6 de janeiro de 2012

Boring Europa. AAVV (Chili Com Carne)

Neste livro, transgenérico, há dois momentos que se unem pelas suas semelhanças e discordâncias, ponto de encontro esse que serve como pedra-de-toque para compreender o gesto de Boring Europa. Na banda desenhada incluída de Aleksandar Zograf, um dos membros da Tour europeia dos membros da Associação Chili Com Carne, a Chili Sauce around Boring Europa, Ghuna X, diz, “agora não existem fronteiras na Europa, e é muito mais fácil viajar mas a maior parte das pessoas ainda não viaja muito, estão presas pelas fronteiras que têm nas cabeças…” (pg. 65). Na banda desenhada de um dos outros autores sérvios, Dzaizku Volodya, este é convidado por Marcos Farrajota a se juntar à tour até Berlin. Volodya pensa “pensei sobre isto durante uns momentos. Agora que temos estes novos passaportes biométricos na Sérvia, e já não são precisos vistos, podemos decidir se viajamos ou não numa questão de minutos…”. Curiosamente, acaba por não aceitar, por estar “ocupado nestes últimos dias”. (Mais) 


Estas não são questões de somenos importância, e são mesmo substância deste estranho livro. Apesar de existir uma ideia política, vendida a torto e a direito, de “uma Europa”, a verdade é que essa apenas existe num nível de estandardização a nível das instituições simbólicas e económicas, isto é, acima da vivência diária dos comuns cidadãos. Não existe, para todos os efeitos, um “baixo custo de mobilização” na Europa, que nada tem a ver com o custo real das despesas de deslocação, estada e alimentação - apresentados de modo claro em relação ao tour da Chili -, mas antes com os custos de travessia cultural, linguística, e sociais, que se consubstanciam num obstáculo por vezes inultrapassável.

Ugo Pagano, referindo-se a esta realidade, fala de uma “homogeneização cultural horizontal baixa”. A homogeneização cultural apenas opera em determinados circuitos, a saber, o das culturas populares (a qual não estamos seguros se ainda faz sentido sociológico chamar “de massas”). Será discutível o que é que integra ou compõe esses circuitos, uma vez que eles podem ser estratificados, cruzados, combinados e complicados através de vários trânsitos e experiências. Por um lado, temos aquela camada de cultura mainstream, burguesa, internacional ou mesmo americanizada, que é o consumo global de produtos da cultura pop de origem norte-americana - Britney Spears, Transformers 3, reality shows. Depois seguir-se-ão os fenómenos idênticos na sua ontologia e papel ainda que venham de pontos de partida diferentes - Harry Potter, Sveva Modignani, Tokyo Hotel, etc. Depois existem aqueles fenómenos que seguem as mesmas pisadas ainda que pertençam apenas a um consumo interno, doméstico - Perfume, Nilton, José Rodrigues dos Santos, etc. Ao se pertencer, ou desejar pertencer, a uma qualquer elite cultural - cujas configurações e limitações são tão vastas como sempre abertas nos seus flancos -, é quase imediata a sensação de impossibilidade de compromisso entre uma e outra esfera.

Mas a que Europa pertence então Portugal? Como responde Portugal a essa Europa homogeneizada, ou a outra imagem da Europa? Que gesto quer cumprir Boring Europa?

Boaventura de Sousa Santos, no seu recente Portugal. Ensaio contra a auto flagelação (Almedina: 2011), escreve o seguinte, explicitando essa história e processo: “Sem dúvida que a entrada na União Europeia transformou profundamente a sociedade portuguesa e, na esmagadora maioria dos casos, tratou-se de uma transformação positiva, para melhor. No entanto, penso que até ao presente essas transformações têm sido menos assumidas como parte de um projecto que foi adoptado com peso e medida do que como resultado auspicioso de novas rotinas impostas de fora. Parece que Portugal está no projecto europeu, mas ainda não é o projecto europeu”. E acrescenta mais à frente que Portugal se configura “mais como hóspede do que como anfitrião” (pgs. 52-53).

Os projectos de Marcos Farrajota têm sido sempre pautados por uma procura muito específica de um certo tipo de humor embrulhado em posicionamento político, e se bem que ela não é o único agente da associação Chili Com Carne, a nova configuração desta tem garantido à continuidade desse gesto uma mais nítida politização, uma entrega mais moldada a uma certa resistência - estética, estrutural, moral, social - às expectativas e modorras da cena editorial portuguesa no que diz respeito à banda desenhada. A prática editorial de Boring Europa é assinada por Farrajota, mas Ricardo Martins, Joana Pires e Ghuna X, todos eles participantes do tour em questão, têm também o seu importante contributo, seguramente.

Como se disse, este livro é uma espécie de diário desse tour, que cobriu Portugal, Espanha, França, Itália, Eslovénia, Sérvia, Áustria e Alemanha. Compreende pequenos apontamentos sobre as viagens e os encontros tidos por todos os intervenientes da viagem, todos eles mais sob a forma de composições visuais livres, desenhadas rapidamente, “sujas”, do que de abordagens convencionais da banda desenhada. Conta-se mesmo com desenhos soltos, pin-ups e aquilo que pode passar por spreads “decorativos”. Colagens, de fotografias e outros materiais, não são alheias a essa estratégia múltipla e cheia. Mais, as intervenções textuais de Farrajota ganham um grau de virulento humor se se tomar em atenção o facto de que a superfície em que escreve alguns dos textos e desenha algumas das vinhetas são arrancadas do Novo Testamento.

Mas para além dessa panóplia de impressões dos que atravessaram uma muito menos “boring Europa” do que se pensaria existir, afinal, e cuja adição de perspectivas faz moldar de uma maneira muito, muito curiosa essa mesma viagem, encontramos ainda participações dos amigos. É que essa viagem é, como já se disse, feita de encontros, quer de amigos de longa data quer de amigos frescos, todos eles orientados num mundo de produção e circulação cultural no qual a banda desenhada ocupa um lugar a ombros com a música, a criação de múltiplos, a organização de eventos, a movimentação social, tudo isto entre várias práticas artísticas. Assim, reúnem-se nomes internacionais como os de A. Zograf, Jakob Klementic, Igor Hofbauer, Andrea Bruno, todos repentes da CCC, e Jorge Parras, da Argh!, e Martín López Lam, da Ediciones Valientes, plataformas que já estiveram presentes na Feira Laica, por exemplo, outro covil de alianças e sementes de colaborações subversivo-gráficas e além. Quase todos estes, curiosamente, participam com as tais abordagens mais convencionais da banda desenhada, mas não sem providenciar com mais uma faceta interessante desta aventura europeia.

Das participações nacionais, encontramos Ricardo Martins, do Hülülülü, e Sílvia Rodrigues, do zine Sou daquelas, e enquanto membros da CCC, participantes do Destruição! Joana Pires, cada vez mais activa no colectivo, espalha uma série de apontamentos que arredondam os relatos. No final, encontramos uma espécie de adenda com histórias de Christina Casneille e Afonso Ferreira, com quem já nos cruzáramos em Summer. Sleep City #4 (e de quem os clientes do Metropolitano de Lisboa têm oportunidade ver as pequenas bandas desenhadas institucionais co-criadas com o Ar.Co), entre outros.

Quase todas as histórias tocam, portanto, aspectos autobiográficos, referentes aos acontecimentos destas visitas, mas ao mesmo tempo são também testemunho de variadíssimas práticas alternativas. Não apenas da cultura (música, artes visuais, festas, feiras) mas também das práticas propriamente ditas. Ou seja, da angariação de fundos, da organização de eventos, na forma como se gere um fundo de maneio, nos modos como se criam alternativas ao(s) mercado(s) convencional(ais), como se recebem os convidados, da cozinha à dormida, e sem esquecer aspectos de turismo, que tanto pode incluir os modelos monumentais de sempre como caminhos desviantes e conducentes a experiências incríveis, como o túnel sérvio em direcção a Cernunnos, a confirmação de que os portugueses são maus clientes e organizadores em qualquer parte do mundo, ou as coincidências em Ljubjana… E além disso, as jantaradas e conversas em torno de cervejas e cigarros, que levam a discussões breves mas que apontam a interessantes tomadas de posição face aos estereótipos, expectativas e jogos de projecção que o encontro de “nacionalidades” forçosamente fornece.

São muitos os pormenores estranhos e curiosos deste livro, deste a sua forma de organização, à “sinalização” que identifica as autorias, até ao tal orçamento ou custos da aventura, e os dados dos espaços visitados, que poderia até funcionar como convite à visita dos leitores, ou até desafio a repetirem (com variações ou não) a mesma empreitada. Nesse sentido, os custos desta viagem não parecerão tão esbanjadores e deletérios como parece dar a entender a capa do livro, mas antes uma forma de impedir que se instale o medo da inércia que as tais personagens acima citadas demonstravam, e criar uma rota de resistência eficaz a essa boring Europa

2 comentários:

MMMNNNRRRG disse...

Yo, mister... nunca apontas a Ana Ribeiro na tua resenha. Ela foi a única que desenhou a tournê inteira, é injusto não estar mencionada em nenhuma parte do texto!
outra coisa, é justo analisar o livro pela sua dimensão social, económica e cultural porque obviamente é um projecto que se presta a isso e com esse objectivo desde o início, mesmo que que a ideia tenha começado como uma piada de verão entre mim e o Ricardo Martins, o rapaz-lagosta de mil bandas e o gajo "pro" da tour, habituado a fazê.las com as suas 50 diferentes bandas... Basicamente lembramo-nos porque raios não pdoemos fazer o mesmo que as bandas fazem mas com venda de livros e expo de bd!
Falta aqui uma análise à forma como o livro / bd foi construída com a tentativa de fusão dos materiais de todos num só material de leitura, numa "meta-bd" se assim pudermos chamar. Esperava mais sob esta pespectiva do que sobre se temos os decadentes Guns'n'Roses no Rock in Rio e no estádio de futebol de Belgrado.
abraços!
M

Pedro Moura disse...

Tens razão, a omissão da Ana Ribeiro é despropositada, mas não foi intencional: uma mera distracção.
E a tua explicação é de facto muito bem feita, e é verdade que não é muito claro no texto: todos os materiais que o compõem encaixam-se de uma forma coerente, mesmo que criem um só texto multifacetado e muito texturado. Mas de certa forma é por isso que quis dizer que era um objecto "transgenérico" logo na abertura, o que não lhe retira a ambiguidade e estranheza, que é o que lhe dá o charme que tem.