Seria bem simples se existisse uma infalível categorização de princípios e parâmetros que nos ajudassem a dizer se uma obra de arte cumpre o seu papel ou não. Seria eficiente, rápido, consensual, e de uma facilidade comunicativa, se tivéssemos acesso a uma lista que pudéssemos seguir na nossa leitura. Mas a leitura de uma verdadeira obra de arte jamais é eficiente, porque é nos escolhos que se oculta a sua felicidade enquanto gesto inaugural; jamais é rápida, porque exige de nós uma lentidão e um peso na sua degustação, na sua revisitação, na permanente convivência com ela, criando junto à obra uma intimidade que nunca deixa, ao mesmo tempo, de ser estranheza; jamais é consensual, porque instala a guerra entre a percepção e o saber, a opinião e o gosto, as expectativas e a aposta; jamais é de uma fácil comunicação, porque nada tem a ver com a comunicação, e porque só traz problemas, enigmas, complicações. Não se procure a obra de arte para resolver crises da vida ou da existência. Ela apenas existe, nas palavras acutilantes, programáticas e cônscias dos editores desta publicação, enquanto “zona temporariamente autónoma”.
Cospe Aqui é o novo fanzine da mesma equipa do Porto de que aqui já se falou. Não haverá aqui grandes novidades de participação, afora uns quantos novos comparsas, companheiros de outros encontros. Por isso, lá estão Miguel Carneiro, Marco Mendes, Didi Vassi, Carlos Pinheiro, João Alves Marrucho, e Arlindo Silva, por um lado, e dos novos vindos, André Lemos, que esteve presente na feira/encontro A Mula, e Manuel João Vieira, que apresenta umas ilustrações que prepara para uma edição dos Sonetos de Bocage. Apresenta-se ainda uma banda desenhada de Mike Diana, enfant terrible para todas as ocasiões e preconceitos.
O discurso em relação ao Grande Mercado das Artes mantém-se, tal como o diálogo (nestas vozes, através da dissonância, a ironia, o gozo) possível que com ele pode estabelecer um fanzine de banda desenhada, ilustração e pintura. Gostaria de apenas assinalar duas coisas que me parecem marcar uma grande diferença de trabalhos individuais anteriores: 1. Marco Mendes apresenta uma página com uma mais consensual banda desenhada, de um episódio que apresenta todas as características de um “slice of real life”. 2. Didi Vassi apresenta uma banda desenhada, em que duas vinhetas apresentam uma pequena piada, mas de extremo rigor em termos metalinguísticos e dos próprios limites que ele ergue e ultrapassa (a do “cacto” e a da “pívea”).
De resto, a qualidade mantém-se, e até melhora em termos de edição e material. Neste preciso momento, conjuntamente com as propostas saídas d’O Senhorio, estes parecem-me ser os mais interessantes fanzines colectivos e, como manda a lei, com uma estupenda verve e uma saudável dose de marginalidade aguda e com humor.
1 de junho de 2006
AAVV. Cospe Aqui (Marco Mendes e Miguel Carneiro)
Publicada por Pedro Moura à(s) 1:32 da tarde
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
2 comentários:
olá, gostei bastante do blog, descobri este espaço digamos por acidente, andava a procura do fanzine cospe aqui pós visualização do mesmo na rtp2, e deparei-me com este artigo, fiz menção do mesmo no meu blog, parabéns.
Obrigado, e obrigado também por postares texto no teu blog.
Aconselho uma saltada ao http://www.mundourbano.blogspot.com/ para toda a espécie de lollypop-pops do mais alto low-fi que se faz por aí, seja com canetas de feltro, Midi ou cabedal.
Pedro
Enviar um comentário