É possível que a longo prazo a linha editorial da Pato
Lógico ganhe contornos de um cartão de apresentação particularmente feliz de
uma geração de ilustradores
portugueses. Aqui a palavra significará menos a ideia de “pertencentes a um
grupo demográfico”, do que uma ideia processual de formação, isto é, de esforço
para entrarem num mesmo grupo. Se bem que poderemos encontrar aqui pessoas com
as mais diversas das formações, abordagens, produções e presenças nos nossos
círculos, e se bem que os descritivos destes títulos como “álbum ilustrado
infantil” possa sofrer de quando em vez de alguma imprecisão ou integrações em
géneros erróneos, todos estes objectos possuem já características
suficientemente comuns para encontrar-lhes uma ideia de família. E tal como
havíamos discutido a propósito de Cerejas,
encontraremos nesta “família” – talvez com a excepção de Catarina Sobral – esta
pertença a um grafismo estilizado, geometrizante, etc. que é já de algum tempo
a esta parte, de certa forma, a tendência normativa, senão mesmo a linguagem
obrigatória. (Mais)
No que diz respeito à ideia de “colecção”, até em termos
editoriais, para começo de conversa, estes dois novos volumes, apesar de serem
de capa cartonada, e num formato ligeiramente maior, irmanam-se de imediato com
Bestial e Sombras. Além disso, todos eles partilham a ideia de uma construção
textual, mais ou menos narrativa (André da Loba menos, todos os outros mais),
centrada em imagens que ocupem toda a largura das páginas duplas, com ou sem
divisões internas, e onde a matéria verbal é reduzida a um título de apenas uma
palavra, que se torna a chave principal para desvendar a “história”. Libertos
do texto, ou da colaboração com escritores, os autores encontram aqui tanto a
liberdade como o espartilho de “escrever só por imagens”.
Nos casos presentes, Catarina Sobral e Afonso Cruz optam
por duas narrativas claras, límpidas, sem grandes demandas ou aberturas de
interpretação, mas por isso mesmo também inclinadas para uma simplicidade excessiva.
Afinal de contas, como entender o gesto de Cruz, que cria
uma história de um porquinho mealheiro cujo apetite incomensurável vai
aumentando-lhe também o tamanho e a destemida voragem? A associação a um jovem
empreendedor, de sucesso burguês, de indústria marchando, e pessoas sendo
trituradas nos mecanismos internos do porco-mealheiro até quase ao
auto-consumo, à substituição planetária, não é uma metáfora, é um cliché. Mesmo
que se deseje ser este o primeiro contributo para o entendimento da autofagia
do capitalismo financeiro contemporâneo, não se poderiam procurar outros
instrumentos mais subtis, e que empregassem menos a estenografia gráfica em
vigor de há 100 anos a esta parte? Seja como for, Capital parece ser um movimento mais honesto e até mesmo de rigor
político do que A crise explicada àscrianças.
Vazio
confirma a força e entrada triunfal de Catarina Sobral no panorama da
ilustração narrativa em Portugal, mas aqui abdicando da sua abordagem mais
poética e do absurdo, entra aqui numa também pequenita metáfora sobre a forma
como o ser humano procura preencher-se a si mesmo, e falha. E onde a solução se
encontra num preenchimento cumprido por um outro. O uso, visual e material, de
pequenas marcas, em técnica de carimbo, texturas feitas de toscos riscos,
colagens, inclusivamente de troços com padrões, e que se vão apagando a cada
novo passo do protagonista, carregam de forma clara essa metáfora e são todas trouvailles curiosas. O coup de foudre final vai confirmar
aquele outro cliché de que o amor redime as mais desafortunadas das almas.
Não há dúvidas de que ambos os livros são contributos de
excelência para a qualidade visual, estética, formal e material da ilustração
portuguesa. Ambos os autores, ainda que com técnicas diferentes, encontram um
equilíbrio muito feliz entre a abordagem estilizada e geometrizante tão na moda,
já aventado acima, com uma camada mais expressiva e gestual: as texturas e a
paradoxal expressividade – entre os olhos-botões pretos e a pequena inflexão de
sombra - dos rostos em Cruz, os “ruídos de excesso”– nos riscos ou tramas
“fora” das linhas, a tipologia flutuante das personagens e objectos - em
Sobral. E ambos com abordagens cromáticas nada naturalistas mas encontrando,
bem pelo contrário, uma grande felicidade nas possibilidades expressivas das
mesmas, quiçá até simbólicas, Cruz de uma forma mais controlada em cores planas
e sobreposições de transparências e tons, Sobral esperando que o contraste
radical dos papéis, e cartolinas, e carimbos e texturas e intervenções com
vários materiais riscadores provoque uma espécie de espaço táctil diverso.
Todavia, em termos exclusivamente narrativos, não deixam ambos de ser algo
limitados nas suas pesquisas e formas de desdobrar o mundo que já conhecemos.
Não o basculam, digamos assim.
Mas nada é nunca “exclusivamente narrativo”, tudo canta em
conjunto, para mais, em livros ilustrados.
Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta de ambos
os títulos.
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