Iba é um daqueles projectos simples que é prova da convergência
das variadas “linguagens” internacionais da banda desenhada. Se Neil Cohn vai
longe demais na sua preconização de “línguas” diferentes entre banda desenhada
norte-americana, japonesa, etc., não deixa de ter razão numa perspectiva mais
ou menos generalista de que existem estratégias bem diferentes entre essas
tradições. Estratégias que diferem não apenas nas técnicas de desenho, de cor,
de sombras, de composição de página, de escolhas de perspectivas oculares, mas
também no que diz respeito a questões de representação, formatos e políticas
editoriais, contexto de divulgação, exposição e distribuição, maior ou menos
esbatimento de públicos diferenciados, possibilidades de exploração
intermediática, e uma série de outros factores. Não sendo possível isolar esses
elementos de uma forma sistemática e muito menos “científica”, há ainda assim
suficiente força para que possamos dizer “isto é bd europeia”, “isto é mangá”,
etc. (Mais)
Mas é inegável existirem
autores que trabalham para essa convergência. Pode ser uma questão de emprego
de estilos, ou de misturas de géneros narrativos, ou referências, mas também
pode ter a ver com uma cultura necessariamente de um diálogo mais presente,
célere, e mesclado. Assim, encontramos em nomes e abordagens tão diversas como
as de Paul Pope, Alessandro Barbucci e Barbara Canepa, David Rubín, Giannis
Milonogiannis e até nalgum Rui Lacas essas linhas entrosando-se entre si: figuração
“à japonesa”, dinâmica “à americana”, storytelling
“à europeia”, ou outras distribuições. Pierre Maurel tem uma abordagem ao
desenho que recorda as variações “caligráficas” sobre a linha clara de um Matt
Madden ou Jessica Abel, o primeiro David Lapham, alguma Carla Speed McNeil:
contornos negros e fechados, figuração simples, mas sempre com pequenas linhas
nervosas que traduzem o trabalho do punho sobre o papel, rápido, flexível e
pessoal. Um equilíbrio muito produtivo entre vinhetas quase desprovidas de peso
senão a da personagem e outras criando uma dimensão de referencialidade muito
potente. Páginas compostas de forma regular e rítmica contrastando com outras
abordagens mais dinâmicas e dramáticas. Uma atenção para com o mais mundano dos
espaços ou acções para depois as dissipar com invasões do mais inesperado
fantástico. Nessa mistura, encontramos alguns dos passos para esse “estilo
global”.
A dimensão de
produção também não é alheia a essa tendência, já que Iba foi publicada em primeiro lugar num formato digital. A
Casterman começou a publicar uma série de volumes reunindo em papel das
histórias que foram publicadas anteriormente na revista online ProfesseurCyclope. Trata-se de um projecto colectivo, fundado por uma série de alguns
autores de expressão francesa que trabalham em territórios intermédios entre o
comercial e o circuito independente, interessados em explorar linguagens
relativamente acessíveis em termos narrativos e estilísticos esta arte, e que
encontram nesta plataforma uma possível solução de sustentação financeira, de
produção e de público. Porém, a edição em papel representa sempre um outro tipo
de visibilidade.
Maurel é autor
de um outro livro, memorável, Blackbird,
que nasceu no espaço dos fanzines e fala dessa mesma cultura de fanzines, ainda
que a projectando num hipotético e distópico futuro, no qual esses objectos e transformam
numa ferramenta de resistência política muito forte. Não deixa de ser ainda
estranho ver esta “passagem” para um género mais normalizado, de aventura ou
horror. Iba é uma narrativa centrada
numa jovem mulher, Élise, que é aterrorizada por uma outra mulher, a que
poderemos, talvez, chamar de “fantasma”. A organização temporal do livro,
dividido em vários capítulos (que correspondem ás unidades que foram sendo
publicadas na revista online), não é de forma alguma linear, e essa complexa
rede de avanços e recuos vai complicando paulatina e significativamente a
relação entre as mulheres. Essa relação é muito complexa,e leva a que a cada
capítulo, façamos leituras radicalmente diferentes sobre a “moral” de cada
personagem, não estando nenhuma delas, quer as principais quer as adjuvantes,
livres de simpatia ou aversão da parte dos leitores. Não existem papéis
unidimensionais, nem purezas ou maldades de espírito absolutas.
Iba recorda em alguns aspectos os livros de terror de alguma
banda desenhada japonesa, sobretudo aquela tradição que une Kazuo Umezu a Junji
Ito. Num mundo aparentemente normal e sem qualquer diferença com o nosso, a
irrupção do fantástico é brutal e destruidora. Mas Maurel está mais interessado
em entender como é que o mundo responderia a esse desafio do que a se abandonar
a toda a variação gore usual na banda
desenhada japonesa. Aliás, a ligação com o “mundano” é precisamente o elo mais
forte que ancora Iba na tradição
europeia. Uma das cenas mostra o espírito vingativo de Iba a entrar pela janela
da protagonista, que caberá aos leitores interpretar se corresponderá somente a
um sonho, uma “visão” ou a acontecimentos reais. Mas é impossível a qualquer
leitor dos clássicos não encontrar nessa cena um eco, senão mesmo uma citação
intertextual, com a cena do sonho de Tintin da entrada de Raspar Capac no seu
quarto, em As 7 bolas de cristal.
Tardi havia criado uma idêntica homenagem em Adèle Blanc-Sec e é difícil não
acreditar nesse mesmo papel dessa cena neste outro livro contemporâneo. Ao
mesmo tempo, esse “eco”, como lhe chamaria Pierre Fresnault-Deruelle, é uma
clara associação e inscrição de Iba
na tradição europeia.
Sendo um
projecto de alguma simplicidade estilística e narrativa, é essa mesma limpidez
que garante algum charme a Iba. A sua
leitura descomprometida leva ao entendimento dessa tendência convergente da
banda desenhada actual, em que menos importante do que a sua reinvenção ou
crise está o encontro de algum tipo de homogenia e legibilidade.
Nota final:
agradecimento à editora, pela oferta do livro.
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