3 de setembro de 2006

Notes pour une histoire de guerre. Gipi (Actes Sud)


1. Há uma guerra, não se percebe bem onde, numa Europa que ontem descansava e que hoje se desagrega. Há três rapazes (Lucien, Christian, P’tit Kalibre), que não são propriamente um gangue, mas apenas num poderão crescer enquanto seres humanos nessa vida. Há uma cidade ao longe das pequenas vilas que deixaram de existir, que antes era um sonho longínquo, hoje são o palco do crescimento brutal a que são obrigados, e amanhã será apenas uma memória que não lhes parece pertencer. O italiano Gipi mostra, com este livro, como as aparências formais da banda desenhada podem de facto iludir uma obra com uma profundidade humana estranha, uma lição sobre algo que jamais aconteceu e que pode não acontecer, mas que devemos prever a toda a hora.
2. A guerra (civil?) apenas existe em Notes pour une histoire de guerre como mero ruído de fundo. Se a testemunhamos, é enviesadamente, porque alguém fala dela, porque existe como condição, porque vemos surgir milícias num momento ou os jovens protagonistas a se aproximarem dos palcos de guerra... mas não os acompanharemos até ao centro. É como se a guerra fosse, numa complexa metáfora gramatical, o complemento circunstancial de tempo e de lugar, o qual, arrancado dos restantes actores, do contexto central, não serviria qualquer propósito, como os deícticos que apenas se actualizam num uso concreto. E a gramática deste livro de Gipi é uma que se deseja num contínuo presente do indicativo, mas que vive sob o peso do conjuntivo da própria ficção.
3. As paisagens urbanas, que se desenham como se ao longe, apenas surgem para serem esmagadas pelos céus carregados, e que revelam uma das mais valias formais de Gipi, que é o emprego de aguarelas de cinzentos (quando usa a cor, lembra Loustal, o que se confirma nos exemplos do seu blog), cujo peso é conseguido graças a manchas mais densas, e opta por linhas “vazias” em momentos-chave, extra-diegéticos (os sonhos, a entrevista em vídeo, as memórias que se encaixam num conhecimento em Julien).
4. As alegrias de Christian são sempre sol de pouca dura. Tal como as dos seus companheiros, mas é ele quem as acaba por expressar mais livre e abertamente. É como se a dureza, a fatuidade dessas alegrias, fosse a própria condição das suas existências: a única que lhes fosse autorizada. A tensão que surge em alguns pontos da narrativa, bem ponderada nesse e noutros aspectos, acaba por fazer convergir sempre os três amigos ao centro do problema, mas poder-se-á talvez dizer que Christian serve de “alívio cómico”, mesmo quando se trata de uma dor profunda, como aquelas que só se podem criar às crianças.
5. A metáfora dos piratas é reiterada ao longo do livro, e o próprio estilo de Gipi poderá recordar-nos outros piratas aqui já debatidos (pois penso em C. Blain), já que pertence a uma mesma escola de emprego de imagens de rostos simplificadas, quase um tratamento radical gráfico da caricatura, mas para os colocar numa situação cruamente realista, perigosa, extremamente próxima das crises em que subitamente podemos cair, mesmo que pensemos estar longe delas. Há um desequilíbrio muito belo entre esses rostos cujo tratamento é fortemente vincado na invenção gráfica, contrastando com as mãos que, surgindo esparsamente, são desenhadas de um modo completo e expressivo, o que se torna plasmado ao interesse que Félix, o “patrão”, lhes devota, especialmente aos dedos, interpretando-as como sinal indelével das vidas a quem pertencem.
6. E, no fundo, Notes pour une histoire de guerre acaba por ser uma longa confirmação de que somos feitos da matéria que herdamos. A natureza de cada personagem está presa ao ciclo em que ela nasceu, e não é possível quebrar essa rota predestinada. Lucien, afinal, que vive na permanente recusa da acusação que lhe fazem (primeiro em sonho, depois na vigília), acaba por cumprir esse mesmo papel (e é talvez o que lhe permite que o sonho invada a vigília no fim inesperado e, também ele, sempre, metafórico). No fim, é como se a guerra não fosse com os outros, mas sim com o que aquilo que somos obrigados a ser.
Nota: um "clin d'oeil" a Corine Saulneron, que me alertou para a existência e insistiu sobre a leitura deste livro.Posted by Picasa

1 comentário:

Brito disse...

Achei muito massa. No começo da história perdi um pouco a fé, mas ela só vai melhorando. Recomendadíssimo.