Como já
tivemos oportunidade de o discutir noutras ocasiões, um qualquer
bibliómano, bibliófilo ou pura e simplesmente anal retentive
bookworm escolherá as suas leituras por vezes por sinais
superficiais de beleza. Atrai-nos uma capa, um desenho solitário, um
pormenor de acabamento, um material. As mais das vezes esse instinto
coloca-nos na senda um livro que nos devolve um conteúdo digno dessa
primeira impressão, mas há também casos em que essa promessa não
é cumprida. (Mais)
Michael Cho
é sobretudo conhecido como ilustrador, com um distintivo estilo de
alto contraste empregando sempre uma ou duas cores (cores básica e
fortes) para além do preto. As suas imagens são aparentemente
simples, mas a sua elegância é burilada cuidada e
conscienciosamente, revelando uma atenção particular para com a
estratificação de vários planos nas paisagens, sobretudo
brilhantes quando urbanas, e cujas linhas rectas e pontos de fuga
perfeitamente centrais (isto é, não-naturais dada a bifocalidade do
olho humano, e que por isso surge de uma forma gráfica incrível).
Na esteira de todo um historial clássico da banda desenhada, contra
esses fundos exactos, detalhados, que possivelmente bebem de
referências fotográficas, o autor coloca personagens de contornos
pretos, sólidos e fechados, de linhas estilizadas e arredondadas
(próxima de alguma animação), também elas devedoras de uma
tradição vetusta. Uma tradição na qual encontraremos artistas
tais como Darwyn Cooke, David Aja e Nick Dragotta, numa outra geração
Michael Allred, e o pai-de-todos, Alex Toth (precisamente o artista
que deu o mote para a estilização de todo um conjunto de séries de
animação dos anos 1960 na Hanna-Barbera). O uso de estruturas em
lápis e depois camadas de guaches límpidos ou meios digitais (é
possível que este livro já tenha sido produzido exclusivamente
assim) aumentam a “nitidez” dessas imagens.
O artista
coreano-canadiano trabalha como ilustrador para revistas, jornais,
editoras (capas de livros), e alguns projectos narrativos de vários
escritores. Mas a esmagadora maioria do seu trabalho passado, ou pelo
menos o mais divulgado, também porque fruto da cultura da web 2.0
das “encomendas” (commissions), é aquele que ronda toda a
panóplia da cultural popular norte-americana em torno da televisão
dos anos 1950 e 1960, e a banda desenhada, o que o aproximaria de um
respingador dessa cultura tal qual um Maurice Vellekoop, seu
conterrâneo canadense (minus a gay campiness, claro).
Não há provavelmente super-herói que ele não tenha representado,
sempre numa abordagem “clean”, nostálgica e dinâmica,
reminiscente da dita “Silver Age”. E apesar de ter já feito
alguma banda desenhada anteriormente, esta é a primeira vez que ele
se lança à escrita de uma “novela” (não estamos a traduzir o
termo inglês, mas a salientar o género/forma literária curto e
concentrado a que Shoplifter pertence).
A história
tem algumas parecenças com toda uma série de outras narrativas da
banda desenhada, cinema e literatura, em que temos uma protagonista
jovem, criativa, talvez coreana-americana, chamada Corrina Park, que
se encontra presa a um trabalho “seguro” e “confortável”
numa agência publicitária, mas que a faz sonhar com a aventura que
sempre a movera na juventude. Soa familiar? Então se indicarmos que
se trata de uma licenciada em literatura, que tem um gato, que o seu
sonho é escrever o “seu” romance, e que o “defeito” dela –
que imbui a intriga com o ingrediente expectável do “inesperado”,
“maravilhoso” e “divertido”, e dá o título ao livro – é
surripiar umas revistas na loja de conveniência perto de casa,
fechamos as contas. Porque com isso ela “sente-se mais viva”.
Ha!, e a segunda cor escolhida pelo artista para esta narrativa de
uma protagonista feminina é... rosa. Algo esbatido e sombrio, mas
rosa.
A verdade é
que procurar ver os pormenores para encontrar inflexões de surpresa
nesta narrativa acaba por se tornar contraproducente. O nickname
dela num programa de namoros online é “virginiawoolf” e os
homens que lá apanha são ou bestas quadradas ou predadores com
nomes tais como “mastrblastr” e “hawkwinder”. Quando ela
mostra finalmente algum interesse por um homem real e interessante, é
a melhor amiga que acaba por ir para a cama com ele. E há um
episódio de sucessivos acidentes de comédia física (fica sem água
no chuveiro, não tem nada que comer, apanha uma molha na rua, etc.),
criando camadas contínuas de clichés hiperbolizados. Parece uma
dessas negligenciáveis comédias românticas que Hollywood produz
todos os anos para alimentar a máquina usual...
De facto,
Shoplifter é algo que parece desejar ser “quirky” e
liberador em relação à sua personagem feminina como muitos outras
obras dessa produção cinematográfica. Mas é possível pensar em
títulos de banda desenhada que o conseguem conquistar, através dos
mais distintos géneros, desde o “alternativo” Ghostworld,
ao mainstream da She-Hulk no run de Charles Soule e
Javier Pulido, ao contemporâneo The Nao of Brown, mas sem
conseguir o mesmo tipo de textura psicológica ou complexidade dessas
obras tão diferentes entre si. É mais basilar que isso.
Visualmente,
o livro é de facto belo – as páginas duplas de paisagens urbanas
“silenciosas”, em que Corrina as atravessa pensativa valem o
bilhete de entrada, digamos assim -, e até o seu formato, tamanho e
material o tornam um objecto delicado, mas pensamos que há um limite
para aquilo que a beleza consegue conquistar. Nesse sentido, recorda
um pouco a presença de Brecht Evens (apesar do que escrevemos sobre
o seu livro), em que há um grande desequilíbrio entre a gravidade,
serenidade e elegância das imagens por oposição ao enfermiço da
intriga e da psicologia tentada. Um agradecimento final é dirigido a
Chipp Kidd, e também poderíamos regressar a Batman: Death byDesign para um outro livro que se esgota na sua superficialidade
visual e não na sua relevância narrativa.
É claro
como há uma espécie de esforço desejado em criar uma narrativa
“significativa” para os leitores que se “identificariam” com
a protagonista, mas se ele for lido por quem faça um esforço
cultural pela sua parte, ultrapassará esse desejo para
compreender os limites de Shoplifter. De certa forma, pode-se
dizer que este livro pretende representar aquela espécie de
aborrecimento, de ennui, que é apanágio de toda e qualquer
nova geração que procura entender qual o seu papel numa sociedade
que já está pronta quando a ela chega, e não entende se há ou não
espaço activo para ela. Tal qual a banda desenhada “alternativa”
do início dos anos 1990 teve o seu papel de representação, na
banda desenhada, nos Estados Unidos (ecoando a cultura slacker,
grunge, e todas as outras), este livro parece querer servir de
“hino” (será exagerado dizê-lo?) de uma geração económica e
culturalmente privilegiada mas que ainda assim se sente avisada a
sentirem-se “pouco realizados”. Daí os vários momentos em que
se critica o consumismo dos nossos dias, surjam vezes sem contas
“temas relevantes” (a ecologia, a pobreza das crianças no
Terceiro Mundo, a dependência de tecnologias em vez de comunidades
humanas, etc. quase em presenças de cartão, bidimensionais). “Cry
me a river”, apetece dizer.
Por alguns
detalhes – aqui, superficiais - da personagem e pela identidade do
autor, Shoplifter poder-se-ia inscrever eventualmente na
diáspora “asiático-americana” (ou “asiático-canadiana” ou
num complexo social maior), na esteira de um Adrien Tomine. Mas Cho
não é Tomine, nem mesmo um Tomine num mau dia... Talvez aqui se
demonstre que o trabalho necessário para a “escrita” - separando
por um momento, e apenas a título analítico, a tarefa da narrativa
da das imagens, da sua estruturação, como se não fosse um corpo
holístico – é tão-necessário como o do desenho, e que a curva
de aprendizagem não se conquista com facilidade com uma banda
desenhada de longo hausto. Haverá excepções, sem dúvida (as
primas Tamaki, Miguel Rocha, Nunsky), mas esta não é uma delas.
2 comentários:
Olá Pedro,
Só um breve comentário ao primeiro parágrafo desta entrada. É curioso como me pré identifiquei com o que nele escreves. Realmente por vezes somos atraídos por sinais superficiais, geralmente por qualquer questão identitária ou reminiscência afectiva a alguma referência que encontramos nos objectos que nos passam pelos olhos. Isto para dizer que há algumas semanas que esta crítica ao shoplifter vem anunciada no teu blogue e que desde aí tenho espreitado todos os dias para ver se já teria saído só pelo mero facto do título do livro me lembrar uma faixa dos smiths que eu ouvia repetidamente na minha adolescência e que ainda retomo muitas vezes subconscientemente: "unite and take over".
O estilo darwyn cook atrai-me, devo confessar, e o minimalismo no (e desde o) zorro do alex toth foram (talvez) o meu melhor contacto com a bd na infância. Este livro pode não ser grande coisa, mas aquele título tem qualquer coisa de profecia autorrealizável: "hand it over!" :-)
Aquele Abraço
José
Olá, José.
Não tenho grandes regras de entrada no lerbd, a não serem princípios muito gerais (não tentar falar de livros com mais de dois anos, dar prioridade a títulos menos mencionados nos nossos círculos, ser consistente com a leitura de títulos portugueses, falar sempre - ou quase sempre - dos livros que peço activamente às editoras, mesmo quando não são a maior revolução do mundo. Quanto às compras, que são cada vez menores, dadas as dificuldades, sou por vezes movido por aquilo que nos movem a todos: curiosidade, conhecimento, um q.b. de nostalgia, e coups de foudre. Por vezes, estas últimas levam-nos a pequenas desilusões. Eles livro está na estante para ler há muito, e colocar títulos na secção "brevemente" servem para me obrigar a lê-los rapidamente. Foi o caso deste título, que muitos autores portugueses parecem terem apreciado (depois de uma conversa no último Festival da Amadora), mas a sua leitura efectiva demonstra que é algo bem menos consistente e maduro do que aparentava ser. Enfim...
Quanto aos Smiths, é uma boa referência, e estes livros são precisamente um "thorn in one's side".
Pedro
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