Não pode haver dúvidas de que Bastien Vivès, tal como Joann Sfar e outros autores contemporâneos, encontrou um caminho perfeito para dar vazão, espaço de publicação e circulação à sua incansável produção, ao mesmo tempo que procura uma variação interna aos géneros, estilos e humores que praticam. Depois de uma apresentação matura e emocionalmente complexa, com títulos tais como Le goût du chlore, Dans mes yeux, e Polina, Vivès foi enveredando por linhas de humor desabrido como La famille e Les melons de la colère. Mais recentemente, o autor parece interessado em tentar compreender até que ponto poderá explorar géneros mais convencionais ou pautados por regras costumeiras de territórios mais habituais. Apesar de ser de uma geração bem diferente da de Fabrice Neaud, Jean-Christtophe Menu, David B. e outros, Vivès parece seguir a mesma linha de autor relativamente alternativo que segue subitamente uma pulsão trabalhar para o mainstream. Em primeiro lugar, com a colaboração de Ruppert & Mulot em La grande Odalisque, e agora com o uma equipa composta pelo “planeador” Balak e o artista-colaborador Sanlaville nesta verdadeira saga que imita os princípios da mangá.
A associação à banda desenhada japonesa é, na verdade, óbvia. Não se trata aqui de uma mera homenagem, ou aproveitamento de alguns temas ou modos de trabalho, ou sequer de uma espécie de diálogo entre tradições diferentes de banda desenhada, como, por hipótese, Sky Doll ou Monster Allergy. É todo o projecto. O livro tem as mesmas dimensões que os tankobon maiores (ou “kanzenban”, de 21 x15 cm, como toda a colecção Sakka, a série Pluto, etc.,). As primeiras dez páginas são coloridas, para depois passarem a ser preto-e-branco, o que é uma estratégia reconhecida daquele formato. Há mesmo uma pequena piada na contra-capa (sob a capa protectora) sobre o sentido da leitura ser ocidental. Discutivelmente, poder-se-ia dizer que os desenhos de Vivès (sobretudo das personagens) procuram um dinamismo mais célere, uma figuração mais sumária ainda que o habitual (como por exemplo a flutuação entre desenhar os rostos detalhados, esquematizados ou deixar uma mancha branca), uma planificação que convida a um folhear mais fluido, e que os cenários detalhados (sobretudo de Sanlaville) aferram a acção num mundo concreto, tudo isso recordando as estratégias mais comuns da banda desenhada japonesa de estúdio (tudo isto devido às “regras” de produção particular de Last Man, cf. adiante). Usa-se mesmo aquele tipo de construção em que no interior e uma só vinheta se repetem as mesmas personagens em planos diferentes, para acentuar um impacto emotivo, ou uma percepção espacial ou a relação entre elas, de um dramatismo próprio do gráfico (e que havíamos abordado parcialmente com uma obra coreana).
Mas para além disso tudo, claro, está a história em si.
Last Man estabelece um universo narrativo que parece passar-se numa Idade Média europeia mitificada. Encontramo-nos numa pequena aldeia, e parece que muitas pessoas se dedicam a uma espécie de combates de artes marciais altamente ritualizadas, e que envolvem não apenas treino e embate físicos, mas a manipulação mágica de energias. No entanto, existem como que “fugas” ou “associações” a elementos retirados dos tempos contemporâneos, desde sofás e restaurantes, de cigarros a motociclos, desconhecidos pela maior parte da população. Seguimos Adrian, um pequeno rapaz que não é muito bom combatente, que parece ter perdido a oportunidade de entrar no torneio anual, e que parece ser um importante factor de respeitabilidade social e ritual de passagem. No entanto, a sua aliança a um forasteiro de comportamento bem diverso dos demais, Richard Aldana, que é bruto como as casas mas nada liga à dimensão ritualística, coloca-o novamente no ringue. Na verdade, se a expressão “last man” se aplica a Richard, o que ainda não é claro, então é precisamente o contrário da noção de Nietzsche. Richard Aldana é na verdade um Übermensch que actua em detrimento de todos os outros homens desta narrativa, que surgem como “efeminados” pelos rituais; e se este discurso pode parecer misógino, não o deixa de ser, mas procura seguir as lições do filósofo alemão mais do que descrever política sexual. Aldana é um homem da carne, ao passo que todos os outros procuram criar um nome e fama através dos combates associados à religião deste mundo, com máscaras, trejeitos e truques. Ele é um “blasfemo”, que suja as mãos, não respeita as preces aos espíritos, é um selvagem (mas sê-lo-á “ainda”, “outra vez”, “apesar de” em relação aos restantes?), mas por isso será seguramente o elemento disruptivo que colocará a situação inicial, em estase, num novo ciclo de movimento.
Em torno dessa união por conveniência, todos os restantes elementos vão-se agregando: o mistério das origens de Aldana, o seu envolvimento amoroso com a mãe de Adrian, os contornos ocultos que regem aquele reino e o seu torneio, e as demais ameaças que irão certamente surgir progressivamente ao longo da série (prevêm-se dois volumes por ano). Percebemos então que há aqui uma concatenação de elementos díspares provindos de toda uma galáxia de animação, banda desenhada e jogos japoneses, desde Os Cavaleiros do Zodíaco, Darkstalkers, Street Fighter e, acima de todos e como referência central, Naruto. Mas é óbvio que esses cruzamentos são também já usuais da cultura popular contemporânea, de Mortal Kombat a Adventure Time… (e os próximos volumes estenderão a “rede” de referências e parece que Mad Max, As Crónicas de Nárnia, Star Wars, e muitas outras coisas terão aqui ligações).
É também importante notar que Last Man faz parte da oferta da Delitoon, uma plataforma de bandas desenhadas online, em língua francesa, um projecto de Didier Borg, um dos editores da Casterman, ou melhor dizendo, da colecção KSTR, que tem publicado toda uma série de novos autores, géneros mais “mesclados”, o que inclui todo o material saído da Delitoon. Apesar de existirem dois volumes em papel, o terceiro está quase concluído, quando escrevemos estas linhas, no site. Aliás, desde logo aconselhamos a vasculharem todos os documentos acessíveis, os vídeos, entrevistas, etc. que darão uma imagem completa dos métodos de trabalho, gestão de tempo, processos “de estúdio”, mas também de capacidade de comunicação com o público, o que não deixa de ser uma estratégia muito completa de publicidade. E essa vertente comercial não é de somenos importância, dado o apoio que os autores encontraram, inclusive junto à Wacom, que possivelmente lhes disponibiliza os incríveis Cintiq e periféricos com que trabalham. Não querendo criar de forma alguma hierarquias, e muito menos pensar que se trata de algo obrigatório a todos os autores, estamos aqui porém afastados de uma atitude artística/artesanal para entrar no domínio da mais conseguida das comunicabilidades, o que reverte para a circulação da obra – projecto popular, comercial, multimediático - junto a um público o mais alargado possível.
Em muitos aspectos, e os próprios autores o confessam (através das entrevistas mas também nos materiais complementares no fim dos volumes, tiras e “diários de produção”), Last Man pode ser visto como um decalque de Naruto e títulos quejandos para um ambiente europeu. Não apenas por haver todo um eco em relação à aprendizagem marcial, aos combates com técnicas mágicas, os trajes e nomes coloridos (também The Immortal Iron Fist, de Fraction e Brubaker seguiam elementos idênticos), mas porque o processo de construção imaginativa que impera sobre esta Europa de Idade Média não deixa de ser a mesma que preside a esmagadora maioria do pseudo-Japão feudal pejado de samurais e ninjas e yokai que encontramos nas séries de banda desenhada e animação. Esse é um dos pontos curiosos da construção de Last Man, e estamos em crer que, à medida que vá avançando, iremos descobrir pormenores que perfarão a “cultura” da obra assim como do seu “universo” espacial desdobrando-se em novas paragens e implicações.
Adrian não é de forma alguma parecido com Naruto em termos de personalidade, uma vez que este é maroto, espertalhão para umas coisas e pateta para outras, ao passo que Adrian é antes uma criança mais inocente, com boa vontade mas sem poder real (por enquanto). No entanto, a forma como são construídas as redes geométricas entre amizades, rivalidades, admirações e medos, inclusive aquelas que envolvem as questões sexuais (mais inocentes no caso de Adrian e Élorna, mais tórridas entre Richard e todas as mulheres com que se envolve), poderá encontrar paralelos quase ponto por ponto.
Aliás, esse nível de “maturidade” aparente (violência, sexo, etc.) também remete para séries de animé como Dragonball Z e Naruto Shippuden. Como se sabe, estas são consideradas mais maduras do que as séries originais – respectivamente, Dragonball e Naruto -, mas é sempre necessário compreender toda a matéria diegética das primeiras para compreender as segundas (numa clara economia de manter vivo o interesse do público original, que vai crescendo com a série).
Last Man não perseguirá essa curva, mas dá início logo num nível que certamente quererá conquistar, sobretudo, adolescentes mais velhos, jovens adultos ou adultos que tenham uma tremenda nostalgia por este tipo de amálgama de referências.
Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta dos volumes.
11 de dezembro de 2013
Last Man. Balak, Bastien Vivès e Michaël Sanlaville (Casterman).
Publicada por Pedro Moura à(s) 10:28 da manhã
Etiquetas: França-Bélgica, Mainstream
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