Este pequeno livro de bolso reúne as três mais longas
histórias de banda desenhada que Almada criou para o jornal O Sempre Fixe,
todas elas datando do ano de 1926, também as maiores que ele alguma vez criou
(se bem que não as esgotam). São os seus títulos “Era uma vez...”, “O sonho de
Pechalim” e “A menina serpente”. A edição em causa é criada a partir dos
desenhos originais “que sobreviveram presentes no espólio do artista”, nas
palavras de Mariana Pinto dos Santos, na nota final, e descritos por Sara
Afonso Ferreira, na introdução, como estando num “caderno composto pelo autor
que colou, em cada folha, um desenho numerado”. São essas circunstâncias
físicas e apartadas do seu contexto original que permitem às editoras publicar
as histórias com um desenho por página, o que reformula, de certa maneira,
estas narrativas. Publicado no quadro da magnífica exposição patente na
Fundação Calouste Gulbenkian ao escrever estas linhas, com curadoria de Mariana
Pinto dos Santos e Ana Vasconcelos, a sua circulação pode ser vista, até certo
ponto, como uma maneira de dar corpo às extensões polivalentes e
multidisciplinares desta “revisitação” da obra de Almada, assim como a uma
concretização física das especificidades desta obra em particular. Ela emergiu
para existir como objecto reproduzido, dado à estampa. (Mais)
Apesar de escrevermos nós a palavra “banda desenhada” para
descrever as três histórias, ambas as editoras evitam essa palavra, com
Ferreira a citar “história aos quadradinhos” (a designação desta arte antes do
advento do galicismo corrente pela década de 1970) e Santos “narrativas
gráficas”. Talvez estejamos a incorrer num erro, mas julgamos que essas formas
linguísticas são eufemismos e fugas à constatação da criação original, o que
nos leva a ponderar estar perante um ligeiro desserviço à linguagem específica
formal desta disciplina. É certo que os desenhos terão sido encontrados nesta
natureza de arquivo individual, como maior defesa à passagem do tempo,
imaginamos. Sara Afonso Ferreira escreve de forma clara que “ao apresentar
desta forma os desenhos destinados à publicação (...) Almada sugere a
importância das imagens como veículo da narrativa...”. Não colocamos em dúvida
de que o artista terá sublinhado a importância, valência e até possibilidade de
criar narrativas visuais somente com desenhos, desirmanados até de uma camada
textual, mas terá sido com efeito esse o móbil deste arquivamento? E mais
importante, terá sido com essa forma arquivada que elas terão sido
originalmente lavradas?
Não é a primeira vez que estas bandas desenhadas vêm a lume
no circuito editorial português. O trabalho de Almada nesta publicação havia
sido já reunido antes, num volume precisamente intitulado Os desenhos de
Almada n'”O Sempre Fixe”, publicado em 1984 pela Gulbenkian e com uma (como
sempre) excelente introdução de José-Augusto França. Ao contrário da edição
presente, não apenas se avança uma contextualização que toma em conta as
necessidades económicas destes trabalhos, como algumas das circunstâncias
editoriais e até mesmo algumas curtas mas agudas leituras interpretativas e
análises das soluções gráficas do autor. Nela encontramos estas páginas, na sua
composição original, ainda que com o texto recomposto. Todavia, o seu formato é
tão pequeno que dificulta a sua leitura mais suave. Igualmente por ocasião da
(também magnífica, então) exposição El alma de Almada el impar: obra
gráfica, 1926-1931, comissariada por Luís Manuel Gaspar e João Paulo Cotrim
para o Palácio Galveias em 2004, a Bedeteca de Lisboa publicou um soberbo
catálogo na qual se reúnem essas peças, inclusive estas bandas desenhadas. Aí
segue-se o princípio do fac-símile, muito próximo do formato original,
mas com algumas liberdades não-lesivas em termos de enquadramento e “apagando”
o material que não de Almada, a repetição dos títulos, etc. (condições as quais
se podem verificar pelos serviços da Hemeroteca, cujos arquivos digitais são um
instrumento indispensável, cf. imagem em baixo). [na imagem, essas duas edições]
Neste contexto, convém ainda citar Marginálias,
publicado pela Bedeteca e a própria Assírio & Alvim, igualmente nesse ano,
recuperando os contos de uma a duas páginas de Ramón Gómez de la Serna,
belissimamente ilustrados por Almada, ou ainda o anterior Todo Almada
(Contexto: 1994), que também se dedica particularmente à produção gráfica do
autor português. Abrindo o leque dessas assinaturas das linhas estilizadas e
dinâmicas do autor (e Todo Almada inclui as “bds” espanholas), não
revisitam porém estas três “historias para meudos”.
As transformações do texto (actualização ortográfica) nesta
nova edição são de somenos importância, já que pontuais e superficiais, mas é a
transformação das imagens, da sua distribuição de composição, em imagens
isoladas por página, que fazem operar uma mudança de paradigma neste trabalho
de Almada. Se se pode sempre reimaginar um trabalho histórico, e bastas vezes
falámos aqui de projectos que “nunca o foram” na vida dos seus artistas para
ganhar uma nova forma textual nas suas novas edições, neste caso em particular
estamos perante uma transformação que reescreve a história ligeiramente. Para
já, criará a sensação de que a circunstância da sua publicação, enquanto obra
reproduzível e composta em sequências alinhadas na página, são apenas um fruto
de circunstância secundária, forçada até, junto ao artista, e não tipificado
pelo propósito primeiro da sua elaboração mesma. Isto é, terá Almada
congeminado esta organização narrativa para a forma linear e “nobre” com que
agora circula, tendo sido a sua vida n'O Sempre Fixe de 1926 um acidente
de percurso? Se não estamos perante páginas compostas com a mesma elegância e
inventabilidade gráfica de outros autores maiores desta arte franceses ou
norte-americanos, e atrever-nos-íamos mesmo a dizer de alguns portugueses (com
Bordalo, Stuart, Botelho numa hipotética “linha da frente” nessa dimensão do
trabalho específico da banda desenhada), uma compulsão rápida da edição
original demonstrará como Almada pensara as páginas enquanto unidades
completas, e não propriamente como mero sustentáculo de um conjunto ocasional
de desenhos. A disposição em conjuntos de 6 a 9 vinhetas de “Era uma vez”, as
colunas organizadas de “Pechalim”, e os arranjos semi-regulares da
“menina-serpente” apontam para algumas preocupações de composição com vista a
esse “texto final”, perdidas nesta nova disposição.
Mas as consequências vão mais além. A equação da serialização,
a sociabilização do texto hebdomadário e reproduzível, e até mesmo as
circunstâncias económicas, mas acima de tudo as consequências textuais e
diegéticas e, se fôssemos mais longe, a própria con-textualização dos
trabalhos na materialidade da publicação, perde-se neste novo objecto prístino.
O problema não é somente textual, porém, mas até filosófico, pois subsume a
preocupação de Almada a uma ideia de “arte” desconectada destas mesmas
circunstâncias mais imediatas e “salva-o” de uma área de tão pouco prestígio
cultural. Quase num sentido de afirmação de que “não é bem banda desenhada”,
mas antes “desenhos de artista num ciclo narrativo” que, por força do momento,
foram publicadas numa publicação popular, etc. Ou seja, lança mais uma vez
estes trabalhos para os necessários e alimentícios pecadilhos de juventude de
um artista (se bem que na cronologia da vida criativa de Almada Negreiros, isso
seria complicado, dado os seus altos e baixos em termos de recepção crítica,
impacto de vanguarda e maior felicidade económica), conforme o percurso de
tantos outros nomes (Júlio Resende, Bernardo Marques, Cotinelli Telmo). Da
forma como agora é apresentado, Três Histórias Desenhadas estaria
irmanado ao Maestro de Caran D'Ache ou o Poor Richard de Philip
Guston, no sentido de livros construídos depois da vida dos seus autores, mas
também passaria a circular como um dos muitos livros da mesma natureza dos que
os de Frans Masereel, Lynd Ward, William Gropper, Don Freeman, ou outros que
criaram narrativas coesas e curtas em pequenos volumes de narrativas gráficas,
com ligações mais ou menos flexíveis à banda desenhada mais clássica.
Apesar da grande glória de Almada Negreiros em tantas outras
áreas, da prosa à pintura, da dança à pesquisa geométrica, compreender-se-á
melhor o autor como sendo nutrido pela vontade dos grandes autores modernistas,
em que o acto de criar seja o que for é o cerne principal. O que isto quer
dizer não é fazer qualquer coisa a qualquer preço, mas sim, em primeiro
lugar, não ser afugentado por ideias particularizadas das disciplinas, logo
sentir-se liberdade para, querendo fazer pintura, poesia, dança, arquitectura,
cinema, teatro e banda desenhada, fazê-las,
e, em segundo lugar, fazê-lo o melhor possível e no seio dessa mesma escolha.
Ora é aí que a publicação destas três histórias desta forma em particular nos
parece fugir com o rabo à seringa do que fora feito efectivamente: banda
desenhada. Não conjuntos de desenhos isolados que criariam uma fiada narrativa,
mas uma estruturação de conjuntos determinados de cenas, publicadas de uma
maneira específica, num contexto específico, e que funcionariam como tal. A
história de Pechalim, por exemplo, é aquela que mais parece ser coordenada com
pranchas-blocos narrativos, apresentados em 7 capítulos, digamos assim,
semanais.
Nas palavras de João Paulo Cotrim, a banda desenhada é uma
“gota de água” na produção de Almada Negreiros, experimentada por razões
alimentares n'O Sempre Fixe (cujas histórias maiores este livro juntaea
re-publica) e, já em Madrid, no El Sol, em 1928. Como dissemos, esses
trabalhos encontram-se reunidos no obra gráfica de 2004, que deverá ser
re-consultado. Mas este pequeno volume permite-nos encontrar a realidade nestas
unidades.
Em termos visuais, Almada nutre aqui uma linha finíssima,
límpida, quase minimalista, herdeira da tradição fundada por Caran D'Ache (que
queremos crer que Almada conheceria), e que criaria muitos seguidores,
podendo-se arrolar os nomes de Otto Soglow ou Jean Effel na mesma linha. No
entanto, Almada estava plenamente integrado num contexto bem distinto e, face
aos seus companheiros de traços no papel, inclusive na publicação de Pedro
Bordallo, ele distinguia-se dos outros artistas, mais afectos à herança
realista e detalhada dos seus percursores, como Francisco Valença ou Amarelhe.
Ainda que Roberto Nobre, Stuart, Carlos Botelho, e mais ainda Cotinelli Telmo
tenham também alimentado uma abordagem mais estilizada, é Almada que atinge o
paroxismo quase da linha isolada. As suas figuras esguias, “serpentinas”, a
fabricação de cenários simplificados a um objecto (o banco de jardim dos
gémeos, aquela linha relvada maravilhosa de Pechalim ou a sua nuvem) ou a nada
mesmo, a elaboração de corpos e objectos sustentados por contornos líquidos, e
os movimentos elegantes e dramáticos a que se entregam (daí que a exigência de
serem mostrados lado a lado para sublinhar tal dinamismo) tornam-nos numa
simples mas significativa contribuição para a história da nossa banda
desenhada.
Em termos temáticos, e até de representação social, estamos
perante toda uma série de narrativas mais ou menos desligadas de um propósito
de retrato interventivo. As narrativas são lineares, em quase nada possuindo a
fragmentação e flutuação de níveis que se poderão ler na prosa
“interseccionista” do autor, apesar do onírico em “Pechalim” e do absurdo de
“Era uma vez...” ou da comédia de enganos de “A menina-serpente”. Talvez esteja
aqui depositada uma promissora investigação comparatista com a literatura de
Almada, como é o caso dessa magnífica rábula lisboeta, A engomadeira (transformada
numa pequena pérola da animação portuguesa, o filme Um degrau pode ser o
mundo, de Daniel Lima com argumento de J. P. Cotrim). Em que medida é que
esta atenção para com estas classes (e recordemos Saltimbancos!),
presente nas prosas e em duas destas bandas desenhadas, correspondem a
preocupações coesas? Talvez pouco, já que são empregues menos para criar
ambientes e densidades do que plataformas das acções despedidas como setas.
“Era uma vez...” é uma espécie de novela complexa, burguesa,
toda abandonada aos prazeres da vida endinheirada, e onde uma cadeia de
espelhos e repetições oculta a ausência de uma verdadeira narrativa mais
coordenada, psicológica e até emotiva. É quase uma narrativa mecânica, talvez
herança futurista disfarçada de conto da carochinha. “Pechalim”, que tem a
curiosa característica de ter textos “em branco” para serem preenchidos pelos
leitores (se bem que dificilmente alterariam as acções mostradas, e que a dado
momento contêm texto retrospectivo), é uma narrativa que assegura as esperanças
católicas numa recompensa depois da vida e recompensa, em si mesma, apesar de
apenas como sonho, na vida do pobre. “A menina serpente” também segue a
desgraça e fortuna de um par de saltimbancos, e apesar de ter sido interrompida
antes de se concluir, não parecia prometer um desfecho à la Gata Borralheira,
mas sim a de manter a protagonista na sua vida miserável. Não havendo mais
material, e sendo as histórias produzidas em Espanha fruto de colaborações ou
contextos distintos, não podemos atingir uma interpretação maior, mas parecem
estas histórias prometer pouca mobilidade social, mas antes uma constatação de
facto das fortunas já existentes das personagens.
A re-circulação, e até foco concentrado, que este livro
permitirá é de uma importância imensa, para redescobrir estas histórias. Mas
não se pode perder de vista o pasto que as viu nascer.
Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta do volume.
2 comentários:
Isto que vou dizer não tem nada a ver com este livro (o qual, digo-o ede passagem, achei algo decepcionante, e por aqui fico...). A banda desenhada genial de Almada é o mito português por excelência, os painéis de S. Vicente de Fora. De notar ainda que, acima, oponho "mito" a "ciência".
Ha! Ha! Compreendo perfeitamente, se bem que tenho de reler os materiais que levaram à emergência dessas mesmas ideias... mas é bem visto! Um détournement/apropriação!
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