Por uma questão de formato, Desencontros escapa de uma certa tipologia de álbuns ilustrados,
mas pela sua circunstância editorial, instrumentos expressivos, e mesmo rede
social de distribuição (e divulgação), ele acabará por ocupar esse mesmo espaço.
No entanto, ainda pelas suas questões internas, quer em termos narrativos quer
em termos gráficos, ele tem um papel que habitará um território ambivalente
entre a banda desenhada contemporânea e dirigida a um público muito alargado,
podendo ser lido por leitores mais maduros e mais jovens, cada qual encontrando
intensidades emotivas bem diferentes na mesma trama. Ambas as questões tornam-no apto a ser lido sob os mais variados focos, assim como a chegar a públicos algo diferenciados. (Mais)
Nesse sentido, Desencontros
lembrará um pouco The Invention of Hugo Cabret, se bem que esse último estivesse mais mergulhado num ambiente de
fantasia, e este livro de Liao esteja ancorado na mais quotidiana das
realidades. Tal não significa que não haja uma exploração, constante, coerente
e até encantadora, de metáforas visuais que ajudam a expandir o impacto dos
acontecimentos sobre as personagens.
O título é claríssimo e revela desde logo a intriga, que de
tão simples e quase absurda ganha contornos maravilhosos. Uma tradutora e um
violinista vivem em apartamentos contíguos, mas sempre de costas um para o
outro, e tecendo caminhos totalmente distintos entre si pelas ruas da cidade. Como se trilhassem na verdade mundos apartados. Se
um primeiro acaso os aproxima e os enleia numa atracção amorosa, um pequeno
acidente remete-os de novos para os trilhos habituais, absolutamente paralelos,
e enclausura-os no desespero de se terem perdido mutuamente. Dois terços do
livro são passados então na tentativa de se reencontrarem e nos gestos e
passagens em espelho de ambos, mas sem que se voltem a tocar.
O tempo cronológico da narrativa ocupa apenas o tempo de um
Inverno, de Outubro a Março. Mas nesse tempo curto, para além da paixão que
cresce exponencialmente no encontro e na tristeza que se instala na perda, há
muitas outras pequenas mudanças que se vão instalando na cidade, desde jardins
desmantelados em nome de novas avenidas, novos empregos que se ocupam, hábitos
que se transformam. O narrador cria entradas que vão marcando as datas,
acompanhadas de notas meteorológicas, mas as descrições textuais tratam ambas
as personagens, jamais nomeadas, como externas a essa mesma voz, isto é, a uma
mesma distância da perspectiva que estrutura a história. Quer ele quer ela
ocupam um mesmo papel, em torno de um mesmo centro inexacto, o que demonstra a
dificuldade em se garantir a felicidade de uma forma fácil, e mostram como as pequenas
distracções podem ser o preço de pena bem maior.
Os textos vogam entre as descrições dos movimentos, quase
de uma forma literal em relação às imagens, como penetram nas emoções e
memórias das personagens, como escapam da gravidade humana e encontram os
impactos de ambos no espaço que ambos habitam de modos tão ligeiramente
distintos. As imagens, essas, também se encontram entre uma abordagem naturalista,
em que os traços suaves e as cores em aguarela de Liao se encontram muito à
vontade, e as metáforas visuais a que aludimos atrás, que são surpreendentes
precisamente por emergirem neste espaço aparentemente realista e com estes
instrumentos delicados. É esse contraste que torna o mecanismo visual de Desencontros tão significativo na forma
como veicula a relação aprofundada entre as personagens, sobretudo nutrida
durante ou pela perda e distância.
Esta pequena grande obrinha – que poderá ser vista, apesar
da nossa antipatia para com o termo, como uma “novela gráfica” para os leitores
mais jovens - parece reunir em si toda uma série de linhas de força de alguns
autores mais ou menos clássicos, ou representativos de algumas tendências
conhecidas da ilustração, fazendo-as convergir num programa narrativo coeso e
dirigido. As imagens que ocupam as páginas duplas inteiras, com ou sem moldura,
com ou maior presença na mancha, sobretudo as que mostram alargadas paisagens
urbanas com as personagens perdidas no seu interior, recordam as pesquisas que
Sempé desenvolveu na cidade de Nova Iorque. Nas cenas em que a multidão nos
obriga a compreender o desaparecimento das duas personagens em relação uma à
outra, acabamos por nos sentir confrontados com uma busca idêntica à daquela a
que Martin Handford nos habituou com os seus álbuns Onde está o Wally?, se bem que no caso de Liao o divertimento
frenético é substituído por uma busca desesperada e distraída. Mas também há
traços de uma fina caligrafia nervosa e expressiva que se integrará numa longa
e vetusta tradição que englobará nomes tais como os de Edward Ardizzone, Quentin
Blake, Tomi Ungerer e David McKee (sobretudo com Mr. Benn). Este talvez seja o livro maior de Liao, e é certamente aquele
que o torna um “novo clássico” e um contributo impagável no aumento dos
escaparates de uma biblioteca de qualidade da literatura gráfica no nosso país.
Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta do livro.
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