11 de março de 2014

Jiro Taniguchi, L’homme qui dessine. Benoît Peeters (Casterman)

Este livro é constituído basicamente por uma longa, longa entrevista conduzida por Benoît Peeters ao autor de O homem que caminha, justificando-se assim o seu título lúdico. Uma vez que Peeters não é nem um jornalista nem tampouco um mero divulgador ou “especialista” da banda desenhada, mas antes um dos decisivos investigadores teóricos e históricos no circuito francófono, e igualmente um importante autor literário e de banda desenhada, e apesar do formato pergunta-resposta perfeitamente distribuídos entre os dois intervenientes (com a mediação da tradutora), na verdade o que emerge da leitura de todo este texto é uma conversa entre duas pessoas profundamente envolvidas, cada qual, não apenas no papel de agente dos seus territórios respectivos, mas igualmente no de admirador do outro. Assim, ainda que haja toda uma série de aspectos ou categorias expectáveis a serem cobertas, surge também, aqui e ali, ou como um baixo contínuo, um ambiente de mútua descoberta e construção. (Mais) 


Como se espera de uma entrevista desta dimensão (a que, por exemplo, o The Comics Journal ou a colecção de monografias da editora francesa Mosquito nos habituou) encontraremos uma parte substancial ocupada por dados biográficos, naturalmente, desde a mais tenra infância à primeira idade adulta, e dimensões do quotidiano pessoal, desde as rotinas diárias a viagens de trabalho e prazer, às relações com outros artistas. As leituras, influências, hábitos primários com a banda desenhada e outras artes, também farão parte dessa mole “pessoalizada”.

Mas rapidamente o livro entrosa por um caminho surpreendente, em que a conversa, as perguntas, as inquirições, se mesclam sobretudo com uma análise cuidada. Peeters vai revelando uma atenção primorosa para com a obra de Taniguchi, procurando compreender temas recorrentes mas também preferências de detalhe, subtis, que poderão eventualmente fazer com um leitor regresse às obras do autor japonês com um novo olhar. Ou pelo menos com o contexto que cria depois da leitura deste livro. Assim vamos descobrindo, paulatinamente, a relação de Taniguchi com as suas matérias temáticas e plásticas, os processos de trabalho, as relações profissionais, os modos como o seu progressivo contacto com várias tradições de banda desenhada ocidental, sobretudo a francesa (trabalhos de Bilal e Moebius foram fundamentais, pelos seus contactos com a Métal Hurlant e outras revistas francesas), vieram incutir não apenas inflexões decisivas como “colocar” Taniguchi na sua senda específica, mas sem o encerrar em nenhum género em particular.
Com efeito, apesar dos seus títulos com maior sucesso crítico e académico serem aqueles que revelam do intimismo, do quotidiano, da poeticidade do comum (acima de tudo O Homem que Caminha - publicado excelentemente em português, mas subsumido numa colecção algo pobre e comercial de suplementos ao Correio da Manhã - e Le journal de mon pére, etc.), não nos podemos esquecer dos seus contributos para o género do hard boiled (Love Harbour Hotel continua a ser a grande porta de entrada para nós, e onde se encontrará uma das possíveis raízes do “bullet time” do filme Matrix), da espionagem tecnológica internacional mesclada com temas ecológicas (Blanco), a aventuras sobre os limites do humano (Le sommet des dieux), assim como relações com as tradições literárias japonesas (Au temps de Botchan) e as colaborações mais ou menos felizes com autores franceses (Icare, com Moebius, e Mon année, com Morvan). No entanto, e até pelos próprios esforços da Casterman em o publicar em França (foi esta editora que o publicou pela primeira vez, muito antes da tendência em tornar acessível quer os títulos da mangá mais juvenil e sucesso massivo quer aquela mais autoral), é através de L’orme du Caucase, Terre de rêves, Un ciel radieux, etc., que o torna uma presença incontornável na “mangá de autor” contemporânea.
Em termos de informações “novas”, um dos pontos fortes desta publicação é a discussão sobe os primeiros trabalhos de Taniguchi como assistente de artistas tais como Kyûta Ishikawa e Kazuo Kamimura, em trabalhos mais convencionais e que pautariam, em parte, as primeiras coisas que publicaria em nome próprio. Todavia, neste capítulo, talvez o mais importante seja a inclusão de “Chloroforme”, que se trata de uma banda desenhada curta, de vinte páginas (dispostas aqui para apenas ocupar 4, não se percebendo muito bem a razão dessa poupança num livro de quase duzentas páginas), e que o autor terá criado nos anos 1970, sob a fortíssima influência, para evitar dizer epigonismo, da decisiva e influente história curta 1968 “Neji-Shiki”, de Yoshiharu Tsuge (e que os leitores ocidentais poderão aceder numa tradução inglesa no The Comics Journal no. 250, “Screw Style”).

No entanto, há muitas outras dimensões que são matéria de fascínio. Por exemplo, a relação do autor com o cinema - desde as suas influências (Ozu, sobretudo) às adaptações da sua obra (Quartier lontain, de Sam Garbaski) -, ou questões de pormenores técnicos - o uso de tramas e cinzentos, cor, distribuição pelos assistentes das tarefas, formas de escrita e lançamento das ideias, etc. - passando por considerações sobre a colaboração com escritores como Natsuo Sekikawa e Caribu Marley. Além disso, questões de enquadramento social ou cultural mais gerais são também fonte de interesse, desde entendermos o que estes dois autores têm a debater sobre a percepção de diferenças entre ritmos e “respirações” entre as banda desenhada japonesa e francesa, até podermos, ainda que apenas em relação ao caso pessoal de Taniguchi, compreender melhor o papel do “editor” no Japão, o tantosha, o qual se responsabilidade desde pôr em contacto um artista e um escritor, a procurar material de referência para o desenvolvimento de determinado trabalho, etc.

Muito francamente, a forma como o livro está ilustrado é pouco notável. Para além dos desenhos propriamente ditos, também temos acesso a fotografias, capas de revistas ou livros japoneses, vinhetas, mas tudo muitas vezes num tamanho diminuto que parece servir mais de ancoramento e acompanhamento ritmado das colunas de texto do que de camada visual verdadeiramente informativa e iluminadora. No que diz respeito à matéria da banda desenhada, o forte da obra, é verdade que temos acesso a alguma arte original, mas muito pouco em termos de esboços ou rascunhos propriamente ditos, que poderia dar a ver alguma aliança entre mão e pensamento. O estilo de Taniguchi, diga-se frontalmente, é algo desapaixonado, pois mesmo na ausência dos cenários quase ultra-fotográficos, as suas personagens apresentam-se sempre de uma forma hierática, pouco dinâmica e expressiva, sem dúvida adequados à forma pouco melodramática como o autor gosta de explorar as relações humanas e os dramas mais profundos de cada indivíduo, mas que parece deixar as suas personagens sempre a alguma distância dos seus leitores. A maior parte das imagens são excertos dos livros publicados pela Casterman, o que não é de estranhar visto ser um autor principal do seu catálogo, mas a forma como um qualquer catálogo é construído também deve iluminar as ausências que cria, ou o tipo de  foco com que “treina” os seus leitores. Demonstrando a importância de existir verdadeira diversidade editorial e maior e melhor circulação de informação, de resto, particularmente fulcral em relação à banda desenhada japonesa, cujo conhecimento no Ocidente é ainda, apesar de tudo, fragmentário nos géneros e estilos, incompleto em termos históricos e inconsistente em termos políticos. Ou seja, esta aposta numa monografia sobre Taniguchi serve tanto para reforçar o seu papel “comerciável” como para sublinhar o que ainda falta para descobrir da produção do seu país entre nós. Ainda assim, o desvelamento de um artista desta envergadura jamais é displicente.
Nota: agradecimentos à editora, pela oferta do livro.

8 comentários:

José Sá disse...

Olá Pedro,

Um breve comentário, não concordo totalmente quando referes que as personagens do Taniguchi nos deixam, a nós leitores, um pouco à distância. Sem dúvida, também sinto isso como leitor ocidental, mas imagino que os níveis de proximidade e identificação estarão mais próximos aos seus conterrâneos. Muitas vezes pergunto-me qual é a perspectiva de um japonês ao ver o "Lost in Translation". Também olha com estranheza e distanciamento para as personagens japonesas do filme? E/Ou Também encontrará inversamente a mesma graça nos embaraços ocidentais e sentirá o mesmo distanciamento?
Obrigado e Abraço,
José
P. S.: Estão milhares de leitores (eu também :-) do teu blogue a perguntar quando se realiza o curso de bd hipoteticamente prometido para estas alturas.

Pedro Moura disse...

Olá, José.
Talvez não tenha sido muito claro. A "distância" a que me referia não é passível de uma generalização dessas, algo essencialista, e que cria oposições ou obstáculos culturais logo à partida entre ocidental vs. asiático, nós vs. japoneses, etc. Referia-me a um aspecto estético próprio de Taniguchi, e que o diferencia de muitos outros autores japoneses (se quisermos apenas tratá-lo no interior desse campo). A rara utilização de grandes planos, a quase total ausência (nos títulos "quotidianos") daquelas auras feitas em tramas e linhas paralelas para acentuar uma expressão, a contida demonstração de emoções das personagens, e outras estratégias. Isso cria uma distância no sentido de nos impedir cair em familiaridades demasiado óbvias, como ocorre em obras melodramáticas (que podem ser muito boas, por outro lado: ver Eisner). De certa forma, talvez tenha um efeito idêntico ao dos filmes de Ozu: uma calmia quase sem emoção, para depois ter um efeito avassalador. É isso.
Quando ao curso, muito obrigado pelo interesse, mas vai demorar pelo menos até Agosto ou depois.
Obrigado!
Pedro

José Sá disse...

Pedro,
Tinha compreendido que era ao desenho que te referias e, apesar das qualidades distintas do desenho do Taniguchi face aos demais autores japoneses, ainda assim encontro pontos de contacto na bd oriental que produzem esse "lugar estranho". Algumas das distinções que colocaste, nomeadamente a quase ausência de grandes planos, parece-me uma opção conservadora comum a autores japoneses de mangá contemporâneos do Taniguchi, ou que o antecederam, quando abordam projectos mais intimistas ou autobiográficos, mas que talvez não se encontrem (por influência ocidental?) nas obras mais "modernas". De resto procurava destacar que as diferenças não estariam só ao nível da gestão da acção mais pausada na sequência entre vinhetas. Ao não contar/desenhar a história do indivíduo/herói ultrapassando momentos narrativos, mas sim uma participação da personagem no seu universo, obriga a uma pausa e a uma aproximação mais generalizada o que produzirá, eventualmente pela distribuição da atenção do leitor, ao afastamento da personagem central. Mas isso penso que senti em muitas "leituras japonesas".
José

Anónimo disse...

Portanto, e muito 'frontalmente' o critico de BD, desgosta dos bonecos saidos da pluma de um dos mais ambiciosos e dotados artifices da arte sequencial narrativa japonesa. Desgosta do carater hieratico de algumas figuras. Piero della Francesca tambem deveria ter algum problemazinho de expressividade com as suas figuras 'hieraticas'. E lancar sobre este autor e a sua obra a ideia de um pecado comercial sem questionar a sua ambicao literaria, o seu folego narrativo expressivo da dimensao humana e humanista, mas dentro da tradicao da banda desenhada... e ser o Felipe Scolari da critica no meio em que se quer afirmar.

Anónimo disse...

Portanto, e muito 'frontalmente' o critico de BD, desgosta dos bonecos saidos da pluma de um dos mais ambiciosos e dotados artifices da arte sequencial narrativa japonesa. Desgosta do carater hieratico de algumas figuras. Piero della Francesca tambem deveria ter algum problemazinho de expressividade com as suas figuras 'hieraticas'. E lancar sobre este autor e a sua obra a ideia de um pecado comercial sem questionar a sua ambicao literaria, o seu folego narrativo expressivo da dimensao humana e humanista, mas dentro da tradicao da banda desenhada... e ser o Felipe Scolari da critica no meio em que se quer afirmar.

Anónimo disse...

E como nos faz falta um Benoit Peeters entre nos. Alguem capaz dessa honesta e fertil filologia visual, mas capaz de produzir igualmente alguns objetos carregados e ilustrativos com e da meta linguagem do meio. Um Italo Calvino da banda desenhada.

Pedro Moura disse...

Caro Anónimo,
Não sei se essas comparações directas poderão surtir efeito, mas porque não olharmos para quem de facto já trabalha e é capaz de criar trabalhos idênticos ou pelo menos na mesma categoria? Eu diria que, e sem nada contra todos os outros brilhantes argumentistas entre nós, que João Paulo Cotrim, nos confins do nosso "mercado", faz um trabalho similar. David Soares, por sua vez, tem também gestos parecidos de transformação dos artistas com quem colabora, e escreveu sobre banda desenhada de forma honesta.
Obrigado,
Pedro Moura

Pedro Moura disse...

Ha, peço desculpa, não tinha reparado no primeiro comentário.
O caro leitor anónimo terá reparado que sobre quase todos os títulos da obra de Taniguchi se abria um link para um texto, também deste blog, sobre essa mesma obra? Terá lido os textos que fui escrevendo como pude ao longe de anos sobre a obra de Taniguchi, falando de alguns dos seus títulos - os mais "maduros", poder-se-ia dizer, mas isso seria fácil e falso -, e abordando precisamente a maravilha da sua escrita? Terá pensado que estes textos são escritos numa economia que parte da ideia de que se tratam de textos em formação, e por isso não podem falar sobre tudo?
Pois, não terá lido. E então elege apenas uma das frases, talvez menos felizes mas que não abnego, e transforma-a num ataque pessoal - conhecemo-nos?, o Scolari é um amigo comum? - e cujo objectivo, sinceramente, não entendo.
Mas está no seu direito. Preferia era que utilizasse instrumentos mais sólidos.
Obrigado,
Pedro Moura