer com obras medíocres norte-americanas (do mainstream ou não), portuguesas ou doutros sítios, mas sinto-me sempre desfalcado quando isso acontece com material francês. Irracional, e não nego. Mas aos poucos aprendo a conseguir ter prazer com obras que, não sendo “primas”, são ainda assim bem construídas, inteligentes a seu modo, ainda surpreendentes num qualquer aspecto e competentemente desenhadas. É o caso deste álbum. História de um empregado de um laboratório químico que é mordido por um líquen quasi-radioactivo (soa-vos familiar?), cuja vida se altera radicalmente, Prestige... é tanto um encontro de uma certa ambiência cliché dos super-heróis americanos como dos (específicos) “retalhos de vida” do eixo franco-belga.
A premissa é tão simples e velha como as do Stan Lee dos anos 60: que responsabilidades teria um super-herói no mundo real e que consequências sobreviriam às suas relações pessoais? É isso o que se procura responder.
De Loo Hui Phang nunca ouvira falar. Perguntou-me se voltaremos a ouvir dele, mas nessa ocasião falaremos. É uma estória competente, bem estruturada, com as personagens, se não tão profundas como se poderia desejar (o álbum tem um tamanho ligeiramente superior ao clássico), é suficiente para cumprir as acções a que são chamados e cobrir o espaço necessário à sua completude. A evolução do protagonista não é sempre clara, tampouco a sua relação com a mulher (e a filha) que atravessa sucessivas crises e mesmo choques. Porque tudo se centra na acção, nos episódios sucessivos que servem para ilustrar um conceito/facto biológico (a força do líquen, por ser convergente) e uma ideia (a convergência dos géneros “nacionais” da banda desenhada). Quanto a Hugues Micol, também me parece que a palavra a utilizar aqui é “competência”. Tendo apenas um álbum a solo (3, na Cornélius) que não é particularmente interessante, e adaptando elementos mínimos do que é capaz nas colaborações anteriores (2 tomos de Chiquito La Muerte, com Jean-Louis Capron, na Delcourt, e até à data 3 de Les Contes du 7éme Souffle, com Éric Adam, na Vents d’Ouest), mostra aqui alguns traços desiguais, mas plenamente adequados ao que se pretende fazer representar. Mais sombrio, os contornos das personagens mais delineados, cores mais escuras, jogos de cor quase sígnicos em relação aos espaços... não primando pela representação de movimento, Micol compensa porém pelas estruturas do “cenário”, pelo menos neste título.

1 comentário:

andré lemos disse...

Esta capa está-me a deixar muito curioso em relação ao interior. Não faço a mínima idéia quem sejam os autores.