Ao
aproximarmo-nos deste objecto, criam-se dúvidas sobre o que será.
Podemos encontrar neste novo livro de Blutch uma vontade em criar
algo normalizado? Ou num desvio a uma certa ideia de normalização?
Algumas das considerações de base para a leitura deste livro partem
daquilo que já fora exposto a propósito de 978
e de Schtroumpfsnoirs/bleus,
a que remetemos. Não se pode dizer que Blutch seja um autor de
grande sucesso comercial, ainda que tenha incrementalmente angariado
uma excelente recepção crítica, e Lune
l'envers
é uma espécie de pensamento em prática sobre um hipotético estado
futuro da banda desenhada, em muitos aspectos de uma fantasia quase
extrema. (Mais)
Poder-se-ia
descrever, numa primeira abordagem, esta história como uma ficção
científica que abdica da parte da ciência para explorar o papel que
a fantasia, o desejo e os complexos papéis que a introjecção e
projecção psicoanalíticas têm na construção do sujeito, na
própria condição de possibilidade da subjectivação. A “praga
da fantasia”, como discutiria Slavoj Zizek.
A
história segue as peripécias de duas personagens principais. Por um
lado, Lantz, um autor de uma famosa série de banda desenhada, de
estrondoso sucesso comercial (mas de que jamais vemos o interior): Le
Nouveau Nouveau Testament.
O papel que esta série tem na sociedade deste livro é idêntica à
de certos “produtos” comerciais na área da música e do cinema
popular, ou mesmo de alguma literatura (pense-se em Harry
Potter),
capaz de mover massas e de colocar a sua editora nos píncaros do
interesse social, a Médiamondia
(que é uma espécie de piscadela de olho ao conglomerado que detém
a Dargaud, e que recorda o mesmo jogo que Ari Folman faz com a
“Miramount” em The
Congress,
de que falaremos em breve). Histeria e filas de potenciais
compradores, tudo espera pelo próximo número. Mas Lantz sente-se
defraudado, cansado com o progresso da série, e a editora resolve
procurar uma possibilidade de substituição do autor. O próprio
Lantz é substituto do autor original, e encontra-se num momento em
que não sabe como responder às exigências comerciais do
conglomerado. Por outro lado, a segunda protagonista é Liebling, a
rapariga que ele amava em jovem, a sua musa, mas também aquela que
afinal funcionará como a substituta fantasmática da obra.
Logo
à partida, este jogo parece ser um comentário sobre que papel é
que a indústria de continuidade de personagens tem na tradição
francesa, algo que pode ser pensado à luz da continuação de
Spirou,
Blake
& Mortimer
e de Astérix,
e quer das notícias da futura continuação de Tintin
e a anunciada (como boato, notícias séria?) repescagem de Tif
& Tondu
pelo próprio Blutch. Em que medida é que há um sacrifício autoral
em nome da continuidade da fantasia? Qual o grau de mescla entre os
processos criativos em França (e Bélgica) e os Estados Unidos no
mundo da banda desenhada? Qual o papel que esta forma de arte, em
declínio de vendas gritante, se reserva num futuro inter-, senão
mesmo trans- ou pós-mediático? Além disso, e sem revelar em
demasia a intriga, que é algo complexa nas suas ligações entre as
personagens e na organização temporal, algo metaléptica – há
uma possibilidade de que a história “quebra” paradoxalmente o
desenvolvimento cronológico da vida das suas personagens, situação
irresolvida -, o trabalho de Liebling é feito através de um
terrível sacrifício pessoal. Ela perde a vista para dar
continuidade à obra – um preço idêntico ao de Odin, Homero,
Tirésias, ou outras figuras que equacionam a cegueira física à
visão transcendente. Apesar de Liebling não o desejar sequer, ela
acaba aprisionada a um dispositivo chamado “Eurifice”, espécie
de máquina orgânica que não deixa ver, mesmo aos que vêem, o que
ela produz no seu interior, mas envia directamente aos editores as
pranchas acabadas no novo álbum.
Nunca
aprenderemos como funciona, jamais veremos os seus mecanismos
interiores. E como deveremos entender o trocadilho do seu nome? É
para recordar a descida aos infernos de Orfeu, outro criador que teve
elevado preço pela sua prática? Deve-se aos seus orifícios
somente? É um computador cada vez mais frio e distante na sua
relação com o acto criativo (uma disposição e leitura que é
possível, mesmo que discordemos da sua lição moral)?
Existem
outras máquinas, processos de trabalho, de comunicação e habitação
que apontam para um hipotético futuro, mas onde a tecnologia, menos
do que uma extensão dos nossos mecanismos hodiernos, passasse por um
qualquer pequeno pesadelo orgânico, mágico e mais dado às
impressões e sensações do que a um espartilhamento das funções.
O autor, em várias entrevistas, explica como é que cada um desses
objectos nasce das suas memórias nostálgicas ou projecções, mas a
identificação é menos importante do que o modo como elas permitem
que se entre no tal espaço de fantasias. E voltando a Zizek, o que
importa nessa lição não é tanto o facto de que a fantasia cria
uma ilusão que nos impede de ver a (suposta) realidade, mas de ela
mesma influi na construção da realidade vivida e experienciada. Sem
ela, não há “realidade”. Como escreve o filósofo: “...a
fantasia está do lado da realidade,... ela sustém o 'sentido da
realidade' do sujeito. Quando a moldura fantasmática se desintegra,
o sujeito atravessa uma 'perda de realidade' e começa a aperceber-se
da realidade como um universo 'irreal' de pesadelo, sem qualquer
fundação ontológica sólida. Este universo de pesadelo não é uma
'pura fantasia' mas, bem pelo contrário, aquilo
que remanesce da realidade depois da realidade ficar privada do seu
suporte na fantasia”.
Lantz, que se desdobra numa versão jovem – o amante de Liebling e
aspirante a autor – e uma versão velha – o autor experiente,
maduro e falhado, encontra-se precisamente num processo de
desubjectivação que ocorre pela quebra do seu contrato na
construção da fantasia do Nouveau
Nouveau Testament
e por a sua “musa” deixar de o ser para dominar os próprios
instrumentos de produção. Ambos, possivelmente, os últimos limites
que deveriam ser atravessados.
Numa
das primeiras imagens que circulou, previa-se que a maquete da capa
recuperasse aquela da antiga colecção Histoires fantastiques,
também da Dargaud. Ora, se esta colecção teve muitos títulos algo
olvidáveis, também contou com outras coisas que, caindo num ou
outro perigo datado, como os casos de Molterni, Druillet, Bilal,
Cothias, etc., contribuíram de uma maneira decisiva para a
fabricação de uma ficção científica com um travo muito
particular. Essa colecção, assim como a Métal
Hurlant
nos seus primeiros anos, e a Terrain Vague e Losfeld como
precursoras, haviam feito surgir uma banda desenhada que pouco tinha
a ver com as fórmulas narrativas, épicas e heróicas pós-Star
Wars,
mas antes com o espaço que a ficção científica permitia para
inquirições a nível psicológico, religioso, existencial, do ser
humano. O diálogo pretendido assim não se perderia.
E
na verdade, se considerarmos que Blutch é, no fundo, o maior
herdeiro vivo de Jean-Claude Forest, que também auscultou os limites
desses géneros, vislumbraremos a passagem que a banda desenhada de
ficção científica permite para o terreno do mais verdadeiro e
sentido neo-surrealismo. Se por um lado, não deixa de existir uma
espécie de velocidade, leveza e centralidade na intriga que o torna
quase um “clássico” - e nesse sentido, apetece unir este livro a
Aama
de Frederick Peeters ou ao óptimo Les
derniers journs d'un immortel
de Fabien Vehlman e Gwen de Bonneval – por outro a parte de onírico
e denso é mais eficaz que Debeurme, uma vez que Blutch consegue
criar momentos de uma grande emotividade, por vezes até de forma
desligada da intriga. É o seu traço aparentemente rápido, de
esquisso, que moldando uma expressão, uma posição do corpo, uma
distribuição de papéis, faz brotar essa intensidade. E a dimensão
da sua assinatura gráfica, se nas pranchas originais se compreende
como molda figuras e espaços e brancos, tem nas cores temerárias e
sólidas de Isabelle
Merlet
um excelente complemento, que tem resultados mais felizes do que
trabalhos anteriores de Blutch. Além de Merlet, o autor conta ainda
com a participação de Bertrand Mandico, que providencia as pinturas
livres e “monstruosas” criadas por Liebling, também elas fruto
de uma espécie de transformação orgânica das formas (ver abaixo).
Num
cômputo final, talvez descobriremos que todos os livros de Blutch
abordam o próprio métier
e filosofia de acção da (sua) arte. Se em Blotch
e aqui a banda desenhada de encontra no centro do foco, tornando tudo
isto num exercício metalinguístico, não é por estar o cinema ou a
dança ou o jazz no foco de outros livros que a questão de dilui ou
perde a sua eficácia (e a banda desenhada nunca está longe)... E há
mesmo nesta história um “Blütch”, assistente de edição, algo
fuinha e instrumentalizador das relações entre as outras
personagens.
A
máquina a que nos referimos acima, a Eurifice, recorda o conceito de
Antonin Artaud, o do corpo sem órgãos. Esta noção foi exposta
pela primeira vez no texto radiofónico do actor, “Pour en finir
avec le jugement de dieu”, que Blutch cita obliquamente no seu
“Pour en finir avec le cinéma”. Para Artaud os órgãos são
totalmente inúteis, pois criam uma hierarquização no interior do
corpo humano que permitem a entrada e assunção de Deus numa posição
superior. Houvesse um organismo total, holístico, e não haveria
espaço para Deus, e todos os outros poderes que dele derivam. É
depois Deleuze quem recupera e reaviva essa noção, e quem escreve:
“O juízo de Deus arranca [o corpo] da sua imanência e torna-o um
organismo, um significado, um sujeito”. Um organismo tem uma
identidade, está fechada nela. A máquina, ou melhor, na
terminologia de Deleuze, o “mecanismo” de Lune
l'envers é
uma extensão monótona desses mesmos órgãos, até ao ponto que não
se especializam em qualquer um única
função – como é que desenham, como é que produzem banda
desenhada? - , mas são antes elas que impõem um controlo sobre o
homem – a sua escravatura no processo de produção, e a produção
da obra acabada e consumível.
Para
Deleuze, “máquina” é antes um termo reservado para apenas as
conexões entre as coisas: não e feita de nada nem tem propósito
específico, e tampouco escala ou identidade. Seja ao nível do
indivíduo, ou antes dele, ou em grupos de indivíduos, a máquina
são as próprias ligações, onde ocorrem movimentos excessivos, e
de onde parte toda a liberdade política.
Mesmo
que, no interior da intriga, Lantz e Liebling não atinjam a
“felicidade”, é precisamente na ambivalência dessa resolução
que se encontra o próprio excesso (reverso?) de Lune
l'envers,
e é isso o que o torna um livro que exponencia a liberdade
proporcionada pela banda desenhada.
Nota final: agradecimentos a X. L., pelo empréstimo do livro; todas as imagens colhidas da internet.
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