Continuando
o exercício explicado quando do primeiro número desta série,
navegamos nas águas incertas de uma ideia fechada, do selo que é
permitido pela leitura global de um texto. Ao auscultar as impressões
ao longo
do rio, sem a ideia de toda a sua cartografia final, que nos
permitira apelidá-lo de “recompensador”, “cruel”, “célere”,
ou outra leitura, esperamos encontrar algumas das suas pequenas
enseadas ou escolhos. (Mais)
Desta
feita, grande parte deste número – 13 de 24 pranchas – centra-se
no Sandman a falar com si próprio, ou melhor, o avatar
“humano-terrestre” (central à perspectiva que resultou na saga
conhecida) discutindo com tantos outros, e descobrindo-se assim, ou
desdobrando-se, sobre o que os diferencia e aproxima. É um mecanismo
complexo narrativo este que Gaiman inventou (ainda que bebendo de
várias tradições mitográficas, sem dúvida), mas a um certo ponto
também se pode encontrar algum grau de repetição, mas que é
explorado, até se pode dizer, com efeitos cómicos. Este
Sandman é ainda aquela criatura sem humor e sem humildade que
encontramos no “pretérito contínuo”, antes de todas as lições
que aprenderá ao longo de The
Sandman.
Se todos os livros anteriores nos mostraram uma espécie de
Bildungsroman
do Sandman contemporâneo, como é que de soberano arrogante se
tornaria uma criatura mais amena e emotiva, mesmo que isso lhe
custasse caro (o assassinato do filho, a destruição de alguns
companheiros, e a sua própria morte-transfiguração), Overture
apontará decerto para a personagem menos empática que fora
capturado por Burgess (que é o corolário narrativo desta nova
série, como sabemos), mas talvez revele mais detalhes da “família”.
Seja
como for, esta estrutura de prismas não deixa de ser uma forma de
poder introduzir algum grau de reflexividade cómica. Daí que ele se
desdobre no final na versão felina, e que pode servir de companheiro
nos passos que se adivinham nos próximos episódios.
O
desdobramento, portanto, continua e em várias direcções. Mesmo que
os avatares apareçam nesta narrativa para serem de imediato apagados
– para que possamos compreender qual o perigo gravoso que espera
pelo protagonista -, essa escrita efectivamente estende o universo de
referências, a esmagadora maioria das quais afecta a todo um
imaginário da história humana (egípcio, gigante medieval, à
Feiticeiro
de Oz,
etc.) e até mesmo das tradições da banda desenhada
norte-americana, que Williams imita em pormenores estilísticos (um
“super-Sandman”, um Sandman kryptoniano, outro “Monstro
Marvel”, etc.). A primeira que importa sublinhar é a que bebe dos
mitos inventados por Lovecraft: vemos aquele que é suposto ser a
“primeira” das manifestações de Sonho pelos seres que vivem nos
interstícios do espaço e esperam, pacientes.
Gaiman,
tendo estudado ou aproveitado ideias do Talmude, do Midrashim e de
toda a pseudopigraphia
judaica, e acima de tudo, o edifício cabalístico, introduz aqui a
estrutura do universo tal como havia sido proposta no Zohar.
Gaiman não faz uma exposição desse mundo de uma forma
enciclopédica – Moore fá-lo em Promethea,
mas como já dissemos noutras ocasiões, essa outra obra é
uma enciclopédia – mas apenas aproveita uma sua ideia de forma
transversal e, mais importante, personificada. É claro que, de
acordo com a sua estratégia de ambivalência e incompletude da
informação, a figura com quem Morfeus se encontra é tanto chamada
de “Glória” (um dos sephirot) como de “Shekinah” (que tanto
levanta a problemática questão do género da Presença Divina como
se refere a uma problemática espacial).
Se
Gaiman e os seus colaboradores “brincaram” com os deuses vezes
sem conta, enquanto personagens das histórias e pequenos dramas,
numa extensão, de resto, de estratégias há muito presentes na
banda desenhada mainstream
da DC e da Marvel, nunca houve uma decisão acabada sobre a estrutura
definitiva e final neste pequeno universo de referências. Em Season
of Mists
temos a única referência ao “Deus” judaico-cristão, absoluto
e expansivo, e sempre através de todos os seus prolongamentos
demiurgos, sejam os anjos ou Lúcifer. O entendimento do universo de
acordo com os ensinamentos de Isaac Luria, no seu uso aqui, seriam
plásticos o suficiente para englobar os conceitos inventados por
Gaiman, o seu panteão fictício (ou melhor dizendo, “literário”,
“banda desenhístico”, já que fictícios
são todos
os panteões).
A
um só tempo, a expansão desse universo de referências é feito
igualmente juntando tudo aquilo que já sabemos e que pertencerá ao
“futuro” de Sandman. As duas grandes peças centrais deste número
em particular é entender que o perigo e o combate central deve-se à
emergência de um vortex dos sonhos (cujo novo avatar aparecerá no
arco que lemos antes, The Doll's House) e que existirá um
hipotético “pai” dos Infindos, ou The Endless.
A
grande “magia” de Gaiman continua a encontrar-se na forma como
atribui responsabilidades e consequências a uma escala relativa,
pessoal e até quase mundana, a personagens que nada têm de mundano,
já que são personificações de forças cósmicas quase
incompreensíveis e inanalisáveis com os actuais instrumentos
científicos, sendo apenas a teologia, a filosofia e as artes aqueles
que nos permitem, não tanto uma aproximação directa, como uma
dança em seu torno e capaz de revelar, nos seus movimentos
elegantes, algum reflexo dessa hipotética realidade. Inventada,
citada ou reformulada, pouco importa, já que tornar-se-á sempre um
texto a ler.
Número 3.
Número 3.
2 comentários:
Bocejo
Caro Anónimo,
Durma bem.
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