22 de julho de 2014

The Congress. Filme de Ari Folman.

A relação entre este filme e o livro que lhe poderá ter dado origem, a saber, o magnífico Congresso futurológico, de Stanislaw Lem (que foi publicado em português num dos primeiros volumes da saudosa colecção de fc da Caminho), é da mesma ordem que entre Do Androids Dream of Electric Sheep? de Philip K. Dick e Blade Runner de Ridley Scott: menos do que uma adaptação, ou até de uma versão, ou sequer de uma transmediação, os textos literários acabam por ser antes uma bateria de conceitos, estruturas e estímulos para depois se tecerem novas histórias e desenvolvimentos. Logo, importa menos a ideia de “fidelidade” do que a “pertinência” ou mesmo a “força” desse aproveitamento. A questão, porém, é: ocorrerá essa força em The Congress? (Mais) 

De facto, a relação entre um e outro é meramente superficial. Estabelecem-se ideias paralelas entre a possibilidade de criar uma segunda ou terceiras realidades passíveis de experiência, que progressivamente nos faz afastar de uma suposta realidade primeira, mas o trânsito entre esta e as outras é bem diverso entre o romance de Lem e o filme de Folman. Se para Lem, no final de contas, há um desejo último, a um só tempo racional e romântico, de regressar à realidade – a existência física, numénica, material, humana, pobre mas genuína – da parte do viajante Ijon Tichy, no caso da protagonista do filme, Robin Wright, a opção é antes pela contínua fuga, o mergulho decidido na ilusão construída.

Neste futuro hipotético que quase não é mais do que uma espécie de comentário social sobre o futuro do cinema (na perspectiva de Folman), actores e actrizes vão sendo substituídos por cópias digitais. Literalmente, os artistas são digitalizados na sua completude, os corpos, as expressões, as emoções, os tons de voz, e ao mesmo tempo “congelados” numa idade e beleza ideais. Desta forma, em vez de trabalharem para cada papel e tomarem opções erradas (porque informadas pelas emoções e sensações do momento), os estúdios que têm a propriedade desses “corpos” podem empregá-los em toda a espécie de produções cinematográficas, sobretudo aquelas pautadas por políticas dos géneros: acção, comédia romântica, terror, pornografia – todos géneros tratados como intrinsecamente inferiores a um suposto cinema puro. Quando vemos o trailer de Rebel Robot Robin, Streetfighter, um dos resultados da digitalização de Robin, ou escutamos a entrevista da actriz-simulacro, tudo isso surge como uma sátira a um cinema pós-Zack Snyder, mas em que a crítica é bem menos interessante, porque forçada e desinspirada, do que o objecto criticado (o qual não deixa de ter uma juissance muito própria). É muito difícil não ler nos gestos de Folman uma gritante agenda de posicionamentos em relação à indústria que ele retrata. Através de trocadilhos (o estúdio Miramount), de formas de representar os executivos e agentes (várias espécies de caricatura), de carreiras (o cineasta promissor que acaba como mero captador ou digitalizador dos actores), de gestão de franchise, etc., The Congress parece estar sempre preocupado em martelar-nos a ideia do “lado negro” do cinema. E, mais uma vez, tal como acontecera em Valsa com Bashir, Folman parece utilizar a animação para a confirmar como a linguagem maior desse caminho errado. Se em Bashir, como disséramos antes, a animação acaba por ser a língua do “sonho” ou das “memórias”, rasgadas pela realidade do último trecho videográfico, a economia entre animação e imagem fotográfica, em The Congress, acaba por repetir a mesma relação ontológica.

A primeira parte do filme cria as condições necessárias ao desaparecimento da artista no seu avatar animado. O facto da personagem-que-é-actriz ter o mesmo nome (e corpo, afinal) que a actriz-que-a-representa, Robin Wright, cria desde logo uma dimensão complexa entre a ficção e realidade. Todos os outros actores assumem uma personagem, mas esta escolha em relação à protagonista/actriz principal é desde logo um comentário também: a de que, não obstante o trabalho dos actores dever ser o de se “perderem” nas personagens, os filmes são quase sempre pautados pelos corpos específicos dos seus actores – e isto independentemente do estilo ou escola ou período do cinema: isso ocorre com Buster Keaton e com Tom Cruise, com Brigitte Bardot e com os “modelos” de Robert Bresson. De uma forma mais ou menos mecânica, todos os elementos são apresentados da sua vida, que criam a ideia de “missão” - a idade que avança, o filho doente, as relações difíceis de trabalho, e por aí fora -, tudo sempre num ambiente relativamente onírico – ela vive num hangar de aviões – para não reflectir em demasia um quotidiano “normal”, mas antes sublinhar a diferença desta vida das demais. Após a “digitalização”, saltamos uns anos no futuro (estamos a 45 minutos do filme), e a actriz visita o suposto Congresso – que por sua vez será uma má-velada sátira às apresentações dos novos gadgets da Apple - na cidade de Abrahama (Folman procura aqui talvez sublinhar uma ideia de “origem comum”), a qual é uma “zona restrita de animação”, em que as pessoas só podem estar ali sob o efeito das substâncias químicas que lhes permite viver nesse outro estado. Não é somente uma alteração de percepções, nem tampouco uma entrada numa realidade virtual, mas entrar num outro estado existencial mesmo. E é nesse momento que se dá a entrada triunfalista na animação. Já voltaremos às razões do uso desta palavra. Nesse outro trecho, então, é lançada uma nova aventura, pejada de acção, citações, e mais diatribes mal-disfarçadas sobre a ética de Hollywood. Finalmente, provoca-se o curto-circuito que vai permitir a Robin abandonar a ilusão animada, dá-nos acesso à “realidade pobre” (Lem falaria de um “naufrágio na realidade”) que se escondia, mas nenhuma revelação nos surpreende, já que o filme acaba por se abandonar numa redenção pela via da lamechice, da relação entre a mãe e o filho doente, apesar de não termos estado nesse registo durante o filme inteiro, e todas as outras dimensões – o amante, a filha – serem praticamente descartadas. Como diria Aristóteles, esta é uma narrativa em que os episódios se sucedem não por relações causais (di'allela) mas simplesmente por sucessão “episódica” (met'allela). E, de facto, The Congress parece ter mais “quadros” do que peças incrustadas umas nas outras para compor um mosaico coerente.

Apesar de termos dito que não faz sentido sequer falar de adaptação, ainda assim, uma perspectiva tomada em relação ao livro de Lem far-nos-á notar que The Congress apresenta uma organização temporal mais limitada e linear, assim como as passagens entre os planos de realidade/ilusão são unidireccionais e, no balanço final, cartografáveis de modo simples e sem problemas de metalepses ou ambivalências. Nesse sentido é algo similar a Memento, de Christophr Nolan, que apenas os mais distraídos podem considerar “muito complexo”, mesmo que se o considere, com razão, como parte dos “puzzle films” (título de uma colecção de ensaios de teoria do cinema editados por W. Buckland) contemporâneos. Em ambos estes casos, criam-se estruturas um ou dois pontos afastados da linearidade, acumulam-se efeitos de estranheza, mas sem jamais quebrar definitivamente um regime de representação natural e lógica. Quer dizer, os efeitos ilusórios são afinal empregues para reforçar e confirmar a realidade, não para a colocar numa crise total, como o farão os filmes de, por exemplo, Alain Resnais (Marienbad) ou Lynch (Lost Highway), ou noutros registos, Parajanov (que criava, precisamente, belíssimos “mosaicos de partes”), Tarkovsky, Bergman ou Tarr. Recordemo-nos que no caso do livro de Lem as passagens não são propriamente procuradas de propósito, e há momentos em que não há certezas de que momento se vive (até ao “acordar” final), ao passo que neste filme as passagens são voluntárias e compreendidas pelas personagens.

A produção da animação atravessou toda uma série de estúdios de vários países, alguns dos quais associados sobretudo a filmes comerciais, de distribuição televisiva ou videográfica, mas também com outros projectos de maior perfil (Ernest & Celestine, The Secret of Kells, Les triplettes de Belleville, etc.) e plataformas mais independentes ou até mesmo de artistas individuais. Existem textos e recursos que saberão fazer melhor o historial desse processo em relação ao filme, mas basta olhar para o número de co-produtores para compreender que esses passos não foram simplificados, o que pode desde logo impor uma série de obstáculos. Seja como for, isso leva a que tenha havido intervenientes franceses, alemães, polacos e belgas nessa produção, num filme que também teve trabalho nos Estados Unidos e outros locais. No entanto, tal como em Bashir, as responsabilidades artísticas têm a mesma equipa, com Yoni Goodman e David Polonsky ao leme, e as primeiras imagens divulgadas deste filme, ainda em fase de produção, pareciam seguir a mesma linha estilística, figurativa e cromática. O resultado final e efectivo, porém, seguiu uma direcção bem diversa, e que, de certa forma, revisita quase toda a história da animação. Quase se poderia dizer que, ao vermos cada nova cena ou, como dissemos, “quadros” de animação, que os autores pretenderam criar homenagens sucessivas às suas fontes e influências.

Veremos criaturas reminiscentes do primeiro Disney e do imenso Snow White, veremos movimentos e formas plásticas que tanto deverão a McCay como aos Fleischer, cores e atitudes frenéticas de um Heinz Edelmann ou dos The Simpsons, marcas talvez de um Raoul Servais ou René Laloux... mas para dar início a toda uma procissão de breves homenagens a actores ou personagens famosas, ícones da cultura popular, referências dos mais variados quadrantes, Bosch como designer de jardins urbanos, sobretudo na parte do futuro mais além do futuro. No entanto, há algo nesse caleidoscópio de formas que impede que essas referências jamais se coalesçam numa tessitura suave, coesa e com significância, no seu sentido epistemológico. Este malabarismo de figuras revela um grande virtuosismo, sem dúvida, mas a nosso ver no quadro de um entendimento algo pobre da animação enquanto linguagem própria e autónoma em relação ao cinema “em geral” (estas relações são complexas e sempre redutoras, pois partem do pressuposto que é possível falar-se de “animação” e de “cinema” como se não fossem territórios entrosados um no outro, quando no fundo existe um elo histórica, técnica e ontologicamente indestrinçável). Tal como em Bashir, há uma sensação de que se secundariza, no fundo, a própria animação.

Por isso é que falámos de uma entrada triunfalista e não triunfal na animação. Pode ser apenas um jogo de palavras, mas a segunda seria antes utilizada para um resultado que fosse intrínseco ao modo, iluminando-o na sua perfeição, elevando-o a uma linguagem própria e a resultados poéticos. Por exemplo, a cena das chaminés no início de The Yellow Submarine, a impressão de uma estranha forma de vida nos olhos do protagonista de Street of Crocodiles dos irmãos Quay, a alegria musical contagiante de 78 Tours de Georges Schwizgebel, ou o frenesim dos objectos no Jabberwocky de Svankmajer. O que vemos em The Congress porém é apenas um excesso: de ideias, de formas, de citações, num tom marcial. Excesso corroborado pelo trabalho dos actores, dos gestos, dos sons, da música (cujos esforços de cruzamento de estilos são por demais gritantes na sua busca de “relevância”). Se a entrada em Abrahama City recorda o excesso de Logorama (dos H5), no caso da curta esse excesso tem um propósito causal e final em relação à diegese, ao passo que em The Congress é tão-somente um décor. E o facto da protagonista criar uma distância metalinguística em relação ao ambiente em que se encontra – ela descreve, convenientemente, Abrahama como “sick” (“estranha”, “tortuosa”, “aflitiva”?), e “como se um animador genial estivesse numa má trip de ácido” - não é suficiente para redimir essa mesma construção. Tal como contar uma má anedota e depois confessar o quão má a anedota é não redime a pobreza da própria anedota.



De certa forma, uma ideia que nos surge é que a animação é empregue de uma forma negativa, para demonstrar que ela não é o cinema, não é ela a linguagem de uma suposta “verdade”, da “realidade”, de uma perspectiva livre e humana, mas antes a prisão que nos encerra. Maravilhosa, mas prisão, como uma espécie de encontro entre o panóptico e o praxinoscópio: um espaço enclausurado em que entramos por nossa vontade para assumirmos um papel qualquer que nos transforma com o simples intuito de sermos vistos por outros e participarmos dessa cultura de visibilidade e papéis fictícios. Não é algo de particularmente surpreendente depois de Second Life, das selfies, do Facebook e de outros instrumentos em rede que possam vir a surgir, ou mesmo de todo o nosso comportamento composto de “máscaras sociais” (cf. Erving Goffman). Todavia, essas intenções não transformam The Congress num manifesto forte de acusação e libertação dessas construções sociais e ilusórias, já que Robin opta por voltar a mergulhar nelas. O que é lamentável e estranho é que a animação seja empregue, de modo visualmente magnífico, em seu próprio detrimento.  

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