Alguns artistas permitem que se reduza todo o seu trabalho a uma única palavra. Mas essa palavra não apontará a um mero exercício de redução, uma vez que agirá, a um só tempo, como tema, direcção, matéria, ou pior, como símbolo, ou melhor, como anima. É, portanto, como se costuma dizer, “muito mais que isso”, é algo vertebral, ou uma espécie de seiva que escorre lenta mas que inexoravelmente dá a vida.
A palavra de Renée French é “taxionomia”.
A taxionomia, como se sabe, é etimologicamente a “lei da classificação”, uma arrumação, por assim dizer. As arrumações nunca são indiscutíveis, seguindo sempre uma contextualização que pode ser mais ou pode ser menos circunscrita. Assim, erguem-se pólos desde a classificação de Lineu à famosa enciclopédia chinesa de J.L. Borges. Os trabalhos de Renée French, sejam os livros aparentemente infantis (The Soap Lady), sejam narrativas mais lineares (The Ninth Gland), sejam explorações pornográficas que apenas vivem da sugestão (cf. a sua participação em Dirty Stories), parecem viver sempre de uma taxionomia empírica, que vive e se desenvolve nos limites do conhecimento (científico) porque é um conhecimento limitado. É como se fosse erguer um logos a partir de uma doxa, somente, uma heterodoxia.
Não se trata, porém, de uma ausência de lógica. Bem pelo contrário, trata-se de um abuso das regras, um seu emprego excessivo, aplicar o que é de x também em y. É como quando as crianças, ao aprenderem a falar, deduzindo regras gerais, querem empregar, por exemplo, o verbo fazer no pretérito passado e dizem “eu fazi”. Trata-se de um emprego ultra-corrector das desinências dos verbos regulares nos irregulares. Só que a aplicação da regra, do regular, sem compreender as irregularidades, leva a ainda maiores irregularidades no mundo... French aponta precisamente para esses abusos da lógica, e os monstros que (n)eles despertam.
Esta relação com a aprendizagem das crianças não é inócua, pois é também um contínuo da obra da autora que se mantém em The Ticking, já que a taxionomia que se ergue, a qual influenciará a construção do mundo a partir da “diferença” em que o protagonista, Edison Steelhead, se insere, está intimamente ligada à forma como ele é obrigado a providenciar “conhecimentos” para tapar os intervalos do saber. Edison nasce com uma deformação facial congénita, mas uma vez que esta história se insere numa apresentação que não segue as regras do realismo artístico, só nos apercebemos disso já avançados na leitura; até esse momento, depreendemos essa estranha face como parte integrante do “jogo do desenho” de French. Depois, segue-se a relação com o pai, com a “irmã” que é convidada a substituir a “humanidade perdida” ou “falha” de Edison – o facto de Patrice ser o que é não é por acaso, mas serve para sublinhar esse “aquém-da-humanidade-completa”. E a recusa final, uma redenção íntima, de Edison ver na sua “diferença” um problema, uma de-formação, e aceitá-la como simplesmente a sua própria formação.
O livro, que segue uma estrutura que nos faz recordar Chester Brown, com uma a duas vinhetas flutuando livres na prancha, com os desenhos do próprio Edison Steelhead (cabeça de aço, impenetrável, inviolável) a fazerem parte do texto que nós lemos (veja-se o exemplo aqui de duas páginas abertas), curiosas repetições de estratégias – associadas à apresentação dos espaços de acção, a aproximações drásticas de partes do corpo – e a atenção a pontos de passagem que são também de metamorfose (verificada, desejada, imposta, ultrapassada, todo um rol de níveis é apresentado), é construído com desenhos a lápis, suaves, que me parecem ser de um trabalho apuradíssimo da artista. Na cinta que acompanha o livro Gary Panter diz o seguinte, com o qual concordo em absoluto, e que já tinha apontado, noutra ocasião, em relação a um trabalho recente de Isabel Carvalho: “O mundo que a Renée French cria parece à primeira vista fofinho e querido e giro, mas rapidamente revela-se, sob a crosta bonitinha, um mundo de contornos perigosos surpreendidos por abismos existenciais e medos primais”. Steelhead já tinha sido alvo de uma outra curta banda desenhada, mas é como se este livro falasse da infância dessoutra personagem, em que há espaço para todas as diferenças.
É quase um aviso à navegação do perigo que é deixar as crianças criarem um mundo - biológico inclusive – sem atravessar as regras que o mundo impõe, as quais não impedem a liberdade, mas travam o caos que tiquetaqueia na liberdade total.
Nota: 1. mais uma vez, o meu scanner não faz justiça da capa do livro, um belo objecto, já que esses entraçados baços que vêem emoldurando a figura são em relevo e dourados, tal como a figura e o título são entalhados...
2. Mais, devo confessar que este livro me mete um bocado de medo - por algumas razões mais óbvias e outras fobias mais íntimas - e que não consigo expressar melhor do que fazi... perdão, fiz.
3. Não deixando de ser algo gratuito, eis uma foto (encontrada na internet) de Renée French, na cena que ela protagonizou, fazendo de si mesma, num filme curto de Jim Jarmusch de 1994, "Renée", e que se incluíria depois em Coffee & Cigarettes, de 2003. Neste filme, ela mostra-se como uma belíssima versão moderna da mulher fatale, uma sobrevivência de um tempo outro; ela está silenciosa o tempo todo, a folhear uma revista de armas. É como se protagonizasse, no nosso mundo real, essa mesma razão de estranheza entre beleza, silêncio, violência, o uso perigoso do corpo, que tanto vive nos seus livros...
1 de junho de 2006
The Ticking. Reneé French (Top Shelf)
Publicada por Pedro Moura à(s) 1:29 da tarde
Etiquetas: EUA
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2 comentários:
Então quem é esta Renée French:
http://www.fantagraphics.com/blog/uploaded_images/French-788370.jpg
hem?
Aaarrgh!
The plot thickens.
Obrigados e desculpas.
P
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