7 de março de 2013

A Chinese Life. Li Kunwu e Philippe Ôtié (SelfMadeHero)

Originalmente, este livro foi publicado como uma trilogia em francês, onde angariou toda uma série de prémios. Tendo já conhecido várias traduções e edições, inclusive para o chinês, a versão inglesa optou por um só volume, levando desde logo a um entendimento físico da monumentalidade do projecto. Numa possível síntese, poderíamos dizer que esta é a autobiografia do artista Li Kunwu, e o modo como a sua vida se entretece de maneira indelével com a transformação da China do pós-guerra numa nação comunista e a sua modernização até aos dias de hoje. Mas este descritivo falha em dar a entender a verdadeira dimensão desta obra, a vários níveis comparável a outros títulos e artistas, como Spiegelman, Satrapi, Abiracheb, Maslov, Guibert, Baru, Pontiac, Khélif, entre tantos outros, no sentido em criarem autobiografias, em nome próprio ou alheio, de pessoas cuja memória pessoal se confunde com a memória histórica, colectiva (por mais problemáticos que sejam esses termos) de um país, uma nação, um povo (palavras que não são, de maneira alguma, sinónimos ou intercambiáveis).
Li Kunwu nasceu em 1955, em Kunming, a capital de Yunnan, a província da China que o autor mais pretende retratar no seu livro, uma vez que um retrato da China em si seria impossível de homogeneizar. Além disso, este é um retrato considerado “para fora”, para olhares externos à própria China, e a este ponto voltaremos. O autor fala aqui da sua infância pobre, do pai que era membro do Partido Comunista que fez a Revolução armada, o seu papel breve nas Brigadas Vermelhas que fizeram a Revolução Cultural, fala da sua entrada no exército e os tempos duros que eles significaram, e depois o ingresso no Partido, misto de privilégio e responsabilidade acrescida, e o seu papel de propagandista… , em todos estes passos, há sempre uma atenção particular para com os trabalhos gráficos que ia fazendo, desde simples desenhos a reportagens, para vários jornais (cujos títulos, como o “Notícias Vespertinas da Cidade da Primavera”, apoucam os nossos) ainda no exército, depois na sua província, e mesmo para a agência oficial de imprensa Xinhua News.
Li foi também um “bicycle sketcher”, tendo percorrido centenas de quilómetros por entre montanhas da sua província, e outras, para desenhar, sobre a cultura local, ou sobre as etnias minoritárias da China, e estes trabalhos seriam serializados no seu jornal (onde chegou a ser editor de arte, se não estamos em erro). Alguns desses trabalhos são aquilo que se chama algo próximo a “A viagem de Wang Xiaoniu pelas fronteiras” (esse nome, estamos em crer, é o nome da personagem avatar do próprio artista, que também utilizou para outros trabalhos cartoonescos) ou a série – fãs de Horishige e Hokusai entenderão a tradição – “As 18 particularidades de Yunnan”. Esta dimensão do seu trabalho apenas o associa a uma tradição ainda mais alargada das linguagens narrativo-visuais a que se entrega, inclusive a de repórter-ilustrador, e tudo isso é explicitamente citado e mostrado no próprio livro, em acção. Além do mais, esta espécie de amor à terra teria ainda outras formas gráficas, como uma pintura em rolo, com cerca de 20 metros, do lago Dianchi, em Yunnan (mostramos um pormenor).
Pelo que nos apercebemos, num curto espaço de tempo Li dedicou-se a esta linguagem em particular, a banda desenhada moderna à ocidental, se quiserem. Quer dizer, numa sua inflexão moderna e afastada dos trabalhos que ele fez no seio da propaganda política (cujos contornos, diga-se de passagem, podem ser verificados na exposição patente no Museu Fundação Oriente, de posters e outros objectos gráficos deste capítulo da história) . Há, por exemplo, um livro que colecciona cartoons - na verdade, curtas anedotas em sete vinhetas (mais o título para fazer a grelha) em que ele mesmo surge como personagem, e num estilo próximo do chibi – e um outro volume cujo título, julgamos, implica a pintura. Além do mais, já fez novos trabalhos de reportagem em banda desenhada, incluindo mesmo fotografias, ilustrações antigas, numa possível extensão da memória histórica que aqui se encetou.
O tipo de trabalho gráfico de Li Kunwu não tem nada a ver com a banda desenhada de maior sucesso comercial, inclusive através de traduções, de paragens como Hong Kong ou Taiwan, cuja produção incide sobretudo em banda desenhada de artes marciais e fantasia, altamente cinética, colorida, espectacular e relativamente formulaica. No entanto, apesar de não conhecermos o trabalho “chinês” de Li, acreditamos que estaria mais próximo das linguagens mais típicas daquele país, sobretudo no que diz respeito ao uso, pelos serviços de propaganda do Partido Comunista Chinês durante a Revolução e após a mudança de regime, do formato conhecido por lianhuanhua, que consistia em pequenos livros de bolso, com uma imagem por página e legendas ora em cima ora em baixo. Se estes livros foram empregues para histórias vitoriosas da ditadura e conquistas do proletariado urbano ou dos bravos camponeses, face aos princípios burgueses e capitalistas dos antigos proprietários (alguns dos quais publicados em português, pela Edições em Línguas Estrangeiras, distribuídas por cá pelo MRPP), após a Revolução Cultural esses exageros ideológicos esmoreceram, e permitiram um retorno a contos tradicionais, à mitologia autóctone, ou mesmo contos de fantasia e românticos.
Nalgumas imagens, o artista emprega algumas técnicas necessariamente reminiscentes das tradições pictóricas clássicas chinesas, como as técnicas de rápidas e vigorosas pinceladas únicas para criar folhas de bambu, ou a técnica de criação de perspectiva através de estratos (e não a técnica de ponto de fuga ou a “atmosférica”). Se olharmos as vinhetas que isolam paisagens montanhosas, rios, troncos nodosos de amoreiras ou outras árvores, arbustos, pontes e juntas de bois, ou aquelas que apresentam panoramas das vilas e cidades, de ruas apertadas, ou as sinuosidades dos socalcos dos campos de arroz, não estamos longe dessas tradições seculares.
Pelo uso de ângulos invulgares que levam a que haja escorços e distorções muito expressivas dos corpos humanos, muito estilizados logo à partida, um uso comedido mas agudizado de onomatopeias em linhas grossas, recorda-nos Fred, e o seu uso de silhuetas rápidas assemelha-se à expressividade de um Franquin tardio. Todavia, como é de esperar, não fará sentido nenhum arrolar a sua arte para a tradição europeia, de modo isolado. Porém, não nos podemos esquecer que a colaboração com Philippe Ôtier – que ajudou à construção geral, a certas focalizações, escolhas de temas a abordar, tratamentos, e eventualmente à planificação de episódios - coloca imediatamente na mesa uma modelação do trabalho com um intuito de circulação junto a um público europeu. Como diz Ôtier num brevíssimo prefácio apenas textual, ele não é apenas o amigo e colaborador do artista, mas (todo) o Estrangeiro, que “tem tudo a aprender”. A missão do livro não é apenas contar uma história, é formar o leitor (estrangeiro), para que este conheça “a verdadeira China”. Essa é mesmo uma das formas de publicitar esta trilogia na própria China, que insiste na ideia de que ela serve como introdução aos estrangeiros à “verdadeira China”.
Apenas nas primeiríssimas páginas vemos um “presente”, em que Ôtier discute o projecto com Li, mas logo após isso é como se o seu trabalho se eclipsasse: tudo nos leva a crer estarmos a ler uma autobiografia escrita “a solo” (isto ganha uma drástica mudança no início do 3º livro). Não é. Como escreve o co-argumentista francês, no prefácio, o seu trabalho é “ajudar [Li] a reconstruir [a sua vida]. A negociar, com o verdadeiro Lao [“Velho”] Li, que inflexões dar aos seus diálogos e história”. Ora, esta relação abre uma brecha no “pacto autobiográfico” mais usual, mas não se consubstancia numa experiência totalmente inédita ou inesperada, uma vez que existem outros casos de autobiografias em banda desenhada (e não vale a pena entrar no campo literário, onde existe uma miríade de graus de produção) feitas a quatro mãos, como La Guerre d’Alan ou Le Photographe, de Guibert e seus companheiros, por exemplo. E Jan Baetens, num seu artigo sobre autobiografia, previa desde logo a hipótese de não apenas termos um desenhador a emprestar a sua arte a quem conta, mas a de um escritor a apoiar um artista a contar a sua, que é precisamente o que se passa aqui.
O título da primeira parte ou livro diz, nesta tradução, “O tempo do pai”, mas poderia ter sido igualmente traduzido por “O tempo da geração mais velha”, e na verdade, a figura central nessa parte não é somente o próprio pai de Li mas Mao. Desde essas primeiras páginas até às últimas palavras, endereçadas duplamente, mas de modo diferenciado claro, aos leitores chineses e aos estrangeiros, que Li torna nítida que a sua voz pretende ser um veículo não tanto do culto de si mesmo, mas de uma experiência que pode passar por exemplo da de milhões dos seus camaradas.
A expressão de Goethe do “fio vermelho” ganha aqui contornos muito particulares, já que um outro uso metafórico do “vermelho” ganha proeminência no contexto da China comunista. Repare-se nos títulos dos capítulos desse primeiro livro: “Puro. Vermelho.”, “O pequeno livro vermelho”, “Exército Vermelho”, etc. A vida de Li confunde-se de uma maneira profundíssima, íntima, quase anuladora da individualidade, com a história do seu país. Menos do que uma autobiografia propriamente dita, portanto, no sentido da “vida de um indivíduo”, A Chinese Life (o próprio título do projecto em si aponta, através do artigo indefinido, para uma busca pela comunalidade, e não pela excepcionalidade) é a história de um cidadão, cujo centro de gravidade era a vida do partido e da nação em construção. Sendo o género da “memória”, o livro fala da experiência subjectiva de Li, claro, e as suas imediatas relações, com a família, os colegas da escola, os camaradas no exército, os companheiros de luta e na vida profissional, a mulher, etc., mas é muito raro que passemos algum tempo a revolver nas emoções dessas mesmas relações. Bem pelo contrário, parece sempre que essas mesmas relações, até no âmago do que seria mais marcante e emotivo e íntimo, há sempre a presença ideológica de um propósito acima do indivíduo. Eis dois exemplos. Não vemos Li a declarar o seu amor por Fengfeng, e a pedir a sua mão em casamento ou coisa que o valha; já a conhecendo e havendo indícios de que poderia de facto haver uma relação amorosa (de resto, seguindo trâmites bem diferentes dos da nossa cultura), ele pede a Fengfeng se ela poderia posar nua para ele, uma vez que ele pretende formar-se o melhor possível para servir a propaganda; ela recusa-se veementemente e vai-se embora, furibunda, mas, na página seguinte, casam. O segundo exemplo é a morte do pai: algo surpreendente para a família, a notícia da sua iminente morte é chocante, e há um crescendo da sua despedida, mas as últimas palavras, conselho e pedido ao filho, é que este doe todo o último salário do pai ao partido; nas suas palavras, “A minha contribuição, uma última vez, para o Partido” (na verdade, seguem-se outras palavras, mais “pessoais”, emotivas, mas partindo do céu e com a ausência do corpo do pai do leito de morte, tratar-se-á de uma fantasia, de uma projecção?).
E haveria outros exemplos. Por vezes ficamos na dúvida se a distância histórica que separa a memória dos eventos é falha na distância aos princípios políticos que norteavam essa vida; não, o espírito do autor está ainda imbuído (e porque não o haveria de estar?) nos valores da Revolução. Não estamos perante uma autobiografia que olha para um regime com ódio e confronto, como no caso de Persepolis, de Satrapi, nem tampouco um olhar irónico, desgastado e anti-romântico como o de Sibérie, de Nikolai Maslov. No entanto, tampouco temos aqui uma estrutura narrativa clássica que nos permitisse dizer que a Revolução é retratada de um modo totalmente positivo face aos abusos anteriores. Li não se coíbe de um mea culpa por ter participado na Revolução Cultural, que é hoje oficialmente entendida como um período errado do processo revolucionário, mas há uma defesa, ainda assim, talvez ambivalente, de muitos dos elementos desse mesmo processo, que nós – aqueles que nos definiríamos como europeus, republicanos, democráticos – veremos com olhos bem diferentes. De resto, Li Kunwu continua hoje activo no seio das actividades (alargadas) do Partido, e A Chinese Life não é um espaço de questionamento – e muito menos de “traição” - desse “engajamento” e programa da sua vida inteira (e não o tem de ser, queremos tão-somente apontar uma espécie de “desejo” ou “inclinação” que existirão nalgumas expectativas da parte dos leitores europeus contemporâneos de encontrarem críticas àquilo que não e coaduna aos seus modelos (europeus, repetimos; e nós pessoalmente não nos retiramos desse grupo). É como se Li Kunwu quisesse demonstrar que, apesar de todos os escolhos, desvios e arduidades, valeu a pena. O fecho do livro é uma prova, material, desse sucesso, quer a nível doméstico quer a nível nacional (em todas as esferas: económicas, industriais, desportivas, militares, sociais, culturais, etc.). Tal como ocorre noutros países, como a Coreia do Sul, pode ser chocante para nós que o “desenvolvimento económico” seja um objectivo a conquistar mesmo que se tenham de suspender a procura por um “desenvolvimento social, humano e cultural” (discussões que ganham forma no tema “development versus growth”, por exemplo), mas recordemo-nos de que estas populações conheceram a miséria absoluta, a desolação quase total do seu país a todos os níveis, e que esta visão de prosperidade significa a protecção e o afastamento da fome, da iliteracia, da dependência de classes superiores, da mortalidade abjecta, de uma justiça cega. Li Kunwu deixa essa diferença de visão clara, consciente, mas não abdica desses mesmos valores. (Terá esse trabalho de ser feito sempre “de fora”, como o caso da controversa biografia Mao. A história desconhecida, que deve ser lida igualmente com um grão de  sal, de Jung Chang e Jon Halliday, que sairá em breve em português pela Quetzal?)
Se citarmos aquelas primeiras perguntas colocadas por Tony Judt em Um tratado sobre os nossos actuais descontentamentos (“Sabemos os preços das coisas, mas não fazemos ideia do que valem. Sobre uma decisão judicial ou um acto legislativo já não perguntamos: é bom? É justo? É correcto? Ajudará a alcançar uma sociedade melhor ou um mundo melhor? Eram estas em geral as perguntas políticas, ainda que não propiciassem respostas simples”), e mesmo tendo em conta de que o analista se debruça sobretudo sobre a realidade euro-norte-americana, é esse tipo de questionamento mais geral que parece operar na obra de Li Kunwu. Mas o artista chinês é alguém que tem de olhar para a história vivida, mais do que operar o futuro que agora se estende. E, verdade seja dita, A Chinese Life não esconde o facto de ser uma narrativa culturalmente inflectida (em vez da ilusão de ser “universal”), precisamente a melhor maneira de garantir que, enquanto história pessoal contada, implicará um acto de tradução junto aos seus leitores, em si mesmo, nas palavras de Gabriele Schwab, “um processamento psíquico de narrativas culturais e conversão numa história individual”. O que contribui sobremaneira para uma mais abrangente tradução cultural, um diálogo alargado.
De resto, a compreensão das formas relacionais e sociais chinesas, que obedecem menos a princípios individualistas do que de uma intricada e fortíssima noção de pertença a uma comunidade, é algo de quase incompreensível para nós, e nesse enquadramento, a crítica aos políticos, às opções, etc., não se pauta pelos princípios que reconheceríamos mais imediatamente (o que não quer dizer que não existam). As páginas que falam do massacre em Tianamen, em 1990, são aquelas onde essa tensão entre uma compreensão de que os ocidentais têm uma leitura diferente e a ideia de que o processo político não podia ser interrompido é mais visível. Perguntamo-nos em que medida é que muitos destes tratamentos foram conduzidos por Ôtier, ou que tensões terão existido nessa mesma colaboração, para que a voz de Li chegasse aos seus (primeiros leitores). Esta diferença cultural, esta sim intransponível – pois as diferenças de alimentação, língua, vida quotidiana, são sempre superficiais, apesar de tudo -, são demonstradas e discutidas de uma forma subtil quando, no final do livro, Li visita Paris para expor e debater a sua obra pictórica.
Hoje em Beijing o culto a Mao foi transformado numa indústria cultural e turística, e há até mesmo o ressurgimento de um “Communist chic” ou “kitsch”, e pode tornar-se difícil compreender as raízes desse crescimento, dessa história, olhando esses filtros. As cidades poluídas ao ponto da exaustão, as terríveis condições de trabalho, a incansável dedicação à construção, a política do filho único, a aparente ânsia na conquista dos mercados internacionais… tudo isso pode hoje surgir com uma forma tremenda e incompreensível, e A Chinese Life poderá permitir um olhar, aceitemos que preso a uma perspectiva única e limitada, mas ainda assim um olhar que nos ajudará a compreender um pouco melhor o porquê desse esforço titânico. E talvez essa compreensão possa então levar a uma consideração do futuro, ou, voltando a Judt, a um “diálogo público eticamente informado”.
O terceiro volume (“O tempo do dinheiro”) parece desviar-se substancialmente da “visão objectiva de uma simples testemunha”, como explica o próprio Ôtié no interior da narrativa (por essas palavras não entendermos um desejo ontológico de atingir a verdade, mas antes como a tentativa de fazer passar o melhor possível essa mesma experiência confinada). Em vez de nos prendermos somente a Li, como o fizéramos nos volumes anteriores (sendo o segundo chamado de “O tempo do Partido”, organizando cronologicamente a vida de Li), seguimos outras personagens, como se de uma ficção novelesca se tratasse, mesmo que essas personagens façam parte do universo familiar do autor (a irmã, conterrâneos pobres que depois se tornariam empresários de sucesso e respeito). Não são mostrados os instrumentos que nos permitem aceder a essas memórias e experiências, mas obliquamente é-nos mostrada a possibilidade de que tenham sido providenciadas por entrevistas, conversas, encontros entre essas mesmas pessoas/personagens e o autor. Além disso, mas apenas intensificando uma estratégia que já se notara antes, existem páginas que pulverizam uma perspectiva centralizada e organizada, passando a dar atenção ao que parece ser uma multiplicidade heterogénea de situações, cenas, pessoas, pormenores, com ou sem acesso aos diálogos, que não se coordenam naturalmente entre si, e nos provocam a sensação de estamos a atravessar uma multidão com Li, com a consequente explosão multiplicada de “cenas alternadas” a cada passo. Nalguns desses momentos, é como se surgisse um olhar foto-etno-sociológico, ora das “novas” populações urbanas ora dos camponeses que ainda seguem alguns caminhos tradicionais e, talvez, milenares (evitando, ao longo da obra, ora cair numa ideia básica de “exotismo local”, ora ficar-se pelas “novas paisagens”, não para criar aqueles clichés cansados do “país de contrastes”, mas para dar a ver todo o espectro de existência real das pessoas que ali vivem). Corroborando, dessa forma, a representação colectiva da conquista pela China de papéis diversos no mundo, de atletas a artistas, passando por homens de negócios e políticos. E se há um ponto nevrálgico do início real desse crescimento, essa viragem, será encontrada na doutrina conhecida como “Um país, dois sistemas”, implantadas por Deo Xiaoping no 12º Congresso do Partido Comunista em Setembro de 1982 - este é mesmo um episódio que ganha uma particular atenção da parte do artista, uma vez que serve de ponto de acalmia face à maneira como Li enfrenta a China dos nossos dias, radicalmente diferente daquele que ele mesmo ajudara a construir ou até, quem sabe, imaginar. Ler as palavras do “Grande Reformador” Xiaoping é muito curioso no nosso ponto do tempo, já que tudo o que fora arquitectado nessas frases veio a verificar-se, de facto, desde o retorno de Macau e Hong Kong à soberania administrativa central, a emergência de uma camada “burguesa” e “rica” no interior do comunismo próprio chinês e a transformação do país numa moderna e riquíssima nação, que não apenas é uma potência económica, mas também política, e veremos se energética, cambial, etc., com repercussões directas e francas na Europa, a que Portugal não é de forma alguma alheio. Nas palavras de Xiaoping, citadas no livro, atingiu-se “uma sociedade socialista com características chinesas”, construídas sobre os pilares do “pragmatismo, eficácia e desenvolvimento”. Mas como dissemos, o preço, porém, não é explorado, o tal preço humano, social, cultural. Li não pretende surgir como alguém que compreendeu todos os resultados, e chega mesmo a confessar a sua surpresa, sobretudo quando observa as cidades modernizadas da China e a sua nova população que desconhece em absoluto as adversidades pelas quais os seus pais e ele mesmo atravessaram, mas ele é tão-pouco moralizador ou crítico.
Philippe Ôtier, em algumas entrevistas, tem dito que este livro provocou algum ímpeto junto à geração de Li Kunwu, e que é bem possível que se venham a repetir gestos por aqueles que viveram e experienciaram toda a história da China moderna, desde a tomada de poder pelos Comunistas até à assunção da imensa potência económica que é hoje. Não deixaria de ser significativo que fosse uma obra de banda desenhada, para mais com estratégias influenciadas ou moldadas para nutrir o interesse europeu, a despertar um movimento de memórias e introspecções análogas.
Regressemos a alguns aspectos formais, da inteira responsabilidade de Kunwu. A esmagadora maioria das imagens é criada somente com pincel e tinta negra, mas num ou noutro momento, sobretudo quando há desvios temporais da linha principal que se segue, o artista utiliza aguadas para dar alguma textura maior às imagens, um outro tipo de “peso”. Como havíamos indicado ao princípio, existem três páginas introdutórias que mostram Li a discutir com Ôtié e uma mulher o projecto que agora lemos, e essas imagens são coloridas de uma forma vivaz e garrida. A composição de A Chinese Life é também maioritariamente retórica, com as vinhetas alterando a sua forma e tamanho conforme as necessidades diegéticas e representacionais, incutindo às formas líquidas dos corpos das personagens uma dinâmica muito própria. Com quase 700 pranchas, é expectável que se encontrem aqui todas as tipologias possíveis nessa exploração, desde pranchas com vinhetas “normalizadas” – personagens em processos de campo/contra-campo, com balões de fala – a pequenas sequências internas dramáticas em silêncio, sub-divisões sucessivas de um espaço para dar a ideia de repetição ou celeridade (recordando uma das técnicas de Töpffer em Histoire d’Albert), e splash pages. Quase todas essas páginas seguem uma ordem rectilínea, porém, ordeira e “naturalizante”. Mas há casos onde o autor explora as capacidades expressivas de construções inusitadas, com vinhetas “cortadas” em ângulos abruptos, ou como que “estilhaçando” a composição, para usos emocionalmente reveladores, quer negativa (angústia, solidão) quer positivamente (ânimo revolucionário), mas também para uma quase velada crítica ao processo descrito, como no centro da Revolução Cultural, na alteração dos nomes tradicionais de ruas e templos por expressões “doutrinárias”. Em suma, este livro oferece toda uma panóplia de estratégias compositivas que poderia servir de modelo ao seu ensino (quer prático quer analítico). Sendo uma parte de leão da obra sobre as actividades artísticas de Li Kunwu, desde criança, é natural que vejamos, marchetadas na matéria visual do punho do artista, essas mesmas produções, usualmente num traço ou técnicas visivelmente diversos: desenhos, pinturas, posters, quadros. Por outro lado, uma palavra deveria ser deixada para a mão-cheia de fotos que ilustram as páginas de capítulos, enquanto “provas” da historicidade e veracidade da construção do autor (um uso análogo ao de Maus, ainda que menos explorado em termos de articulação directa com a matéria da narrativa, tentada apenas aqui e ali). Nesse sentido, a questão da transmedialidade torna-se também importante de analisar em A Chinese Life, obra que importa conhecer por um público atento e interessado na maturidade do meio.
Nota final: agradecimentos a Filipe Leal de Faria, pelo empréstimo do livro.

2 comentários:

Anónimo disse...

zzzzzzzzzzzzzzzzzzz

Pedro Moura disse...

Pssst, senhor anónimo, acorde que já passou o seu blog.