24 de julho de 2014

Flowering Harbour. Seiichi Hayashi (Breakdown Press)

Há uns anos, a propósito da publicação em inglês de Red Colored Elegy, faláramos do papel de Hayashi na geração da Garo, na companhia de outros autores que, não sendo famosos junto a um público mais jovem e mais “fã” de séries populares, compõem porém um grupo extremamente significativo numa verdadeira expansão da banda desenhada enquanto linguagem passível de explorar emoções e realidades humanas complexas, desprovidas quase totalmente de mecanismos mais tipificados, sejam eles da aventura, da acção ou do romance. (Mais) 

Em nada quer isto criar uma hierarquia intrínseca entre trabalhos que exploram géneros mais reconhecíveis ou que exploram contornos mais decididos em termos de público específico, uma vez que uma ou outra opção não se destila necessariamente em um perfil criativo ou interessante. Simplesmente estamos em crer que, se a banda desenhada deseja ser vista como um território como outro qualquer para a expressividade humana, deve viver o mais livre possível de espartilhos, sejam eles quais forem. E nesse sentido existem, de facto, experiências mais livres do que outras. Permitidas ou exigidas por contextos particulares, sem dúvida alguma, alimentados por uma vontade expressa que as enquadra num cadinho cultural e social apropriado, também, e depois em mecanismos de recuperação histórica, tal como tem ocorrido nos últimos anos, precisamente, em várias línguas estrangeiras, sobre a produção “alternativa” japonesa das décadas de 1960 e 1970. além disso, sempre que nos deparamos com aquelas afirmações sobre a “potencialidade da banda desenhada”, não podemos senão compreender a esmagadora maioria dessas afirmações enquanto feitas na ignorância do que já existe criado que expandiu qualquer perspectiva delimitada desta arte.

Apesar de termos falado de uma “libertação” dos géneros, que não se os entenda como grilhões inexoráveis e que lançam os autores em uma impossibilidade de criar trabalhos de grande intensidade. Como alguém escreveu algures, as restrições de um género podem ser tão estimulantes quanto a abordagem de salão do Oulipo/Oubapo, e apenas os resultados interessarão no cômputo final. Hayashi, enquanto colaborador da revista Garo durante a década de 1960, foi providenciando trabalhos curtos (três dezenas de páginas, em média, em cada número mensal), e algumas delas exploram mesmo os géneros ou os temas então na berra, sobretudo com yakuza e estudantes. Mas os interesses do autor sempre se mostraram inclinados para com uma ambivalência narrativa, sobretudo onde pudesse entrar o absurdo, o surrealismo ou outras explorações poéticas, inclusive do plano visual.

A narrativa que compõe este pequeno livrinho pertence a uma série de uma dezena de trabalhos cujo título geral é “Poemas da flor”. Pelas informações coligidas em vários locais, como é o caso do blog de Curtis Hoffmann, não parecem estas histórias participar no mesmo universo diegético, nem partilham personagens ou sequer humores. Mas apenas uma leitura mais completa poderia sublinhar ou iluminar quais os pontos comuns. Desta forma incompleta, arriscarmo-nos-emos a imaginar tratarem-se de exercícios livres em que o autor explora formas curtas da narrativa para transmitir e aperfeiçoar o que seria a sua linguagem típica, um encontro entre as emoções e sentimentos ambivalentes de personagens, que se encontram subitamente num mesmo espaço comum, mas onde esse encontro parece estar votado a toa uma série de obstáculos, impossibilidades, incompreensões. E dessa frição, partem todos os elementos oníricos que pautam esse diálogo. São esses elementos que depois, mais tarde, seriam tentados numa forma mais alargada, com Red Colored Elegy, que conterá ainda elementos autobiográficos.

O [sub-]título desta história em particular repete ipsis verbis o título de um filme de Keisuke Konoshita, de 1943, que poderia ser traduzido para português como “Porto das flores” ou “Porto florido”, por sua vez adaptação de um romance. Desconhecemos, porém, quais as ligações com esse filme: possivelmente estará apenas no título, pois esta narrativa de uma trintena de páginas não procura criar um romance alargado, mas um breve e aberto relato. Uma dona de um pequeno bar de sake à beira-mar recebe na sua casa um homem de Tóquio, um drifter, que se tornará rapidamente o seu amante. Mas rapidamente se compreende que ele irá repetir os mesmos gestos que os anteriores amantes e partir de novo, deixando-a, a cada passo, mais abandonada naquela pequena vila. Em apenas 33 páginas, não há uma procura pela construção psicológica ou biográfica das personagens através de grandes diálogos ou exposições, mas pelo contrário, através de frases quase que abandonadas de quando em vez, longas sequências silenciosas, e até mesmo momentos em que a focalização parece desligar-se das personagens para se envolver com o ambiente e o tempo que os encerra naquele pequeno espaço. O vento que sopra, a chuva que cai. Mais, não havendo jamais uma representação realista da vila, mas apenas traços elípticos de uma casa ou outra, o molhe, uma montanha, a ideia de solidez espacial só é inferida pelo desejo do leitor. Não é um esforço diferente daquele que lhe é exigido para criar uma rede mais completa das histórias internas destas personagens, como a presença da filha pequena da mulher ajuda a completar, mas sem jamais se atingir qualquer conclusão relativamente estável. O final é previsivelmente triste, ou melancólico, mas não menos expectável, e apenas a mulher parece querer ainda acreditar na ficção de uma felicidade possível.

O vento, incessante, cuja onomatopeia soa estranha e quase humana aos nossos ouvidos (traduzida como “aah aah”), e que é representando por uma saraivada de riscos oblíquos que cortam vinhetas desabitadas ou com as personagens isoladas nelas, acaba por ganhar uma espécie de presença actancial, que tanto aproxima as personagens – ao início – como as afasta – no fim. É igualmente significativo notar como na economia da narrativa os corpos do homem e da mulher são desenhados, na maioria afastados um do outro, isolados nas vinhetas, e mais pontualmente juntos, mas sempre com distâncias ou aproximações significativas. Sendo um relato tão curto, permite-se que seja lido repetidamente, de maneira a ir deslindando todas estas dimensões.

Publicado na Garo em 1960, o seu surgimento agora neste pequeno volume de bolso, impresso a uma cor roxa, poderá criar uma ideia “social” da mangá bem diversa daquela do seu contexto original, mas ainda assim servirá decerto como uma excelente primeira apresentação à obra deste autor. Aliás, o seu isolamento da revista, desligando-a por exemplo de um cotejamento quase imediato às aventuras de Kamui, de S. Shirato, permite que esta “nova” leitura se concentre num valor poético intrínseco. É como se estivéssemos perante um pequeno poema narrativo, de facto, em que menos importa a “intriga”, praticamente inexistente, ou simplesmente linear, mas a intensidade de cada linha. Tal como no livro que lêramos, as linhas de Hayashi são simples, arredondadas e cartoonescas, como se se adoptassem formas de uma certa abordagem da banda desenhada infantil para veicular experiências bem mais dramáticas do que esse género costuma. Com composições de página também simples e sumárias, algumas vinhetas mesmo a negro ou com abordagens minimalistas, há uma espécie de rapidez de execução que, paradoxalmente, obriga a uma certa lentidão, um certo degustar atento, de cada página, cada cena.

A Breakdown contou com o trabalho de edição e tradução de Ryan Holmberg, um estudioso e editor experiente da mangá alternativa que está a preparar um volume sobre a Garo, portanto criando a impressão de que poderemos esperar novos volumes numa linha idêntica. De resto, esta edição foi acompanhada por uma exposição, a presença do autor em Londres, etc., reforçando essa ideia de projecto continuado. Além disso, conta este pequeno volume com texto introdutório do próprio autor, original para este gesto, em que contextualiza historicamente a produção, e associa a história a elementos culturais e da sua experiência pessoal, os quais, menos do que “explicar” a história, trazem uma outra dimensão, digamos, ambiental.
Nota final: imagem da Garo e da página em japonês colhidas da internet.

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