27 de julho de 2014

O meu avô. Catarina Sobral (Orfeu Negro)

É inevitável falarmos deste livro sem assinalar o prémio que angariou na Feira do Livro Infantil de Bolonha no início deste ano. Um galardão dessa categoria é um garante imediato de uma circulação significativa, em termos de informação e atenção mediática, claro, mas igualmente de edições. No entanto, mesmo a celebração a que esse prémio permite não nos deve impedir de ler o livro criticamente, pois esse exercício libertará decerto as forças que ele contem. (Mais) 

Porém, a primeira impressão é uma de menor intensidade.... Este livro é menos radical que os anteriores, e estará mais próximo de Vazio em termos figurativos, com a sua estilização geometrizante e efeitos de cor e materialidade que recordam a linogravura ou o stencil em certos pormenores (aliás, o júri de Bolonha assinalou precisamente esta vertente, associando-a às tradições dos anos 1950 – pensarão em Mary Blair, Elisabeth Brozowska, Miroslav Sasek, ou mesmo Alain Grée, Jim Flora ou Eric Carle? -, como tem sido repetido neste mesmo espaço em relação à mais visível tendência na ilustração nacional dos últimos anos). Por “radical”, ou afastamento, queremos indicar, por um lado, um abandono da abordagem multímoda dos livros Greve e Achimpa, optando antes por uma certa homogeneidade de esquemas de cor, de perspectiva e escalas relativas, da utilização de um eixo horizontal contínuo, de unidades mais moderadas nas páginas ou mesmo páginas duplas, e, por outro, em termos narrativos, uma focalização mais centralizada, uma linguagem menos exploratória da sua poeticidade plástica e antes mergulhando na representatividade das memórias e emoções.

No entanto, os contrastes cromáticos, que têm um valor de narratividade assinalável, são mais visíveis em O meu avô, como veremos.

O livro rapidamente estabelece a sua estrutura: a atenção contrastiva para com duas personagens, a saber, o avô do narrador, que também surge e participa, e o Sr. Sebastião. Se bem que o vermelho e o verde surjam como as grandes cores opostas, elas não assumem totalmente os seus valores simbólicos mais usuais (por hipótese, “permitido/proibido”, “calmia/paixão”, etc.), mas tiram partido antes da relação que estabelecem entre si, sobretudo se tivermos em conta a percepção visual e a complementaridade entre elas. Ou seja, o seu uso é perfeitamente funcional, sublinhando o contraste entre as personagens, as suas acções e, mais importantemente, a atitude para com a vida que parece transparecer desse mesmo contraste. E essas cores dominantes são enfatizadas pela presença de apontamentos e áreas em azul marinho, amarelo, preto e, claro, o branco. Os apontamentos em questão muitas vezes são apenas pormenores de representação – os padrões das meias, tufos de relva, reflexos nas escadas, sombras, chuva ou os círculos concêntricos na água -, mas outras vezes são os tais “excessos”, não-representativos, que lhe incutem a tal materialidade de gravura.

Olhando este contraste, reparemos que a ideia de “oposição” é completa. Esta imagem que coloca o avô e o Sr. Sebastião sentados à secretária servirá de modelo. O avô é visto de frente, revelando todos os seus instrumentos do momento, entre labor e prazer: o cachimbo, a caneta de tinta permanente, a folha de papel ainda por preencher (e sem a angústia abissal mallermeana do branco), o café e o livro inspiracional. O Sr. Sebastão, pelo contrário, trabalha num computador, levando à ideia de trabalho, funcionalidade, estandardização, celeridade e eficiência. Se por um lado a posição dos corpos das duas personagens é precisamente a mesma, com os braços abertos e os cotovelos descansando sobre os tampos, a cabeça ligeiramente inclinada e os pés cruzados um sobre o outro e lançados em frente, as posições relativas deles em relação à perspectiva do leitor torna-as bem diversas, como se o avô revelasse e se se oferecesse à aproximação onde o Sr. Sebastião cria uma barreira à intimidade, pelo menos momentânea. No entanto, isto não significa que não haja aspectos “românticos” no jovem trabalhador. Em primeiro lugar, o mobiliário não parece ultra-funcional e moderno, mas também partilha da materialidade familiar do que se encontra no café. E o ambiente do escritório é relativamente calmo, com as duas janelas abertas para o exterior, deixando vislumbrar a natureza lá fora (o facto de vermos dia e noite recordará a passagem de tempo de Where the Wild Things Are, mais simbólica que referencial). Essa tranquilidade no familiar é, de certa forma, sublinhada pela presença do candeeiro Luxo L1, de Jac Jacobsen de 1937, uma peça clássica de design. Poderíamos entender essa “invasão” de tranquilidade e familiaridade no mundo do Sr. Sebastião como a possibilidade de, no futuro, ele aceder ao mundo do avô? Se isso for possível, então estaremos próximos de uma outra referência oblíqua à estrutura mesmo deste livro, que é a contaminação que o Sr. Hulot provoca no mundo moderno em Play Time.

E de facto, começando pelo título, e apesar da presença do Sr. Sebastião, a “faixa textual” presta uma atenção quase exclusiva ao avô e ao mundo das suas ocupações prazenteiras e livres.

Até aquela página em que as duas personagens parecem partilhar um quarto, todos os objectos visíveis jogam-se um contra o outro a partir de pressupostos românticos: um despertador analógico versus um alarme digital, um abajur art déco de vidro versus um candeeiro moderno, os blocos de notas pessoais, que implicam expressão, versus o jornal universal, que antes informa, etc. Tudo é pensado nesse nível (até as riscas das cobertas da cama, ou o que fecha a janela)...

Para mais, a utilização do retrato famoso de Pessoa por Almada, de 1964, constitui mais uma camada de significação, óbvia na sua intertextualidade. De acordo com Robert L. Patten, as ilustrações dos contos de fadas, e a literatura infantil ilustrada, ou mesmo todas as narrativas visuais, criam uma “estranha familiaridade” por criarem elos entre os leitores e textos anteriores. Toda a história da ilustração tem inúmeros exemplos dos artistas empregando modelos icónicos, composicionais e figurativos que recordarão obras de arte anteriores, desde George Cruikshank a Sobral. Não interessa propriamente uma imitação exacta, nem sequer uma exploração precisa de todas as consequências desse uso, mas antes o domínio impreciso das impressões que esse uso implica. Essas presenças abrem-se para uma re-imaginação, um re-lançamento dessas figuras em novas consequências narrativas, morais e sociais.

O meu avô acaba assim por ser uma bateria de referências, uma espécie de arquivo visual, demonstrando como a questão em si não é tanto a sua existência (jamais inerte, como Derrida demonstrou em Mal d'archive, uma vez que a sua própria constituição é activa e revelatória de um qualquer poder, mas cuja existência e sobretudo uso irá acentuar o poder existente sobre ele), como o seu emprego. No caso de Sobral, este arquivo é empregue com o intuito de criar uma ideia de uma possibilidade de viver a vida de uma forma livre de responsabilidades quotidianas e banais através das artes e cultura. Pouco importa que a realidade social obrigue a tal, sendo o Sr. Sebastião mais novo, parte da população activa, e que o avô seja reformado. O importante é a perspectiva e aproveitamento da parte do neto. Mais curioso seria notar que a “liberdade” aparente do avô é feita afinal através de “imagens feitas”, de blocos referenciais pré-preparados, o tal romantismo a que nos referimos atrás.

Uma vez que a autora optou por colocar no assento da narração, ou pelo menos aparentemente, um menino, entendemos que O meu avô não se tratará de um livro propriamente autobiográfico, mesmo que tenha algum laivo de auto-ficção. O arquivo é, portanto, uma deliberada opção da artista em dialogar com a cultura em termos gerais, a sua própria cultura, para dela despertar uma nova ficção. De modo muito, muito diferente, verificáramos o mesmo em Hortus Sanitatis, de Frédéric Coché, por exemplo, que bebe de toda uma série de ícones da história das artes visuais belgas para construir uma espécie de rábula de Bruxelas, ou em autores tão distintos como Chris Ware, Cole Closser, Olivier Schwartz, Olivier Schrauwen, Ilan Manouach, J.-C. Bertoyas, etc. que bebem das mais distintas famílias gráficas da banda desenhada para relançarem esses elementos ora em homenagens, détournements, reinvenções críticas ou relançamentos.

É evidente que a questão de se essas referências são acessíveis aos leitores mais novos pode surgir. E o mais provável é que não sejam claras. No entanto, isso jamais deverá ser motivo de impedimento à procura pelos instrumentos mais acertados escolhidos pela artista, esperando-se que esse estímulo possa ser retroactivo na futura descoberta das fontes das imagens. O mesmo ocorre com as outras referências mais ou menos claras, de Manet a Tati. Porque os avós, afinal, podem sempre abrir as portas a um mundo estranho e fascinante.

Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta do livro. A imagem da página dupla foi colhida do site da Feira de Bolonha. 

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