Ainda que seja possível que esta seja uma visão de um forasteiro, não nos livramos da ideia de que o Brasil tem um mercado cada vez mais robusto e sofisticado de banda desenhada, não apenas pela oferta de traduções, e a sustentabilidade do seu mercado de longa vida de material comercial de banca (gibis infantis ou comics norte-americanos), mas pela (aparente?) cada vez maior diversidade de formatos, géneros, humores, estilos, e até mesmo ontologias da banda desenhada, com um destaque particular para com a produção nacional, também ela robustecida pelo confronto com um panorama internacional complexo. O panorama é muito diferente de há uns vinte anos, existindo mais agentes editoriais, consolidados, com experiência e orçamento para uma lata distribuição e exposição dos seus títulos, que apostam nos quadrinhos nacionais. Os dois livros sobre os quais estas breves notas incidem são contributos para essa situação, pertencendo a uma prestigiada editora de literatura de primeira linha. Além de que eles abrem uma complexa via dessa diversificação e alteração interna, no que diz respeito à própria banda desenhada. Não se trata aqui de tentar “sacudir” algum do prestígio da editora para os títulos de banda desenhada por ela editados, mas sim de procurar que essa banda desenhada vá ao encontro de critérios literários, estéticos e ontológicos que costumam ser o cerne do trabalho editorial dessa plataforma. A diferença é de monta, e repete experiências relativamente modernas (Pantheon e Seuil, por exemplo). (Mais)
Uma obra muito recente, Bande dessinée et littérature, de Jacques Dürrenmatt, explora de uma forma complexa a relação entre a banda desenhada e a literatura, não tanto para perguntar se a primeira é uma forma da segunda, ou se lhe pode ser subsumida, nem tampouco para demonstrar que ela é sobretudo pejada de elementos “literários”, mas antes para interrogar de que possíveis formas a banda desenhada pode responder a uma certa ideia de “literariedade” [a literaturnost de Jakobson]. Dürrenmatt arrola as adaptações da literatura, claro está, ou do papel da escrita, da matéria verbal, da narrativa e narratividade, etc., mas há outras dimensões mais vincadas. Uma dessas é coberta pelos dois títulos aqui presentes e que é a possibilidade de “escritores literários” começarem a trabalhar directamente para este outro território, procurando colocar os seus processos de trabalho com vista a um texto final sob a forma de banda desenhada, e que exigem desde logo um qualquer trabalho de colaboração com um artista. No caso presente, trata-se dos encontros, respectivos, entre os novos escritores brasileiros Daniel Galera e Emílio Fraia e os artistas de quadrinhos Rafael Coutinho e DW Ribatski.
Quer dizer, não estamos a falar simplesmente daquelas situações em que um escritor “aceita” uma adaptação dos seus trabalhos (que pode por vezes levar a obras magníficas, sem dúvida, bastando-nos citar A Cidade de Vidro, de Auster, Karasik e Mazzucchelli), nem tampouco escreverem uma história que depois o autor de banda desenhada transforma, mas entregarem-se a um acto de escrita que desemboque numa banda desenhada como texto final e único e coeso. Neste grupo, factores como os processos, os géneros, a ordem de produção, a recepção social das carreiras, etc. terão o seu papel, o que pode levar a integrações e excepções diferentes. Encontraremos muitos nomes, então, com maior ou menor fortuna nos seus projectos, como Baetens, Chabon, Daeninckx, Djian, Lethem, Manchette, Mina, Peeters, Piersanti, Rouaud, Rucka, Senges, Vargas e Vautrin. Em Portugal, talvez seja Rui Zink o escritor com o trabalho mais sustentado nesse sentido (sem eliminar a literariedade de um Cotrim ou um Nuno Artur Silva, ou menos ainda, dos próprios autores de banda desenhada) ou retirar a presença (porém, posterior) no campo literário de David Soares.
Se houver alguma característica final nesse trabalho, terá de ser a sua autosuficiência enquanto texto. Se se notam as linhas de costura, é porque haverá desde logo um desequilíbrio ou uma falha de contacto entre as duas “partes”. Vejamo-los.
Cachalote. Daniel Galera e Rafael Coutinho.
Existem cinco linhas narrativas principais neste livro. A história de um actor chinês de filmes de acção de Hong Kong, Xu Dongsheng, vivendo em São Paulo, e enfrentado uma depressão causada pelo suicídio de um amigo de infância e agente de trabalho, a desconfiança da polícia dele ter sido responsável, a sua fuga através do álcool e outros prazeres. A história de um escultor, Hermes, que vive isolado numa mansão-atelier num bosque, e que vive atormentado por uma memória violenta que nunca é totalmente revelada ao leitor, e o seu envolvimento com um projecto cinematográfico que parece colar-se à sua vida real para criar uma ficção, projecto o qual se evapora subitamente, para seu descontentamento, senão desespero. A história de um jovem, Vitório, obcecado com kinbaku (bondage japonês) e que se cruza com Lara, que se tornará a proverbial mulher da vida dele, tão perfeita como insuportável, e que o faz atingir um novo patamar de fantasias. A história de um beto (ou “mauricinho”), Rique, que é posto na rua pelo tio, com quem vive (por ter ido para a cama com a mulher dele) e que é obrigado a procurar rumo em Paris, onde se reencontra com um amigo de infância, mas em vez de se redimir pelo trabalho ou por um fito, acaba por se esgotar nas suas nevroses e pequena prepotência. A história de Túlio, um escritor, que parece ter saído de uma grave depressão ou mesmo doença mental, e que se encontra regularmente a com a ex-mulher, Vita, para ver a filha e falar da vida e do que vai fazendo, como caminho, perfeitamente inverso, entre a recuperação dele mesmo e a queda de Vita.
Estas histórias jamais se cruzam. Não existem estratégias de lançar no fundo de uma dela as personagens de outra, nem há um enlaçamento final que explicaria uma hipotética e surpreendente relação entre elas, nem tampouco há um elemento comum que levasse a um significado emergente pela adição das histórias singulares. Talvez o “Cachalote” do título seja um elemento comum, mas ele é-o de uma forma extremamente subtil, quase desimportante. Parece ser o título do projecto fílmico de Xu, é o animal encontrado na praia por Rique. Não há propriamente uma união visível delas. Além disso, e apesar de o livro estar dividido em três partes identificadas, a distribuição das linhas não segue padrões precisos, tendo um número de páginas desigual, uma ordenação não-idêntica, e ritmos internos bem distintos.
Uma outra unidade narrativa, separada das demais, abre e encerra o volume. Seis páginas iniciais e seis finais parecem estar deslocadas, não existindo indícios que se possam encaixar no quadro criado pelas narrativas disjuntas. Vemos uma mulher velha, grávida, que nada numa piscina e “fala” com um cachalote e, no fim, está com uma criança (o filho?) na praia, e parece que esta segunda “regressa” ao mar. Menos do que a entender como uma consequência ou causa diegética das narrativas centrais, talvez as possamos entender como uma espécie de fórmula de narração, um pouco como a frase “era uma vez” ou a prática dos kotas angolanos de pedirem ao fogo e ao fogo devolverem as histórias que contam.
Tratar-se-á de um tratamento diverso de um mesmo tema? Nada de tão cru. Haverá então aqui algum tipo de dispersão? Tampouco, já que tudo parece ser justo na sua justaposição no livro. A que conjunção é convidado o leitor? Se existem linhas de fuga distintas, em que direcção se une essa fuga? As respostas não podem ser simples. Mas podemos procurar características comuns e distintas para tentar fazer emergir alguma noção que nos ajude a navegar por Cachalote.
Todas as histórias têm em cena protagonistas masculinos, ainda que no caso de Túlio se poderá argumentar que o peso actancial de Vita é idêntico ao do ex-marido. E quase todas elas têm no seu cerne uma relação, senão amorosa, pelo menos envolvendo algum tipo de desejo sexual (heterossexual), com a excepção de Xu (que não sendo sobre o desejo homossexual, desvia a atenção para com a amizade e, talvez, uma frustação meio-velada do progresso da carreira). Consequentemente, as histórias tecem-se em torno da ideia dessas relações, usualmente a dois, jamais isolando os casais do restante universo, é certo, e mostrando mesmo as fortes cadeias cruzadas que unem todas as pessoas entre si, mas reforçando a energia que unirá os “pólos” desses casais.
Sob essa óptica, encontrar-se-á alguma metáfora nos diálogos das personagens, que tanto podem recorrer à física quântica (o dito “entraçamento” entre partículas), à psicologia, mesmo quando estas matérias são tratadas de forma superficial por manuais de auto-ajuda (A revelação, ou O segredo, julgamos que de Rhonda Byrne, é citado por uma personagem). Essas relações não têm necessariamente de ser conflituais, ou pelo menos, de um modo básico, mas revelam sem dúvida um mecanismo dialéctico, de construção mútua e intrínseca. Isto é, nenhum destes indivíduos se forma enquanto tal no total isolamento dos outros com que se dá, nem os outros existem num estado autónomo desassociados dos primeiros. Eles emergem na sua totalidade e no texto também.
É também nesse sentido que ambos os autores encontraram um equilíbrio perfeito entre os seus gestos. As linhas finais e nervosas e moldáveis de Coutinho são finas, como se desejassem ser linhas de um texto que ganhasse forma visual, e as palavras de Galera garantem um peso numa quase imediata exposição do tempo. Com a excepção da história de Vitório, que apresenta legendas, na primeira pessoa, para pensar num tempo deslocado, pretérito e encerrado já, todas as tramas parecem ir tendo lugar num agora indistinto e, talvez, contemporâneos entre si. Adicionalmente, a história de Vitório é aquela que segue uma via de mais particular estilo, sendo quase composta por páginas de 2 x 2 vinhetas. As restantes “histórias” vogam por linguagens mais convencionais, ainda que uma análise mais estrita talvez revelasse padrões recorrentes distribuídos.
Poder-se-á dizer que têm um final feliz, estas histórias? Sendo um texto literário (no seu sentido de “factício”, de “fabricado”), as histórias têm um final, logo à partida uma estrutura elegante a que não temos acesso nas nossas vidas, a não ser através da morte, que sempre irrompe por dentro e interrompe, não “fecha”. E esses finais parecem ainda assim providenciar os seus respectivos protagonistas com algum tipo de conclusão, ou pelo menos de re-início (Rique parece finalmente parar, Xu talvez enverede por uma nova carreira, Hermes terá encontrado um porto para descansar, Vitório atinge o zénite do seu desejo e Túlio voltou a escrever. Não sendo propriamente felicidades “para sempre”, ainda assim elas acabam por conquistar alguma trégua, um momento de folga, uma pausa para respirar, ou sentir o acto de respiração da forma mais consciente possível.
Os autores (não será justo atribuir esta responsabilidade somente ao escritor) demonstram um interesse em garantir que os seus universos são complexos na sua diversidade. Mesmo que haja uma escolha por uma narrativa estranha aqui, ali uma situação improvável e acesso a visões não-realistas nesta outra, Cachalote voga por águas do realismo. Não num seu sentido histórico, de representação da realidade social para servir um propósito abertamente político, de demonstração das condições sociais e de soluções hipoéticas, ou a de um compromisso artístico que uniria a ficção à revelação histórica (ainda que todas essas linhas possam ser arrancadas também de uma leitura atenta), mas a de um ancoramento na natureza humana, nas mais afectadas e frágeis das emoções, para nelas explorar não só aquilo que faz de nós criaturas mesquinhas e apavoradas, como no centro dessa tempestade tentar entender o que é possível redimir. E esse é o cerne comum das histórias, aquilo que precisamente cria a comunidade humana.
Campo em branco. Emílio Fraia e DW Ribatski
Este outro livro foca a relação entre dois irmãos, que não se vêem há muito, Lucio e Mirko, e cuja relação parece ter sido abalada por eventos do seu passado que nunca são totalmente revelados, mas que poderão ter tido algum contorno traumático. Mirko quer visitar novamente uma montanha com Lucio, o que os lança numa pequena, simples mas ainda assim complexa trajectória em direcção ao erro, à falha de comunicação, aos afastamentos apenas expectáveis por aqueles que mais próximos seriam. Nessa visita à montanha, que traz elementos do passado, haverá um acme para além do qual a narrativa muda, se bem que o eixo não é apenas a montanha, mas a mulher com que se cruzam. Ela é o factor que acabará por pautar a relação entre os irmãos, e caracterizar a mudança verificada.
Campo em branco, apesar de ter apenas uma diegese, tem uma estrutura narrativa complexa, sistematicamente vogando entre analepses e prolepses, nem todas vizinhas umas das outras, e não procurando uma simetria absoluta. Além do mais, o livro em si encontra-se dividido em duas partes, separadas pela repetição de uma folha de título, mas para além do hipotético acidente no topo da montanha, experienciado pelos irmãos, é da responsabilidade do leitor compreender o que une os elementos da primeira parte e os da segunda parte para as constituir enquanto tal (se bem que a presença da personagem feminina seja um forte indício do “factor” que altera a trama).
Construída exclusivamente por diálogos, a dimensão verbal é assegurada de uma forma que implica forçosamente uma atenção para com o que não é dito, o que fica implícito, ou mesmo os significados dúplices do que o que é dito pode assumir, haja ou não uma corroboração ou apoio à interpretação através das expressões das personagens ou de objectos colocados judiciosamente no espaço do que é dito. Se se cria sempre, necessariamente, um elo de significação entre as palavras e as imagens quando são apresentadas numa unidade de leitura, Campo em branco segue um caminho cheio de ambiguidades.
Tirando partido ou justificando-se pelo título, existe um bom número de páginas que espalha vinhetas ou apresenta uma estrutura de vinhetas “menor” do que a mancha da página usual, revelando assim o branco do papel. Existem ainda, uma vez que se utiliza uma segunda cor (um azul submisso), grandes expansões de branco, ora por não existir nada desenhado, isolando-se as figuras, os objectos, ora por se querer representar uma área larga de vazio. Esse é um segundo ponto que contribui para a ambiguidade.
Mas ainda há um terceiro elemento. Curiosamente, também como em Cachalote se tira partido de algumas teorias quânticas, já que Lucio estuda física. E um dos problemas de base está precisamente no princípio da indeterminação, no qual ou se conhece a posição da partícula mas não a sua trajectória, ou a sua trajectória mas não a sua localização. Algo expectável, essa imagem deve servir de metáfora talvez à relação entre as duas “partículas” de Lucio e Mirko.
Apesar de todos estes encaixes que vão colorindo - ou desbotando? - a relação entre os irmãos com esses sinais de indeterminação, aumentando a “crise” entre ambos, não se espere por uma exploração das emoções ou de episódios empolgantes. O ritmo é outro. A exploração dos tempos diferentes em simultâneo, a concentração na perspectiva, inclusive interna, de Lucio, a aparente apatia das suas acções e reacções ao que o envolve, querem fazer emergir antes tensões não-resolvidas pelos canais mais usuais. Querem que essa tensão se mantenha, uma intensidade contínua, vibrante, mas que não causa movimentos bruscos.
O final é calmo, nada melodramático, mas ainda assim demonstra a forma como Lucio integra em si mesmo “as coisas que acontecem”, como se aceitasse não poder determinar o movimento das partículas ou mesmo compreendendo que o seu acto de observação poderá determinar a posição dessas partículas.
Ribatski tira partido de toda e qualquer possibilidade de composição, quer abandonando-se a spreads ou criando tessituras intricadas de muitas vinhetas encaixadas numa só página. Além disso, em termos figurativos e mesmo de cor (mesmo usando apenas o preto, e o azul ser aplicado posteriormente, criam-se impressões de texturas, planos diferenciados, matizes de luz), o autor também opera numa grande diversidade. É possível que Ribatski utilize caneta ou aparo, ou mesmo pincel fino, para as figuras humanas e as suas mínimas mas moldáveis expressões, mas também usa pinceladas vigorosas de tinta-da-china para determinar sombras, uma nuvem carregada, os cabelos soltos ao vento, as texturas da água, árvores e vegetação em movimento, etc. Uma dupla página revelando a tenda no topo da montanha prestes a ser engolida pela noite mostra o modo como o autor conduz a materialidade da tinta de forma visível para criar significados multidimensionais. Esta capacidade de nos dar a ver o que é representado, por um lado, a ilusão do mundo ficcional, e a de dar a ver as formas materiais com que ele é feito, por outro, parece ser uma assinatura de Ribatski, e não deixa de ser igualmente um tema do livro.
Balanço duplo.
A propósito da colaboração entre Pierre Senges e Nicolas de Crécy, eles mesmos defenderam, numa entrevista, uma ideia de estilo enquanto ponto de vista singular do mundo, mas de forma alguma encontrando nessa palavra um sinónimo de “ornamentação: não é senão uma escolha e uma mestria sobre uma forma, uma maneira de ser, uma maneira de pensar e uma maneira de exprimir esse pensamento”. Ora, em ambos estes gestos dos pares de autores, não encontramos de forma alguma os desenhos do(s) artista(s) ao serviço das palavras do(s) escritor(es), ou subsumido a um programa narrativo que existisse autonomamente em relação a eles, mas antes um enlear-se, um enovelar-se íntimo de umas e outras para que surja um bloco de sensações coeso. Pouco importa, portanto, as específicas condições de produção, os aspectos anedóticos a montante da criação (que poderão, ainda assim, revelar algo em termos económicos, sociais, etc.), já que o trabalho crítico é feito após a existência do texto no seu conjunto. Nesse aspecto, Cachalote e Campo em branco são tecidos inconsúteis.
Nota final: agradecimentos a Rafael Coutinho e Pedro Franz pela oferta dos livros.
7 de março de 2014
Dois livros entre escritores e quadrinistas brasileiros (Companhia das Letras).
Publicada por Pedro Moura à(s) 11:49 da manhã
Etiquetas: Brasil
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1 comentário:
Muito bom! :)
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