26 de julho de 2014

The Mighty Enlil. Pedro Cruz (El Pep).

Prevíamos escrever sobre esta obra ainda na sua forma online, onde ainda permanece totalmente acessível. O compasso de espera levou a que surgissem, rapidamente, uma edição disponível na Amazon e agora esta pela portuguesa El Pep (com alguns retoques, pelos vistos), que tem procurado, como temos visto, multiplicar o seu catálogo não apenas em termos de quantidade, de número de títulos, mas em termos de géneros, artistas, tipos de abordagem e até mesmo formato e materialidade dos livros em si. No caso presente, temos uma espécie de comic book em “prestige format”, com lombada, uma história contida, que tanto é devedora às raízes da cultura escrita humana como aos clássicos dos super-heróis da DC dos anos Weisinger. (Mais) 

The Mighty Enlil é, basicamente, uma utilização de alguns dos mitos (no seu sentido de “narrativas”, mesmo) sumério-acádicos, mas passados por um filtro muito próximo da banda desenhada de super-heróis, num período que compreenderia o advento da dita “Silver Age” e a Marvel dos anos 1960, em que se pautavam por uma espécie de leveza e entusiasmo na sua própria condição efémera, etc. e à qual regressaremos.

O autor lança as suas personagens imediatamente na acção, sem grandes prelúdios ou preparações, em que Enki lança o seu irmão e rival numa armadilha inescapável que o transporta para o seu futuro, isto é, os nossos dias. Não se compreende totalmente o desvio espacial, que o transporta das margens então férteis do Tigre e do Eufrates para uma Nova Iorque mais ou menos simbolizada, que tanto pode ser lida como a que corresponde à nossa realidade, compreendo-se a presença dos deuses antigos (como em Sandman ou American Gods, Fables e outras séries) pelo “poder” ali presente, ou então uma espécie de futuro alternativo que corresponderia à presidência de Enki no leme do mundo (e não seria NY, mas Babilónia, que no final Enki deseja queimar, à Nero). E as viagens espaciais também abrem a possibilidade de uma expansão das referências no interior daquele universo diegético, mas nada disto nos deve preocupar em demasia, pois não “rompem” o modo decidido como a intriga se estabelece e desenrola. Aliás, em alguns aspectos, sobretudo esta passagem Suméria-Nova Iorque, recorda-nos uma história clássica do Conan de Roy Thomas e John Buscema, em que o bárbaro é transportado para a cidade então contemporânea, e onde os zigurates familiares ao campeão se invertem no Guggenheim... (What if...? no. 13, 1977). É menos importante, então, uma qualquer lógica e exaustão dos pormenores do que criar, com os elementos determinados pela escolha de género, abordagem, tamanho da publicação, etc., algo coerente em si mesmo. E isso, The Mighty Enlil cumpre.

A abordagem gráfica, em termos gerais, de Pedro Cruz, participa de uma espécie de ingenuidade juvenil. Uma mescla entre a linha clara franco-belga mais tradicional – contornos perfeitamente delineados a um negro sólido, cores sólidas sem matizados praticamente isoladas, ausência de sombras, uso de todos aqueles signos típicos de uma banda desenhada clássica (os emanata, na nomenclatura de Mort Walker) -, uma figuração icónica e “abonecada” - que tanto recordará uma linha límpida de Mort Weisinger e as suas variações contemporâneas pela estilização mais descontraída de um Gilberto Hernandez -, mas um ritmo narrativo alternadamente tranquilo, criador de ambientes e também célere e potente nas cenas de acção que é algo devedor à mangá ou a outras linguagens mediáticas, tornam a arte de Cruz, pelo menos neste livro, próximas do que já foi chamado de “estilo global”, de que faláramos a propósito de Iba. No entanto, aquela qualidade a que chamámos de “juvenil” é assinalada também pela estrutura narrativa, bastante simples, adaptando elementos da mitologia suméria, ou melhor, subsumindo-os ao género dos super-heróis; convenhamos, Cruz não está interessado nem numa tradução directa da matéria original, como é o caso de, por exemplo, Bonneval e Duchazeau em Gilgamesh, nem em criar uma investigação de carácter antropológico, querendo antes criar uma história concisa, directa, sem complexidades de maior, divertida e salutar.

Existem elementos que abrem a narrativa para aquelas associações narrativas e estilísticas. Por exemplo, a relação entre Enlil e Enki, e depois a intervenção do pai, recorda por demais aquela entre os Thor e Loki e Odin de Lee-Kirby (até a armadura final do pai, pós-fusão – influência de Dragonball? - recorda a da Destroyer), numa espécie de intriga telenovelesca. A presença de Ninlil permite que a dimensão amorosa possa também estar presente e traga uma outra pequena camada de interesses, mas também associável a essa fase inicial da Marvel dos anos 1960.

E nada daquela descrição quanto à “forma” quer dizer que o autor não tem soluções, gráficas, narrativas ou estruturais que mereçam ser assinaladas. Mas num campo em que a criatividade se tem pautado sobretudo por efeitos de grande espectacularidade, não deixa de ser surpreendente em si mesmo que as opções de Pedro Cruz escolham antes um caminho de modéstia e sem pretensões. Todavia, uma página como esta, em que o corpo, e a pele, e a sua cor, de Enki se parece espalhar sem forma por toda a páginas, contra a qual Enlil se vai dissolvendo, impotente, mostra como o uso de uma grelha implacável para estruturar as páginas pode ser usada para uma sua subversão, simples mas eficaz. E as finais, do regresso de Enlil, têm também uma dinâmica muito própria, que uma escolha em ter splash pages básicas, se não alteravam a “intriga” nem o que é representado, distorceria o modo coerente como é contado de capa a capa.


A opção de manter o inglês justificar-se-á para uma possibilidade de chegar a um público mais alargado e internacional, já que o doméstico não é de modo algum suficiente para alimentar a sobrevivência e até a justiça dos autores. Ainda que possa haver alguma reacção em círculos mais restritos, a recepção destas obras, sobretudo em termos públicos e economicamente é algo limitada. O que é lamentável, uma vez que são esforços que têm o seu caminho a trilhar. Não fossem algumas dimensões mais violentas do livro – e afirmá-lo não é sinal de conservador, mas sim numa compreensão do desenvolvimento cognitivo e emocional das pessoas – e The Mighty Enlil poderia ser perfeitamente algo integrável nas prateleiras de “jovens leitores”. Neste cruzamento, estará mais próximo, portanto, de Invincible, ainda que numa dimensão bem mais curta. Todavia, eficaz nessa sua leveza e direcção.

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