17 de julho de 2014

Propaganda. Joana Estrela (Panda Books)

Pelos vistos, um dos segredos bem guardados da cultura homossexual, que pode ser entendida como um monolito, é o facto “dele/as” usarem colheres para dissolver o açúcar no café. Isto de acordo com um artigo de jornalismo de investigação lituano que tentou entender as despesas de uma associação local. Além disso, graças igualmente aos esforços de ideólogos, conclui-se que, uma vez que os homossexuais não se conseguem procriar biologicamente, multiplicam-se através de propaganda, da qual fará parte, sem dúvida alguma, este livro. Pelo menos, de acordo com um político lituano, cujo nome é citado, mas que julgamos não ser importante para o cômputo da inteligência humana. (Mais)

No seu monumental Journal, uma das diatribes mais argumentadas e fortes de Fabrice Neaud é contra a ideia da “tolerância” da sociedade para com os homossexuais. Para Neaud, a própria noção de tolerância parte de um pressuposto de existir, naturalmente, uma determinada ordem das coisas, face à qual será possível aceitar um seu desvio. Mas desvio, ainda assim. Uma personagem neste livro, e com razão, também advoga que não deveriam “pedir pelos direitos” mas “exigi-los”. E esta questão é profundamente ética, na verdadeira assunção da palavra. Não se trata de discutir algo que “poderia ser”, que “poderia ter lugar”; não, é algo que “deveria ter lugar”, sem quaisquer possibilidades de concessões. Pois porque haveria concessões que dizem respeito à realidade emocional, psicológica, económica e política de seres humanos idóneos, responsáveis e, acima de tudo, livres?

Joana Estrela é uma jovem autora de banda desenhada que passou uns meses como voluntária na cidade de Vilnius, na Lituânia, um jovem país de história atribulada nas transformações de poder desde a 1º Grande Guerra, que ganhou a sua independência da União Soviética em 1991 e se tornou parte da União Europeia há cerca de dez anos. O seu voluntariado foi feito numa organização não-governamental, chamada Lithuanian Gay League, ou LGL, e o objectivo do seu trabalho era preparar tudo aquilo que seria necessário para a organização da “Marcha pela Igualdade”, ou Baltic Pride, sendo esta uma palavra apropriada um pouco por todo o mundo (em Portugal, é a ILGA que organiza o anual Arrail Pride), e que provoca alguma discussão nesta narrativa.

Este trabalho de Joana Estrela seria algo que se encaixaria perfeitamente em Zona de Desconforto, mas de uma maneira mais alargada. Na verdade, a autora cria uma espécie de relato em que ela é o mecanismo espoletador da perspectiva, mas não serve nem para criar “explicações”, nem para construir, como poderia dar a entender o título, um “ensaio” onde se esgrimariam argumentos “a favor” de uma determinada natureza. Bem pelo contrário, é necessário algum empenho da parte do leitor para identificar o que se passa nesta trama, que abdica de quaisquer dramatismos ou estruturas narrativas usuais para nos ofertar com um olhar, apaixonado mas sereno, sobre a vida como ela discorre nos dias. Com efeito, a autora não parece particularmente preocupada em construir uma autobiografia. No fundo, acabamos por “saber pouco” dela, não se apresentando formalmente, nem criando narrativas que fossem buscar uma narrativa de “origem da personalidade” ou “da sexualidade”, nem coloca um qualquer trauma ou grande acontecimento no centro dos acontecimentos. Há uma pausa na sua estada na Lituânia, em que ela regressa a Portugal, para passar o Natal no Porto: três páginas elípticas concentradas numa amnésia provocada pelo álcool e nada mais. E praticamente nenhuma das relações – familiares, de amizade, até amorosas – são escavadas com pormenores.

É como se a autora, mesmo colocando-se na esfera das acções, se desejasse apagar a ela mesma com um peso excessivo, e se tornasse um fantasmático ou efectivo eixo através do qual temos acesso aos mecanismos e dinâmicas pessoais daquele grupo, LGL. Mais ainda, a própria marcha acaba por ser uma espécie de McGuffin, uma vez que nem sequer a “vemos” com extensão. Apenas lhe é votada uma brevíssima passagem de três a quatro páginas, já no final, para que se confirme tão-somente que o objectivo do trabalho de Joana-a-voluntária, a sua realização, foi cumprido e isso em si mesmo é uma vitória significativa.

A atenção concentra-se então em todos os passos necessários para que esta manifestação possa ocorrer, e os obstáculos naquele país, sobretudo em termos políticos e societais, é imensa. Os jornais mais tradicionais, e muitos dos agentes com poder mediático, como os políticos e outros, exercem o seu poder não tanto para discutir quaisquer possibilidades e limitações éticas que pudessem emergir deste confronto de moralidades ou filosofias, mas para simplesmente repetirem ideias feitas, nutridas por uma ignorância tremenda e pura e simplesmente um medo irracional, talvez da felicidade dos outros. Os disparates citados no primeiro parágrafo, infelizmente, não foram por nós inventados, mas são antes citações directas do que foi pelos vistos dito e debatido naquele país, devido ao trabalho da LGL, e que Joana Estrela repete.

Entrar nas discussões que envolvam a sexualidade quase sempre entram em discussões apaixonadas e, as mais das vezes, enveredam por justificações insustentáveis, agregando razões biológicas e inatas, a desvios psicológicos, normas religiosas, ponderações sobre o “futuro”, mas quase sempre se descamba, na nossa opinião, em discussões azedas e sem sentido. Sobretudo humano. É portanto salutar entender que Joana Estrela opta antes por uma discussão em que representa/retrata as pessoas que a rodeiam nesta sua “aventura” não tanto como representantes (num sentido político), e muito menos como símbolos, do que como pessoas. Com preocupações banais, comezinhas, diárias, mas também com todos aqueles gestos hercúleos necessários para criar condições em que possam viver precisamente como tais. Isto não significa que não haja momentos em que se enfrentam os jogos absurdos das forças políticas e dos moralismos em vigor, ou que não se procurem desmontar os mecanismos que impedem estas pessoas, por uma questão de sexualidade, de aceder a uma esfera financeira e legal da... “normalidade”. Na Lituânia os problemas parecem ser de maior monta do que em Portugal, ainda assim, apesar do nosso próprio conservadorismo, valores patriarcais, algum grau de provincialismo e os jogos de oportunismos políticos que trazem tantos paradoxos (devemos regojizarmo-nos pelo casamento dito gay, mas deveríamos ter profunda vergonha do que sucedeu a propósito do referendo de co-adopção). Nesse sentido, talvez fosse desejável, digamos assim, encontrar em Propaganda um maior desenvolvimento contrastivo entre os dois países, em termos de culturas e legislação, mas isso levaria precisamente o livro na direcção da reportagem ou ensaio que não é o propósito da autora.

Em termos formais, Joana Estrela inscrever-se-á naquela escola que, nos anos 1990, foi buscar o nome de “minimalismo”, mais ou menos de forma ludibriada, mas que serviu para criar uma ideia de família e eleger algumas características comuns. O traço, aparentemente a lápis, descansa sobre o papel de uma forma limpa e desobstruída de forma suficiente para a representação das coisas. Aqui e ali espalham-se algumas manchas, tramas, ou mesmos “riscos” e “caracóis”, para dar conta de uma sombra, uma textura, algum volume. Se o trabalho de base pode lembrar um John Porcellino tardio, as texturas aparentam-se às de Joanna Hellgren. Mas Estrela não está presa a nenhuma fórmula de composição de páginas, existindo desde grelhas regulares a splash pages, passando por “páginas-listas”, a composições mais livres e vinhetas sem limites que permitem as personagens “flutuar” na página, e há mesmo momentos (como a tal visita ao Porto) que quase se aproxima de abordagens conceptuais ou abstractas. Como se costuma dizer, faz lenha de toda a madeira para que possa ir procurando o melhor veículo possível ao que quer contar.

Mas estamos em crer que esta abordagem minimal tem a ver não apenas com um “estilo” mas com uma urgência do gesto diarístico ou de viagem, se assim se quiser compreender o livro. Ainda que possamos ver esta redução das linhas ao que pareceria um conteúdo informativo puro, uma funcionalidade rigorosa e objectiva em que toda a visualidade redundante teria sido eliminada, essa leitura seria ela mesma redutora e errada. Não há nada de diagramático nesta simplicidade aparente, antes procurando-se uma outra via de expressividade gráfica. Por exemplo, quando Estrela representa a poetisa norte-americana Eileen Myles, que faz uma leitura num espaço local, a artista opta por uma maior concentração figurativa e mais um número de traços identitários para o retrato. Este está bem mais próximo do rosto real de Myles, de uma forma bem diversa dos “esquemas” mais generalizados com que se representa a si própria e às pessoas com quem se dá diariamente. Também o fazendo em relação a outras personagens identificáveis (políticos, líderes da organização, etc.), esta abordagem diferenciada recorda ainda Joe Sacco, na distribuição de estratégias visuais, salvas as distâncias do “preenchido” do autor maltês-americano.

Publicado em inglês, e igualmente disponível num formato digital pelo site/blog da autora, este é um outro gesto da Plana, depois do “comic” de Marco Mendes, e alguma outra produção. Com mais de 110 páginas, a opção de encadernação não deixa de ser algo estranha. Se é sem dúvida mais barato fazer apenas um caderno dobrado e agrafado com estas folhas todas, transformando-o numa espécie de fanzine monstruoso, se se tivesse optado por mais cadernos, ou uma qualquer outra escolha que levasse ao surgimento de uma lombada teria inscrito este livro na categoria de, bom, “livro”. Logo, estamos em crer que esta escolha não será somente por razões financeiras, mas igualmente como forma de inscrever na dimensão textual uma opção material que ecoa uma opção política, reforçando de novo um intento global.
Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta do livro, e a João Machado, por nos ter colocado na senda dele. 

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