Sin Titulo é um livro de uma esclarecida mas assegurada beleza. Stewart opta aqui por uma linha ainda mais simples, mais limpa e directa do que no seu trabalho mais comercial. O uso de pontos negros para olhos é uma tradição bem longa, que se estende desde a dita “linha clara” hergeana até à obra artística de Julian Opie. Quase sempre essa estratégia reduz drasticamente a possibilidade de expressividade gráfica aos olhares, deslocando antes a transmissão de emoções, estados de alma ou reacções a outras partes possíveis, desde as linhas restantes que compõem os rostos, às posições dos corpos ou outras pistas subtis. De certa forma, essa estratégia até ajuda a evitar opções de maior melodrama básico, e Stewart domina de forma correcta a expressividade dos corpos das suas personagens. Se a galeria apresentada de personagens logo nas guardas do volume (reutilizando uma cena quase no final da narrativa) mostra algum grau de familiaridade e modulação de princípios homogéneos na construção física das personagens, o autor é capaz de variações suficientes para os diferenciar e tornar nítidos nas suas vidas internas. De resto, a abordagem de Stewart aproxima-o de autores tais como Philip Bond e Warren Pleece, com quem já cruzou páginas, autores que enveredem por uma combinação de naturalismo e estilização “abonecada”. Podíamos mesmo considerar, até pela existência de algumas afinidades, para além da figuração, ao nível da temática e gestão de planos e ângulos, etc., o David Mazzucchelli de Cidade de Vidro.

Ou seja, no que diz respeito à dimensão visual de Sin Titulo, Stewart tem aqui uma confirmação dos seus talentos. Porém, a banda desenhada é uma arte holística, e não de elementos isolados entre si. E a narrativa é um problema. Há uma promessa e uma ideia, mas o seu desenvolvimento é frágil, e no cômputo final, mesmo trivial.

A parte, digamos, “filosófica” do livro, quando a personagem Ladislav Vacek dá início à explicação de toda a trama (o que em si é um pobre remate a toda a trama que se desejava complexa), não deixa de ser algo rudimentar no que diz respeito ao entendimento do acto artístico. No fim de contas, a ideia de que os pintores ou restantes artistas apenas “imitam uma ideia” remete à velha lição platónica, da mimese de uma realidade sempre externa, em vez de crer – não se trata aqui de uma “verdade objectiva”, bem certo, mas de um posicionamento nosso que cremos reforçar a potência e devir da própria arte – que é no próprio acto de criação (seja ele de linhas num papel ou de notas num instrumento) que a obra emerge, os gestos de criação não procuram mimar um objecto preexistente mas no seu próprio movimento constituem um novo objecto. A criação do tal mundo em que Alex penetra, portanto, é apenas um constructo alcançado por um qualquer método, e não uma dimensão ontológica, e por mais potente que o autor deseja que esse mundo pareça, ele é no fim de contas fraco, por, em primeiro lugar, existir enquanto constructo, e em segundo lugar, por apenas se sustentar na explicação. Essa é uma das razões que afasta Sin Titulo da companhia de outras obras com as quais é muitas vezes comparada, como se verá adiante.
Tendo trabalhado com excelentes escritores que têm expandido as vertentes temáticas, estruturais e narrativas do mainstream, como Grant Morrison, Ed Brubaker e Jason Aaron, Stewart tenta aqui não só seguir alguns dos passos que foi observando ao longo da sua carreira como também tocar nas raias de outros territórios, mais “alternativos”, e pensamos nos Bros Hernandez como em Daniel Clowes ou até mesmo o primeiro Ed Brubaker (aquele que desenhava ele mesmo Lowlife [e que, permitam-nos a nota anedótica, Stewart não conhecia até mesmo depois de ter trabalhado com Brubaker, sendo no FIBDA que o veio a descobrir]). O tipo de ambiente urbano, a atenção para com um certo grau de relações humanas e das memórias e sonhos, tem sido mais explorado de forma criativa e inteligente, sem que se subsuma ao fantasioso, nesse outro domínio da banda desenhada norte-americana do que no mainstream. Já não se poderia dizer o mesmo quando o facto da fantasia se envolve nessa pesquisa, e Morrison surgiria aí numa primeira linha. Mas Stewart não tem a mesma agilidade que esses seus colegas.

Se alguns críticos e leitores encontram pontos de comparação com Lynch e Murakami (um dos blurbs do volume), e na banda desenhada o Iron Glove de Clowes seria a melhor pedra de toque, a verdade é que Sin Titulo não atinge as mesmas intensidades e liberdades que esses outros autores experimentam em algumas das suas obras. Não podemos jamais esquecer-nos de que esta narrativa nos apresenta uma “solução” – um mecanismo imaginativo que tanto parece remeter à ficção científica como à fantasia, nunca explicada totalmente, é certo, mas ainda assim tornada palpável -, uma razão pela qual todos os acontecimentos, que acháramos estranhos e pouco naturais, tenham sucedido, e portanto subsumindo essa mesma “estranheza” a uma “situação explicável”. Mais uma vez a palavra “surreal” seria aqui mal-empregue. Bem pelo contrário, a narrativa acaba por eliminar os traços de uma possível impossibilidade de explicação, o que tornaria mais acabada a abertura a um território surrealista.
Mesmo os contornos mais prosaicos da vida de Alex parece optar por toda uma série de clichés, até mesmo a sua resolução, que não deixa de ser uma fuga “mágica” que elimina os problemas que foram sendo acumulados e promete abrir-lhe um caminho positivo para regressa ao ponto banal de partida que constituía a sua vida. Não obstante estas grandes limitações a nível da narrativa, Sin Titulo confirma que Stewart sabe quais são os instrumentos gráficos, estruturais, visuais, cromáticos, a utilizar conforme os momentos que quer moldar.
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