30 de abril de 2015

Terrea. Ricardo Cabral (auto-edição)

Este texto é, a um só tempo, uma breve leitura de um projecto de Ricardo Cabral, e um momento de publicidade. Uma vez que se trata de um projecto feito no seio do curso de auto-edição da Oficina do Cego, a que pertencemos, é necessário compreender que há um ou dois gramas de proximidade ao contexto de produção sobre o qual exerceremos um poder de “venda”. (Mais) 

O curso de auto-edição da Oficina do Cego propõe aos formandos uma aprendizagem que atravessa várias fases, de exposição a conceitos, projectos existentes, uma breve história da cultura do livro e do objecto impresso, assim como a uma série de disciplinas práticas que são possíveis de fazer no espaço oficinal: serigrafia, linogravura, tipografia, encadernação e por aí fora. O princípio condutor, porém, é operado pelos próprios formandos, que procurarão navegar essas águas com os seus próprios propósitos, talentos e direcções. No caso presente, Ricardo Cabral criou um pequeno livro de banda desenhada impresso a serigrafia, a preto, com uma capa impressa também a serigrafia a duas cores, com badanas, mas que é na verdade um poster desdobrável, o título feito a partir de linogravura, e utilizando papéis distintos para a capa, miolo e guardas, criando assim várias texturas tácteis que poderão ter um lugar na apreciação, leitura e até mesmo interpretação semântica de Terrea.

É no seu “interior” que nos concentraremos. As imagens que Cabral criou para esta pequena narrativa de 31 pranchas (de um formato próximo ao A5), criadas por meios digitais mas sem que se perca a urgência e fluidez manual, como o autor já nos habituou, bebe de uma pesquisa que tem perseguido desde o poster do FIBDA de 2013 e que têm estado presentes nalguns dos elementos que tem publicado no The Lisbon Studio Mag.

Há, sem dúvida, uma narrativa em Terrea, mas é bem possível que a sua “escrita” tenha obedecido antes a pulsões do próprio desenho, a uma navegação de ritmos internos pedida pela pesquisa visual, e menos por um qualquer desejo de absoluta lógica literária. Temos vários grupos distintos de personagens recorrentes, a que poderíamos chamar de “ser semi-divino”, ou “Silver Surfer”, os “viajantes” que atravessam a paisagem do planeta visitado a cavalo, e o “guia” ou “xamã”, que poderá recordar-nos de um xamã aborígene australiano, apesar de Cabral misturar vários elementos de uma forma fantástica (no sentido de fantasiosa). Aliás, as estruturas que ocupam spreads completos, e também influenciam a imagem geral da capa, encavalitam elementos tais como máscaras à la dança topeng (Indonésia) ou Tsam (Mongólia), que costumam ter características de demónios muito dramáticos e expressivos, um rosto de mulher tranquilo, mamas, alguns mamilos dos quais parecem olhos negros, caveiras, garras e presas, e toda uma série de objectos soltos, como pedras, excrescências vegetais ou talvez uma espécie de variação de energia à la Jack Kirby. Dessa maneira, Cabral pretenderá criar um espaço que suscite várias referências alternativas. Como se desejasse que o leitor começasse a fazer associações mas jamais se decidisse por um só quadro.

A ausência de matéria verbal, apesar de haver claramente momentos de comunicação directa e até mesmo oral entre as personagens, aumenta a ambiência onírica dos trajectos das várias personagens. Nesse outro sentido, e indo também ao encontro do tratamento gráfico e temático de Terrea, este pequeno projecto do autor associar-se-á a um imaginário nostálgico pela banda desenhada de ficção científica de contornos cósmicos de um Druillet ou Moebius, integrando-se num conjunto de autores actuais, um pouco por todo o mundo, que têm re-explorado esses territórios. Afinal, temos aqui cenas de energia espiritual partindo dos “terceiros olhos”, temos travessias do cosmos ou pelas paisagens do planeta em fragmentos de cristal, temos pirâmides invertidas e de cores complementares praticamente tocando-se nos vértices, temos florestas de “parlamentos” elementares, rituais à luz e calor de fogueiras onde provavelmente se tecem poemas musicados intemporais, aparições de seres diáfanos e fantasmagóricos, talvez de grande poder, e uma visita derradeira a uma cidade aparentemente abandonada mas visitada por uma estrutura imensa. Le tueur du monde e Sur l'étoile, de Moebius, são as obras que mais parecem estar ecoadas em Terrea, mas menos do que uma influência ou homenagem, tratar-se-ão de tendências e e tocar as mesmas linhas de fuga e desenvolvimentos temáticos.


Se se trata de um primeiro passo num projecto maior, ou se se tratam todos estes de elementos que o autor vai criando algo livremente, e talvez se possa vir a coalescer em algo maior, só o tempo o dirá, mas os princípios estão lá.

3 comentários:

Anónimo disse...

Por favor, escrevam com o novo português!!

Anónimo disse...

Escreverem com a velha ortografia até causa estranheza. Simplifiquem. Não custa nada!

Pedro Moura disse...

Caro anónimo,
Este não é o lugar para dar início a uma conversa e argumentação extremamente complexa e que tem tido lugar em locais mais apropriados e competentes. Este blog é escrito apenas por uma pessoa, eu mesmo (fora alguns posts onde há convidados).
Pela sua expressão "velha ortografia", só poderei imaginar que se trate de alguém extremamente jovem, habituado a este português de secretaria, se bem que esta não é uma questão de geração. Trata-se antes de uma consciência profunda das idiossincrasias específicas e históricas da minha língua, e não querer compactuar com um acordo que é muito triste em termos intelectuais. O tempo o dirá, e é possível que seja um "velho do Restelo" (jamais imaginaria!), mas manterei essa posição, com as excepções onde sou obrigado a ela por razões de potência.
Custa, e muito. E caro amigo ou amiga, não tem nada a ver com "simplificação".
Bem-haja,
Pedro Moura