
Há uma atenção particular e gráfica para o modo sonoro: onomatopeias sublinham todos os gestos, por mais insignificantes que eles pareçam ser, desde a máquina de barbear ao zumbido de uma lâmpada solitária, dos tacões no soalho às baforadas no cigarro, tudo parece ganhar uma dimensão adicional que não necessitaria noutras circunstâncias. Todavia, o facto destes “eventos” serem sublinhados pelo som servem precisamente para acentuar a ausência de outras dimensões mais dramáticas ou espectaculares. São elas que “enchem” o espaço, o texto, a vida de Abe. Se outros textos em torno da velhice, há pouco discutidos neste espaço (Living Will, El arte de volar), demonstravam ainda a resistência possível da velhice ao tempo, as formas como se podem assumir os papéis activos que ainda restam na vida, esta narrativa de Seth parece antes prender-se aos fiapos da mesquinhez, aos egoísmos destilados, aos rancores guardados durante anos, e que desgastam as personagens. Veremos se o término está próximo, e como fechará o cômputo delas.

Talvez para assinalar essa representação, ou melhor dizendo, reconstrução das memórias da infância, Seth opta aqui por um estilo mais arredondado, cartoonesco, próximo de certos estilos de humor que ele próprio admira e segue, desde Peter Arno a John Stanley. Essa factura, por assim dizer, não quer portanto criar uma total ilusão de “verdade” ou de “regresso prístino” dessas memórias, e o autor vai deixando questões que colocam em causa algumas das memórias ou da arquitectura das reminiscências. Uma dessas questões é coloca de forma subtil mas visível, para que os leitores atentos a “cacem”: Seth vai indicando toda uma série de nomes de ruas e bairros e pontos que presumimos serem verdadeiros e existentes naquelas pequenas cidades de Ontário, mas há um momento em que ele nos mostra um pequeno edifício que indica o nome “Dominion”. Os leitores do número anterior de Palookaville reconhecerão o nome, e aperceber-se-ão de que essa palavra cria de imediato um factor destabilizador da suposta “verdade judicial” do que está a ser contado, até certo ponto uma expectativa típica na leitura da autobiografia (tal como discutido por vários teóricos, como Elisabeth El Refaie), mas ao mesmo tempo ela permite que se estabelece uma tensão entre a “auto-ficção” e outros modos de poder criar a “autenticidade” neste tipo ou género de banda desenhada.
Contudo, não são essa tensão e negociação próprias do funcionamento da memória humana? Tal como Kundera, também Seth é um criador de metáforas poderosas da memória. A “grelha” em “Nothing Lasts” é ainda mais apertada do quem “Clyde Fans”, partindo de um modelo de 4 x 5, mas aqui e ali fundindo vinhetas para dar a ver uma cena maior, usualmente de um edifício ou um retrato, ou uma cena mais significativa. Algumas dessas imagens levantam porém um problema aos protocolos de leitura. Se algumas delas terminam as páginas, não levantando problemas de maior, e apenas num caso abrindo a página, existem outros momentos em que elas se encontram a meio do percurso e lançam o leitor na dúvida: deverá ler-se a vinheta maior logo após a vinheta menor que a antecede, ou deve ler-se a vinheta menor em baixo e depois passar para grande à direita? Este breve desarranjo não é grave, nalguns casos é claro, e é, claro, propositado, servindo talvez para fazer “tropeçar” a leitura e portanto impor uma velocidade muito particular, um ritmo de retorno e avanço lento, conservando todo o projecto na filosofia do autor. Mas há outras metáforas. A dado momento, e tirando partido desta grelha apertada, Seth fala de umas gavetas onde guardava, ou jogava apenas, brinquedos velhos que já não o interessavam, velhos modelos de plástico de aviões, carrinhos ou bonecos. À medida que a gaveta de enche, as figuras começam a apertar-se até se quebrarem e não deixarem senão fragmentos de si mesmas a encher esse espaço. Pela economia da narrativa e a navegação das páginas, Seth faz passar dessa discussão sobre os brinquedos para a de um cinema local, na página seguinte. Mas repare-se como estando lado a lado essas imagens, e apesar da imagem do interior do cinema poder ser lida como uma imagem contínua sobre a qual está sobreposta a grelha das vinhetas, não só esses espaços acabam por isolar as figuras (estão juntas, partilham um ritual social, mas na sua acção de entrega imaginativa ao filme estão em espaços isoláveis na sua maioria) como elas parecem imitar as peças quebradas dos bonecos. Quererá o autor acentuar o isolamento das pessoas? Ou dele mesmo quando criança das restantes criaturas? Somente impor um ritmo de narratividade e tempo, como querem certas teorias semióticas da banda desenhada? Ou permitir uma navegação em dois sentidos, que tanto aparta como tece esses “fios de memórias”?

Menos autobiografia do que observação momentânea, existem vários trechos que farão recordar os leitores de John Porcellino do tipo de “haikus” possíveis de surgir nessa entrega ao “sem-importância”. A repetibilidade das imagens e a ausência de um tratamento que melhor a qualidade das imagens enfatiza essa predisposição ao banal. A grelha irrepreensível insistirá numa certa disciplina do corriqueiro, tornado afinal “Rubber Stamp Diary” num texto menos interessante pelo que revela do que da forma como se revela e nos obriga a repensar as formas de atenção e de trabalho.
Num só volume, de um mesmo artista, e correspondendo a um período relativamente similar de tempo em termos de produção, eis como Seth nos dá a ver três modos totalmente diversos - ainda que com grandes traços comuns - de tratar a memória, de tecer narrativas e até mesmo de gerir as matérias visuais e gráficas de uma mesma mão. A obra de Seth é de uma sofisticação muito complexa, ainda que aparente tratar-se de algo quase indolor de criar. Aquela expressão do “falsamente simples” poderia ser aplicável de uma forma perfeita a este autor, se não estivesse gasta por um uso abusivo em relação a trabalhos que mimam o tipo de profundidade que Seth atinge (relembremo-nos, a título de exemplo, de Daytripper) para se ficarem por uma superfície demasiado burilada. Talvez baste dizer que cada vez mais o título de Palookaville faz menos sentido.
2 comentários:
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