Por razões
de vária ordem, tentaremos experimentar notas mais breves de
leituras de alguns títulos, já que se têm acumulado demasiados
títulos nos últimos meses, e poucas oportunidades de nos sentarmos
para escrever de forma consequente. Comecemos com dois livros da
autoria do autor André Diniz, agora radicado em Lisboa, entre nós,
pela Polvo. (Mais)
O primeiro
ponto a assinalar entre os dois livros é o seu tom “ácido”.
Ambos exploram dimensões menos felizes da personalidade e relações
humanas, independentemente da putativa "redenção" dos protagonistas respectivos. A colaboração com Tainan Rocha, ilustrador e poeta
contemporâneo, numa veia de beat, é parcialmente baseada em
acontecimentos reais, pelo menos o enquadramento dos deslizamentos de
terras nas serras perto do Rio de Janeiro, e as trágicas
consequências que teve para as populações de alguns dos seus
bairros mais socialmente frágeis e pobres. Os autores criam uma
narrativa muito curta, um livro com pouco mais que quarenta pranchas,
concentrando-se no que sucede nos minutos após a derrocada de
algumas das barracas e o soterramento de algumas pessoas. No momento
imediatamente anterior, os autores constroem, em apenas 8 spreads,
de uma forma estrutural e narrativamente memorável, toda a premissa
e tensão da história. Existe uma personagem que é odiada pelo
bairro, Donato, devido a um evento anterior, um crime, cuja
responsabilidade lhe parece ser atribuída. A protagonista, Bárbara,
é uma jovem mulher, que se verá numa encruzilhada de decisões,
sobretudo ética: devemos mostrar empatia para com quem não sente
empatia? Devemos ser correctos nas nossas próprias acções face a
alguém que poderá não ter seguido a mesma regra?
Que
Deus te Abandone acaba por se tornar um desses objectos de ficção
que nos obriga à consideração de um espelho ético e um exercício
nocional sobre os comportamentos a que podemos alguma vez ser
confrontados. Bárbara é claramente um signo de indecisão, no
centro de toda uma série de personagens que estão absolutamente
seguras do que devem fazer e como se comportar, mas é precisamente
essa falta de certeza que a torna mais humana. Nunca perfeita, mas
colocando a questão da forma mais acabada possível.
O desenho
de Tainan Rocha, debuxado com linhas compridas, rápidas e nervosas,
parece mimar a forma como as pesadas chuvas tombam, a terra desliza,
o caos de sombras e confusão se instala em nosso torno, para depois
com elas esculpir as personagens e espaços, utilizado técnicas
claríssimas de estilização e expressão que dinamizam ainda mais
as acções representadas.
Malditos
Amigos é já desenhado pelo próprio Diniz, no seu consabido
estilo herdeiro de toda uma tradição popular de altos contrastes,
recortes, estampa popular, se bem que este livro tenha uma segunda cor,
um cinzento muito subtil, que torna as imagens mais vivazes e
volumosas. Aparentemente, este livro contém alguns contornos
autobiográficos, mas seja como se negoceie essa informação face à
“realidade diegética” do próprio livro, ela espelha-se, pelo
menos, na estratégia de conter uma faixa de narração na primeira
pessoa, que vai adensando todo o universo da história.
Ramsés, o
protagonista, é um homem que não apenas está a atravessar uma
crise da primeira idade adulta – não é propriamente uma “crise
de meia-idade”, que pressupõe já uma realização profissional e
familiar, burguesa e confortável, que depois esbarra contra o
desvanecimento das últimas energias masculinas, mas o confronto com
a necessidade de abandonar precisamente os ideais adolescentes e
livres face aos compromissos que viver em sociedade obriga, sejam
eles a nível do trabalho ou das relações amorosas, enfim, o ter
de viver com os outros – como igualmente psicológica. Ramsés
sofrerá de um distúrbio a nível clínico, entre a depressão e a
esquizofrenia, e é acompanhado por essa razão por médicos e
medicamentos, e vemos a emergência e gestão de uma dessas crises,
acerbada pelas tensões com todo o mundo à sua volta, e espoletada
sobretudo pelo retorno de um antigo amigo de infância, que
representará toda a crise herdada.
Diniz
tematiza esse confronto ao dar corpo à crise psicológica, à
“doença” ou “medo”, um pouco como David B. havia feito em
L'ascension du Haut Mal com a epilepsia do seu irmão. Na obra
do autor francês, a “doença” era mutante, desde um dragão até
uma segunda pele, e aqui surge como uma espécie de um Barbapapa
ciclope composto de sombras e riscos, quase como se se tratasse de
uma metáfora do próprio acto criativo do desenho tornado excessivo,
debilitante e imparável. Ramsés é um artista tatuador, uma tarefa
tão distinta quanto próxima de autor de desenho.
O livro
segue alguns dos clichés das pessoas sofredoras de distúrbios
mentais, nomeadamente a questão entre o tomar ou não os
medicamentos e em que medida as alterações de comportamento que
trazem são benéficas ou não para a criatividade, levantando
questões muito complexas em termos éticos, mas a vida de Ramsés é
analisada com uma lupa não apenas precisa e detalhada como empática,
aliás, um dos grandes instrumentos de André Diniz. Com mais de 200
páginas, e particularmente palavroso, o autor dá-se ao luxo,
digamos assim, de poder explorar os mundos interiores esboçados por
Ramsés, como igualmente as marés turbulentas das suas relações
com os companheiros do atelier de tatuagem, a namorada, os clientes,
as memórias de infância e adolescência e, acima de tudo, o tal
amigo, Jupará.
O autor
confessou igualmente que o livro se trata de uma espécie de carta de
amor e de ódio à cidade de São Paulo, que surge aqui não apenas
enquanto cenário e muito menos como espaço circunstancial da acção,
mas como uma personagem a tempo inteiro, mesmo que a sua relação
com a história e com Ramsés seja algo complexa, e merecedora de uma
leitura isolada. Existem alguns apontamentos, como por exemplo sobre
as bancas de revistas da cidade, que são efectivamente pequenos
retratados de uma história cultural muito rica e estimulante.
Nota
final: agradecimentos à editora, pela oferta dos livros.
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