Quando esta série de tiras de jornal começaram a ser publicadas, a Julho de 2005, demos rápida conta delas, e associámo-las ao suposto (mas falso) suicídio dos lemmings, não esperávamos que o “abrupto precipício sobre o mar” correspondesse de alguma maneira ao abandono do autor do círculo de criação da banda desenhada. As razões para isso serão múltiplas, e não nos cabe a nós imaginá-las, mas esperar que haja oportunidade pública para as entender. Parte delas, porém, serão o fraco desenvolvimento da cena em Portugal, a sua variedade e recepção, a sua saúde e capacidade de sobrevivência extra-muros, muros esses de uma província muito circunscrita… Ficam apenas os votos de que possa ainda assim surgir novas obras ou pelo menos novas colecções, em português, da obra deste autor. Mas, por agora, a edição em livro dessas tiras, em língua espanhola, está garantida pela Astiberri.
Uma vez que não acompanhámos fielmente a sua publicação diária, parte do prazer e forma de recepção intervalada que lhe estaria associada perdeu-se, ainda que o tempo da diegese se associe aos meses de Julho e Agosto e procure mimar-lhe os lentos movimentos. E, na verdade, a sua leitura em forma de livro não deixa transparecer essa mesma segmentação de uma maneira líquida. Cada uma das tiras corresponderá a uma página - deste livro oblongo, o que seria meia-página num formato mais clássico - mas estas não são fechadas sobre si mesmas: não têm títulos individuais, como as mini-histórias d’A Pior Banda, nem sequer se pautam por um evento ou ideia concentrada. Bem pelo contrário, há uma fluidez contínua de página para página, e tudo estrutura uma trama coesa. A Agência oferece dois tours: “Dez mil horas de ‘jet lag’” e “O síndrome da classe turística”. Em ambos os casos, um homem chamado Zoloft (como sempre em JC Fernandes, o nome não é inocente nas suas associações intertextuais) entra numa agência de viagens, a Lemming, na qual é atendido por um funcionário. Este procede imediatamente à apresentação dos vários programas, pacotes, promoções, tours organizados, conselhos de aventuras, e dicas mais obscuras. A escolha é estrondosa: são apresentados e descritos a Zoloft mais de vinte destinos possíveis. Todos eles recusados…
Há um exercício curioso, imaginativo, que serve para refrear os apetites dos mais gulosos (funcionando apenas ora com os de têmpera mais férrea ora aqueles cuja imaginação tem um pé demasiado fincado no soma): ao entrar-se numa pastelaria, degustam-se todos os bolos ou iguarias visíveis nos expositores ou fotografias e, assim, ficar “cheio” ou até mesmo “mal disposto” com a mistura, optando-se ora pelo jejum ora por algo menos nocivo à saúde. De certa forma, este desvio pela metáfora do comensal é também apresentada pelo autor em relação a Zoloft, que “degusta” todas as paragens que lhe são apresentadas, e todas recusa… Essa degustação ganha corpo por o narrador visual nos dar acesso directo a essas mesmas cidades, onde se desenrolam as cenas descritas, ou testemunhamos a visita de outros tantos turistas.
As cidades podem estar cobertas de museus, apetece dizer “do acessório e do irrelevante”, ou em projectos artísticos levados ao extremo (Duchamp e os Becher estão presentes nessas referências), ou da banalidade, ou de personagens de pouca importância, ou são antes marcadas por uma arquitectura descontrolada desta ou daquela forma, ou por comportamentos obsessivos e estranhos, ora por inércias inultrapassáveis, mas sempre, sempre, para enfatizar uma qualquer dimensão angustiante da existência humana. As referências na construção destas tiras continuam a ser aquelas que mais classicamente parecem informar esta produção de José Carlos Fernandes: Ben Katchor e Italo Calvino, o primeiro pelas estruturas, o derisório mas impassível humor, as associações a um só tempo absurdas e aparentemente insípidas, a presença de uma classe de personagens cujo vigor físico e moral parece ter desvanecido há muito, o segundo pela maneira poética de explorar cartografias imaginárias e conducentes a estranhos momentos de magia na mais banal das realidades, na maneira como devolvem uma atenção redobrada para os comportamentos dos nossos concidadãos ou os nossos mesmos, e para os elementos que compõem o nosso próprio mundo, afinal tão absurdo quanto aquele ficcionado.
Fernandes utiliza, de modo subtil, quase secundário às histórias e ao humor que cria, uma maneira de pensar a sociedade em que nos inserimos e é quase por distracção que vamos escutando as suas lições. Não se trata apenas de referências directas, quiçá até de menor impacte (como a apresentação do “Ogre do Funchal” numa das prisões de Baltováquia), mas antes de considerações mais vastas, dadas pelo funcionário da Lemming. Como por exemplo, quando critica aqueles que “confundem a igualdade de direitos civis com o leito de Procusto da mediocridade” (pg. 38), ou a muito bem observada estupidez de utilizar um cliché como “cidade de contrastes” para descrever qualquer local… A discussão de todos os actos embrulhados no de viajar são também matéria de discussão e humor. Há quem queira distanciar-se dos “turistas” apelidando-se de “viajante”, mas carrega o Lonely Planet (talvez um dos mais patetas nomes para um guia de viagens, já que, por um lado, viaja-se usualmente para contactar pessoas, por outro, porque esse guia leva a que se repitam as mesmas rotas), há quem aprecie o chegar, instalar-se e contactar o outro lado mas deteste o acto da deslocação em si, há quem veja nos aeroportos ou outros terminais locais de encontros fortuitos, interessantes ou como um palco de antropologia instantânea, há quem veja nos mesmos uma terrível angústia e espera, etc. Acima de tudo, porém, deveria estar o entendimento que a viagem não significa nada em si mesma, uma vez que pode constituir-se num privilégio burguês e acessível apenas numa economia de mercado, como pode ser uma terrível pena imposta (o exílio, a emigração económica, etc.). No entanto, sejam qual forem as opções, algumas terão de ser tomadas, coisa que Zoloft não faz. “Tomar decisões pode ser aterrador”, diz o funcionário da Lemming (pg. 61). Mas no final da segunda história, Zoloft diz o seguinte: “…esse [seu] aperfeiçoamento acaba por ser contraproducente. As suas descrições são tão vivas que depois de as ouvir já não tenho vontade de visitar esses lugares” (pg. 133). De certa forma, e retornando ao Calvino de As Cidades Invisíveis, ou melhor ainda, à fonte do livro do autor italiano, esta frase estrutura a suposta relação entre as viagens de Marco Polo e o eventual verdadeiro autor desse relato (Il Milione), Rustichello da Pisa. Se é contado de uma forma tão maravilhosa, porque destruir essa mesma maravilha com a realidade?
Se tal for útil a alguém, e se não errámos, eis uma lista das cidades indicadas: Zamith, Sloth, Bezanio, Dulia, Pesto, Baltovaquia, Prizerv, Piltz, Manzil, Gallupi, Mandel, Pródromos, Kwinz, Yakov, Rizopotâmia, Maquei, Hrabal (onda acabarão os textos do lerbd), Nanopykos, Kostej, Gibil, e mesmo que através de sonhos, Citronóvý, Kohlzaad e Sliz. A elas acrescentam-se outras classes estranhas de actividades, como a do turismo nuclear, que o autor, numa nota, mostra existir na realidade, a do Flying Gourmet, ou a de comprar um Atlas constituído por uma colecção de discos (em vinil, claro) com os hinos de todas as nações do mundo, incluindo Vanuatu, Nauru e Antígua (antes que perguntem, são na verdade países reais do nosso mundo).
Nota: as citações são minhas traduções do espanhol e poderão não corresponder ao português original.
6 de janeiro de 2012
Agencia de viajes Lemming. José Carlos Fernandes (Astiberri)
Publicada por Pedro Moura à(s) 2:27 da tarde
Etiquetas: Portugal
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7 comentários:
Como eu adorava ter este livro em português...
Hevará alguma esperança de ser lançado em Portugal, ou tenho de me resignar a comprar a versão espanhola?
José Carlos Fernandes merecia uma editora à altura (ASA?).
Ele é um caso raro de grande roteirista e fabuloso desenhador.
Caro anónimo,
Não estando eu na confiança dos deuses, e não me desejando tornar num vaticinador de esquina, arriscaria a dizer que não haverá tão cedo uma edição em português deste livro. A tradução espanhola é boa, e a sua sonoridade (bela, na minha opinião, contra a dos mais banais patrinhoteiros ouvidos de chumbo) coaduna-se na perfeição para ler estas viagens.
Quanto ao seu comentário de ter uma editora à altura, a Devir e a Pedranocharco foram isso mesmo, a primeira com maior êxito e implantação, penso. É curioso que fale da Asa, mostrando que fará parte do público que se deixa seduzir por estratégias de grande visibilidade mas, a longo prazo, estratégias murchas. Caso não saiba, a Asa editou o Fernandes, e nem sempre correu bem. É pena que o grande público continue a achar que apenas as grandes editoras comerciais são a única hipótese...
E sem desprezo do JCF, que é um autor que aprecio, não é tão raro assim. Portugal tem excelentes contadores de histórias e argumentistas; na parte do desenho é que é mais complicado: os desenhos de JCF servem o seu propósito na perfeição, mas não o poderemos chamar de um artista autónomo do desenho - nesse campeonato, temos muitos outros autores merecedores da atenção. Não me entenda mal, o José Carlos Fernandes é um dos mais interessantes, inteligentes e criativos autores de banda desenhada das últimas décadas, mas "fabuloso desenhador" já me parece problemático.
Obrigado,
Pedro Moura
Primeiro as minhas desculpas por ter ficado como anónimo...
Quando falei em ASA foi básicamente por ser a única editora a editar em Portugal...
Editoras que editam um livro por ano não se podem chamar editoras.
Gostava muito da Polvo, mais ou menos acabou. Gostava muito da Witloof, acabou. Gostava da Vitamina, mais ou menos acabou. Gostava da Devir, mais ou menos acabou.
Ou tenho andado distraído, ou a única editora que não acabou foi a ASA.
Não sou adepto de BD comercial, por alguma razão este blog é um dos dois que sigo. Mas não sou adepto de editoras que não editam, quando nunca foi tão fácil e barato editar, nem que seja em formato digital, como o Relvas na Lulu.
Quanto ao JCF, apesar de gostar muito dele como argumentista, acho-o ainda melhor desenhador. Confesso que no início, quando o meu ideal de desenho era o Bourgeon e Vicomte, passava pelos livros do JCF e nunca comprava nenhum. Só mais tarde evolui para apreciar o JCF, e o desenho dele é na minha opnião de absoluto mestre. Tanto que tenho nas minhas paredes e móveis ampliações A3 que mandei fazer a partir de vinhetas do JCF. E são os únicos quadros em minha casa. Também gosto muito de João Fazenda, Nuno Saraiva, Prado, Loisel, Marcelé, Sorel, Kamimura, Tayo Matsumoto, Shin Abe, e outros, mas o desenho do JCF consegue ter uma ambiência que não encontro em mais nenhum desenhador em todo o mundo.
É com grande desgosto que assisto a este abandono.
Pois de facto não sabia dos desentendimentos entre o JCF e a ASA. Estava a par apenas dos problemas coma Devir, mas a Devir também arranjou problemas com outros, como o Mutarelli. Mas de facto o JCF também correu mal com várias editoras...
Não farei comentários sobre os funcionamentos das editoras, pois esse não é o meu papel, pelo menos neste espaço. Só posso dizer ao Pedro que anda distraído. A Polvo não desapareceu, apesar de publicar de quando em vez (mas sabe que é uma editora de uma pessoa só, não sabe?). A Devir regressou, com o "Hellboy", o "Blankets" e desejam-se bons desenvolvimentos. As outras editoras que refere desapareceram, mas sempre existem outras (Pedranacharco, Chili com carne, Pepedelrey, Vitamina/BDMania, entre outras). A Asa é uma grande editora, tem algumas apostas interessantes, mas em termos gerais, parece-me ser contra-producente. Não é fácil gerir um negócio dessa envergadura, mas é pior ainda ficarmos todos contentes com um monopólio que não ajuda a nada. E acho que estranho que diga não ser adepto de banda desenhada comercial, mas ache que uma editora que edita apenas um livro por ano não é uma editora. Quer dizer,tem direito a essa perspectiva, claro, mas no nosso burgo, penso que é precisamente na edição independente, nos fanzines, em projectos menores, que encontraremos produções mais interessantes em termos críticos (e obrigado por reconhecer o esforço deste espaço em variar). As conversas sobre editoras independentes têm tido lugar noutros locais (procure notícias associadas à Oficina do Cego, por favor). Enquanto pessoa com uma pequena experiência na edição, não é fácil (é preciso nervos de ferro).
Quanto ao José Carlos Fernandes, volto a dizer o que disse, sem que essa afirmação deseje ser "de cátedra" ou algo que o valha. E, seja como for, aquilo que vale como bom desenho na disciplina autónoma não tem de seguir a mesma bitola na banda desenhada, que é uma linguagem totalmente diversa... Mas isso dava pano para mangas.
Obrigado!
Pedro Moura
Caro Pedro Moura, desculpe-me intrometer em conversa alheia, mas não lhe parece que está a ter um atitude intelectualmente arrogante ao "combater" a ideia do Pedro Santos que considera o JCF um "fabuloso desenhador"?
Lili
Cara Lili,
Intrometa-se à vontade.
Não. Não me pareça que estou a ser intelectualmente "arrogante". Estou, por um lado, a exercer o meu papel ou direito intelectual, defendendo o meu ponto de vista, discordando com a valorização do Pedro Santos (sobre a qualificação, sem mais, de "grande desenhador", em contraste com a de "grande autor de banda desenhada", com que concordo); por outro, se se refere à minha frase, leia com um pouco de atenção, onde digo não desejar que seja considerada uma afirmação de cátedra, mas compreendendo que a discussão se alargaria de um modo complexo que não tem cabimento aqui.
A menos que sim...
Obrigado,
Pedro Moura
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