Como em tantas outras histórias similares, Sin Titulo coloca uma personagem perfeitamente vulgar num ambiente extraordinário, o que é sempre uma fórmula efectiva para que os leitores “se ponham no seu lugar”. Neste caso, temos um funcionário editorial a penetrar no âmago do que parece ser uma conspiração oculta ou mesmo um universo paralelo, a partir de uma aparentemente simples visita ao avô num lar. Porém, ao descobrir que este morrera, Alex Mackay (possivelmente uma forma de homenagem ou de intertextualidade da parte do autor?) embarcará numa aventura absurda que, obviamente, “mudará a sua vida”. Sin Titulo nasceu como uma tira online, do colectivo canadiano TX Comics, integralmente disponível aqui, produzida ao longo de cinco anos, e conheceu algum sucesso crítico, angariando alguns prémios (enquanto se desenvolvia, logo não enquanto texto finalizado) e, antes de ter neste volume a sua edição integral em papel, havia sido parcialmente agregado numa antologia traduzida em língua portuguesa, do colectivo citado, pela Kingpin Books. Sendo o autor conhecido sobretudo como um artista do mainstream norte-americano, de uma abordagem leve, muito legível e competente, esta sua experiência enquanto autor completo poderia ser uma oportunidade de revelar outros caminhos, e mesmo potencialidades. Porém, elas não são confirmadas.
Sin Titulo é um livro de uma esclarecida mas assegurada beleza. Stewart opta aqui por uma linha ainda mais simples, mais limpa e directa do que no seu trabalho mais comercial. O uso de pontos negros para olhos é uma tradição bem longa, que se estende desde a dita “linha clara” hergeana até à obra artística de Julian Opie. Quase sempre essa estratégia reduz drasticamente a possibilidade de expressividade gráfica aos olhares, deslocando antes a transmissão de emoções, estados de alma ou reacções a outras partes possíveis, desde as linhas restantes que compõem os rostos, às posições dos corpos ou outras pistas subtis. De certa forma, essa estratégia até ajuda a evitar opções de maior melodrama básico, e Stewart domina de forma correcta a expressividade dos corpos das suas personagens. Se a galeria apresentada de personagens logo nas guardas do volume (reutilizando uma cena quase no final da narrativa) mostra algum grau de familiaridade e modulação de princípios homogéneos na construção física das personagens, o autor é capaz de variações suficientes para os diferenciar e tornar nítidos nas suas vidas internas. De resto, a abordagem de Stewart aproxima-o de autores tais como Philip Bond e Warren Pleece, com quem já cruzou páginas, autores que enveredem por uma combinação de naturalismo e estilização “abonecada”. Podíamos mesmo considerar, até pela existência de algumas afinidades, para além da figuração, ao nível da temática e gestão de planos e ângulos, etc., o David Mazzucchelli de Cidade de Vidro.
Tratando-se de uma tira, de facto não há (poderia haver, mas não há) desvios de uma regra absoluta: cada página é composta de duas fileiras de quatro vinhetas, todas do mesmo tamanho. Isso obriga o autor a procurar outros modos de dinamismo visual e de avanço diegético, com toda uma série de combinações de pontos de vista, ângulos dramáticos, preenchimentos e proximidades e focalizações no interior das vinhetas, etc. Stewart tem toda uma série de soluções que revelam uma compreensão de espaço e de equilíbrio entre nos afastarmos do acontecimento principal para sermos “raptados” por memórias, ou jogos de expectativas e visibilidades da acção. Tendo em consideração que a narrativa se vai prestar a uma navegação não-linear em termos de cronologia, percepção e memória e ainda “dimensões existenciais”, essas flutuações pela diversidade é muito bem construída, e sempre evitando pirotécnicas excessivas. Além disso, a escolha de um segundo tom incomum - um bege, possivelmente a cor mais apagada, menos expressiva de todas, aplicado digitalmente - traz um volume e densidade extras às figuras, de um modo tranquilo e ajustado ao resto da abordagem gráfica. Se na esmagadora das vinhetas essa aplicação é bastante descomplicada e quase acessória, existem outros momentos em que ela é extremamente significativa e é garante de um efeito expressivo. O exemplo desta prancha mostra procuras por respeitar o naturalismo da luz em objectos, outras que são antes ênfases dramáticas, ou ainda contrastes anti-naturais que servem para dar volume aos espaços.
Ou seja, no que diz respeito à dimensão visual de Sin Titulo, Stewart tem aqui uma confirmação dos seus talentos. Porém, a banda desenhada é uma arte holística, e não de elementos isolados entre si. E a narrativa é um problema. Há uma promessa e uma ideia, mas o seu desenvolvimento é frágil, e no cômputo final, mesmo trivial.
Abdicaremos de uma sinopse ou descrição completa. Mackay descobre uma relação do seu avô que se torna uma obsessão, mas não se compreende muito bem o que o move a essa primeira busca, já que descobriremos existir no fundo uma ausência de uma relação forte com o avô. Há a proverbial “mulher misteriosa”, mas como muitos dos outros elementos que vão surgindo, parecem mais itens de uma lista necessária às convenções genéricas do thriller e, depois, do absurdo, do que propriamente uma elaboração ponderada da diegese. O livro tenta explorar, no fundo, duas ou três ideias, a de uma sombra diáfana de estranheza escondida nos interstícios de um quotidiano cinzento, a fantasia perene de escaparmos das nossas vidas diárias, um breve exercício sobre o acto artístico, e um pobre e mal-desenvolvido conceito de fantasia. Mas todas essas pretensões não encontram um porto feliz, e acabam por ir se dispersando em meia-dúzia de platitudes.
A parte, digamos, “filosófica” do livro, quando a personagem Ladislav Vacek dá início à explicação de toda a trama (o que em si é um pobre remate a toda a trama que se desejava complexa), não deixa de ser algo rudimentar no que diz respeito ao entendimento do acto artístico. No fim de contas, a ideia de que os pintores ou restantes artistas apenas “imitam uma ideia” remete à velha lição platónica, da mimese de uma realidade sempre externa, em vez de crer – não se trata aqui de uma “verdade objectiva”, bem certo, mas de um posicionamento nosso que cremos reforçar a potência e devir da própria arte – que é no próprio acto de criação (seja ele de linhas num papel ou de notas num instrumento) que a obra emerge, os gestos de criação não procuram mimar um objecto preexistente mas no seu próprio movimento constituem um novo objecto. A criação do tal mundo em que Alex penetra, portanto, é apenas um constructo alcançado por um qualquer método, e não uma dimensão ontológica, e por mais potente que o autor deseja que esse mundo pareça, ele é no fim de contas fraco, por, em primeiro lugar, existir enquanto constructo, e em segundo lugar, por apenas se sustentar na explicação. Essa é uma das razões que afasta Sin Titulo da companhia de outras obras com as quais é muitas vezes comparada, como se verá adiante.
Tendo trabalhado com excelentes escritores que têm expandido as vertentes temáticas, estruturais e narrativas do mainstream, como Grant Morrison, Ed Brubaker e Jason Aaron, Stewart tenta aqui não só seguir alguns dos passos que foi observando ao longo da sua carreira como também tocar nas raias de outros territórios, mais “alternativos”, e pensamos nos Bros Hernandez como em Daniel Clowes ou até mesmo o primeiro Ed Brubaker (aquele que desenhava ele mesmo Lowlife [e que, permitam-nos a nota anedótica, Stewart não conhecia até mesmo depois de ter trabalhado com Brubaker, sendo no FIBDA que o veio a descobrir]). O tipo de ambiente urbano, a atenção para com um certo grau de relações humanas e das memórias e sonhos, tem sido mais explorado de forma criativa e inteligente, sem que se subsuma ao fantasioso, nesse outro domínio da banda desenhada norte-americana do que no mainstream. Já não se poderia dizer o mesmo quando o facto da fantasia se envolve nessa pesquisa, e Morrison surgiria aí numa primeira linha. Mas Stewart não tem a mesma agilidade que esses seus colegas.
O autor tenta gerir várias linhas narrativas: analepses e memórias de Alex, cenas que pertencerão a sonhos, os “assaltos” e “visões” a que ele tem acesso depois de começar a penetrar no domínio estranho que é o centro de atenção do livro, mas também alguns dos relatos de outras personagens, a que ganhamos acesso visual. Se a maioria da história é contada de forma ancorada à perspectiva e experiência de Alex, existem sobejas fugas desse peso. E mesmo quando todas essas linhas começam a fundir-se de forma mais acelerada, como quando temos vinhetas sucessivamente a atravessar esses diferentes níveis, tudo acaba por ser nítido no seu concerto. Estruturalmente, Sin Titulo quer ser mais complexo do que é, mas acaba por ser mais incompleto do que parece prometer na sua “explicação” (as mortes de algumas personagens permanecem inexplicáveis e até desnecessárias, certos encontros entre personagens-chaves parecem algo ex machina, etc.). Além disso tudo, a personalidade do protagonista mantém-se pouco interessante, insuficientemente desenvolvida – apesar de todos os clichés das memórias, de um ou dois traumas de infância, de relações amorosas pouco vividas pelos leitores e, sobretudo, por um retorno à banalidade. Alex Mackay não é uma personagem particularmente estimulante e aliciante. As cenas “banais” são aquelas que melhor lhe servem.
Se alguns críticos e leitores encontram pontos de comparação com Lynch e Murakami (um dos blurbs do volume), e na banda desenhada o Iron Glove de Clowes seria a melhor pedra de toque, a verdade é que Sin Titulo não atinge as mesmas intensidades e liberdades que esses outros autores experimentam em algumas das suas obras. Não podemos jamais esquecer-nos de que esta narrativa nos apresenta uma “solução” – um mecanismo imaginativo que tanto parece remeter à ficção científica como à fantasia, nunca explicada totalmente, é certo, mas ainda assim tornada palpável -, uma razão pela qual todos os acontecimentos, que acháramos estranhos e pouco naturais, tenham sucedido, e portanto subsumindo essa mesma “estranheza” a uma “situação explicável”. Mais uma vez a palavra “surreal” seria aqui mal-empregue. Bem pelo contrário, a narrativa acaba por eliminar os traços de uma possível impossibilidade de explicação, o que tornaria mais acabada a abertura a um território surrealista.
Mesmo os contornos mais prosaicos da vida de Alex parece optar por toda uma série de clichés, até mesmo a sua resolução, que não deixa de ser uma fuga “mágica” que elimina os problemas que foram sendo acumulados e promete abrir-lhe um caminho positivo para regressa ao ponto banal de partida que constituía a sua vida. Não obstante estas grandes limitações a nível da narrativa, Sin Titulo confirma que Stewart sabe quais são os instrumentos gráficos, estruturais, visuais, cromáticos, a utilizar conforme os momentos que quer moldar.
9 de dezembro de 2013
Sin Titulo. Cameron Stewart (Dark Horse)
Publicada por Pedro Moura à(s) 11:54 da manhã
Etiquetas: Canadá
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