Comecemos por discordar do autor. Não é possível fazer-se uma autobiografia sem factos. Se esta palavra deriva de factum, por sua vez relacionado com o verbo latim facere, “fazer”, podemos pensar numa relação que tenha mais a ver com acções de discurso, mais do que objectos, ou do que com questões de “verdade”. Por isso Wittgenstein diz que o mundo é composto por factos, dos quais nos apercebemos através dos nossos pensamentos.
Topedro quer criar com este pequeno livro um desafio, uma contestação, até mesmo uma provocação à ideia de autobiografia, sobretudo às formas empedernidas em que elas podem incorrer, num momento em que, enquanto género, pode ganhar uma presença demasiado confortável na circulação cultural. Falando da banda desenhada, talvez seja essa a razão que leva o autor a anotar no início do livro “sob o síndroma de Satrapi/Thompson”. Mas outros materiais paratextuais ajudam a aproximarmo-nos desse desafio. De Bernardo Soares cita: “tenho para com tudo que existe uma ternura visual, um carinho da inteligência – nada no coração”. E num pequeno texto introdutório, que é como que um diálogo consigo mesmo, escreve: “não tens nada para contar…
“Estranhas-te, e alguém te convenceu que somos o que vivemos, o passado é o Eu.
Pois, podes construir uma ‘história de vida’, uma autobiografia dava-te uma identidade; mas terá um espectador conteúdo?”
São muitos os factores interpeladores, que estimulam a discussão, como vemos. Para mais, quando o que se segue pode ser descrito – de forma demasiado superficial – como uma colecção de imagens avulsas, sem sequência clara, sem narratividade intrínseca, todas retiradas de um bloco de desenho oblongo, algumas em página dupla, outras singulares, quase todas horizontais, mas algumas verticais. Existem cenas de interiores, que servem de extremos, e muitas de exteriores, cenas nocturnas e diurnas, despojadas de presença humana ou delas cheia.
Superficial, dissemos, e assim abdicar-se-ia de notarmos que a primeira imagem do interior é precisamente uma cena de um interior, em que vemos parte do corpo do autor, e o seu bloco de desenho aberto, de páginas em branco. A última mostra um outro espaço interior, diferente, com um livro fechado sobre um cadeirão. Haverá aí, portanto, desde logo, uma promessa dos gestos e imagens que se moldarão nas seguintes? E uma espécie de conclusão? E poderíamos fazer um esforço – de interpretação, de força teorizadora, de imposição de sentidos? – em lermos uma sequência: o autor abandonando os seus espaços interiores e domésticos, saindo mesmo do seu espaço urbano na direcção de uma terra à beira-mar (no Alentejo, parecem algumas cenas e algumas palavras anotadas apontar), e aí abandonar-se a observações mais pausadas, começando a surgir pessoas que conversam nos cafés, que se sentam nos paredões na praia, num concerto, que pescam… Não há narrativa clara, nem palavras que ancorem os sentidos num “conteúdo” repetível verbalmente, sem dúvida, mas ainda assim evola-se desta colecção uma “identidade”, uma “história de vida”, mesmo que não seja coincidente o suficiente entre a que o autor haverá experienciado e/ou transformado no livro, e aquelas que os vários leitores tecerão nas suas leituras. Isto é, os factos estão ali, são-nos ofertados, mas são os nossos próprios pensamentos, interpretações, que os formam enquanto factos e, com eles, que tecemos a rede de relações entre eles, fazendo então emergir o mundo. Não queremos dizer que haja sempre coincidência, mesmo naquelas autobiografias em que os “factos” pareçam mais claros, em que a “verdade” pareça mais consensual. A epígrafe final, também de Bernardo Soares, apoia-nos na compreensão desse desencontro, dessas diferentes perspectivas mas que ainda assim fazem o mundo: “tudo o que sabemos é uma impressão nossa, tudo o que somos é impressão alheia”. Quer o autor então, com esta colecção de imagens desconjuntas – ou não, já que pertencem ao mesmo objecto organizado? – mostrar-nos aquilo que sabe, mas nós não, mas através de cujas impressões, as nossas, moldamo-las enquanto o que ele é?
Voltando àquele texto introdutório, parece-nos, mas podemos estar enganados, que o autor partilhará daquela ideia de que uma autobiografia será tanto mais interessante quanto a vida que se contará (“não tens nada para contar”). Mas essa é uma ideia algo perigosa, não só por hierarquizar à partida as vidas em si como “interessantes” e “não interessantes”, como por colocar a tónica da valorização no fenómeno numénico, no “objecto”, e não no acto da poiesis que é constituído pelo próprio gesto da autobiografia, isto é, a própria constituição do facto. As ciências cognitivas, aliadas à teoria narratológica, têm-se aproximado de uma descrição que coloca os processos de narratividade no centro da formação do eu. Nós somos narradores das nossas próprias histórias, e a unidade da nossa identidade é assegurada precisamente pela subjectividade da observação e experiência. É pela relação que, nas nossas mentes, fazemos das nossas próprias impressões, experiências, memórias (tudo destroços e jamais um contínuo ininterrupto), em torno de um eixo, a que damos o nome de “eu”, que se forma esse mesmo Eu. É, portanto, algo processual, não objectual. Para mais, uma autobiografia, forme-se ela por que meio for, obrigará a uma qualquer gestão dos signos, de decisões conscientes misturadas com intuições impensadas, impulsos e vontades. Uma construção de factos.
Mais, a nossa própria ideia de ver uma sequência introduz a questão do tempo, imposição nossa mas inevitável também. “Podemos perfeitamente imaginar o tempo sem fenómeno, mas é impossível imaginar um fenómeno sem o tempo”, escreve Gombrowicz em Curso de filosofia em seis horas e um quarto. Topedro providencia os fenómenos dos seus desenhos, e eles mesmos são factos, que colocamos em fiada, num texto.
O autor publicou ainda um outro volume, intitulado Diário dum pária de aldeia, uma outra colecção de imagens, que podemos projectar serem feitas nos mesmos locais que o outro livro, acompanhadas de algumas frases soltas e que poderão ser entendidas como pequenas confissões poéticas, e que não deixam ainda assim de ser vistas como gestos de um projecto autobiográfico alargado: afinal, tratando-se de imagens feitas em cadernos de desenhos, que se imaginam criados sob o domínio do exercício do desenho ao vivo, olhando os objectos (ou factos?) do mundo, que toda e qualquer imagem é um traço da presença do autor no mundo, um intervalo de tempo, observação e decisão. Cada desenho como um facto construído, cada fiada de factos (os volumes) um gesto autobiográfico. E nesse sentido, não temos aqui somente provocações, mas como novos modos de constituir factos.
Nota: agradecimentos ao autor, pela oferta de ambos os volumes.
18 de junho de 2012
Autobiografia sem factos. Topedro (edição do autor)
Publicada por Pedro Moura à(s) 3:21 da tarde
Etiquetas: Autobiografia, Portugal
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3 comentários:
Pedro,
obrigado eu, por mais uma vez ter tido a atenção do LerBD,
o "não tens nada para contar" era mera (gratuita?) provocação,
e não ponho "a tónica da valorização no fenómeno numénico, no “objecto”, e não no acto da poiesis que é constituído pelo próprio gesto da autobiografia"
de facto concordo plenamente que, tanto em termos individuais como colectivos, a identidade reside mais na memória que construímos que nas "realidades" que vivemos (sendo que, se contrapusermos "a realidade" a "o real", aquela é sempre construída e este sempre desconhecido...)
um abraço,
antonio pedro
my home is my castle...
gosto dos livros do topedro...
uma autobiografia de pensamentos...
somos o que pensamos, antes de sermos o que fazemos
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