26 de julho de 2018

Malditos Amigos/Que Deus te Abandone. André Diniz, com Tainan Rocha (Polvo)



Por razões de vária ordem, tentaremos experimentar notas mais breves de leituras de alguns títulos, já que se têm acumulado demasiados títulos nos últimos meses, e poucas oportunidades de nos sentarmos para escrever de forma consequente. Comecemos com dois livros da autoria do autor André Diniz, agora radicado em Lisboa, entre nós, pela Polvo. (Mais) 
O primeiro ponto a assinalar entre os dois livros é o seu tom “ácido”. Ambos exploram dimensões menos felizes da personalidade e relações humanas, independentemente da putativa "redenção" dos protagonistas respectivos. A colaboração com Tainan Rocha, ilustrador e poeta contemporâneo, numa veia de beat, é parcialmente baseada em acontecimentos reais, pelo menos o enquadramento dos deslizamentos de terras nas serras perto do Rio de Janeiro, e as trágicas consequências que teve para as populações de alguns dos seus bairros mais socialmente frágeis e pobres. Os autores criam uma narrativa muito curta, um livro com pouco mais que quarenta pranchas, concentrando-se no que sucede nos minutos após a derrocada de algumas das barracas e o soterramento de algumas pessoas. No momento imediatamente anterior, os autores constroem, em apenas 8 spreads, de uma forma estrutural e narrativamente memorável, toda a premissa e tensão da história. Existe uma personagem que é odiada pelo bairro, Donato, devido a um evento anterior, um crime, cuja responsabilidade lhe parece ser atribuída. A protagonista, Bárbara, é uma jovem mulher, que se verá numa encruzilhada de decisões, sobretudo ética: devemos mostrar empatia para com quem não sente empatia? Devemos ser correctos nas nossas próprias acções face a alguém que poderá não ter seguido a mesma regra?


Que Deus te Abandone acaba por se tornar um desses objectos de ficção que nos obriga à consideração de um espelho ético e um exercício nocional sobre os comportamentos a que podemos alguma vez ser confrontados. Bárbara é claramente um signo de indecisão, no centro de toda uma série de personagens que estão absolutamente seguras do que devem fazer e como se comportar, mas é precisamente essa falta de certeza que a torna mais humana. Nunca perfeita, mas colocando a questão da forma mais acabada possível.

O desenho de Tainan Rocha, debuxado com linhas compridas, rápidas e nervosas, parece mimar a forma como as pesadas chuvas tombam, a terra desliza, o caos de sombras e confusão se instala em nosso torno, para depois com elas esculpir as personagens e espaços, utilizado técnicas claríssimas de estilização e expressão que dinamizam ainda mais as acções representadas.

Malditos Amigos é já desenhado pelo próprio Diniz, no seu consabido estilo herdeiro de toda uma tradição popular de altos contrastes, recortes, estampa popular, se bem que este livro tenha uma segunda cor, um cinzento muito subtil, que torna as imagens mais vivazes e volumosas. Aparentemente, este livro contém alguns contornos autobiográficos, mas seja como se negoceie essa informação face à “realidade diegética” do próprio livro, ela espelha-se, pelo menos, na estratégia de conter uma faixa de narração na primeira pessoa, que vai adensando todo o universo da história.

Ramsés, o protagonista, é um homem que não apenas está a atravessar uma crise da primeira idade adulta – não é propriamente uma “crise de meia-idade”, que pressupõe já uma realização profissional e familiar, burguesa e confortável, que depois esbarra contra o desvanecimento das últimas energias masculinas, mas o confronto com a necessidade de abandonar precisamente os ideais adolescentes e livres face aos compromissos que viver em sociedade obriga, sejam eles a nível do trabalho ou das relações amorosas, enfim, o ter de viver com os outros – como igualmente psicológica. Ramsés sofrerá de um distúrbio a nível clínico, entre a depressão e a esquizofrenia, e é acompanhado por essa razão por médicos e medicamentos, e vemos a emergência e gestão de uma dessas crises, acerbada pelas tensões com todo o mundo à sua volta, e espoletada sobretudo pelo retorno de um antigo amigo de infância, que representará toda a crise herdada.

Diniz tematiza esse confronto ao dar corpo à crise psicológica, à “doença” ou “medo”, um pouco como David B. havia feito em L'ascension du Haut Mal com a epilepsia do seu irmão. Na obra do autor francês, a “doença” era mutante, desde um dragão até uma segunda pele, e aqui surge como uma espécie de um Barbapapa ciclope composto de sombras e riscos, quase como se se tratasse de uma metáfora do próprio acto criativo do desenho tornado excessivo, debilitante e imparável. Ramsés é um artista tatuador, uma tarefa tão distinta quanto próxima de autor de desenho.

O livro segue alguns dos clichés das pessoas sofredoras de distúrbios mentais, nomeadamente a questão entre o tomar ou não os medicamentos e em que medida as alterações de comportamento que trazem são benéficas ou não para a criatividade, levantando questões muito complexas em termos éticos, mas a vida de Ramsés é analisada com uma lupa não apenas precisa e detalhada como empática, aliás, um dos grandes instrumentos de André Diniz. Com mais de 200 páginas, e particularmente palavroso, o autor dá-se ao luxo, digamos assim, de poder explorar os mundos interiores esboçados por Ramsés, como igualmente as marés turbulentas das suas relações com os companheiros do atelier de tatuagem, a namorada, os clientes, as memórias de infância e adolescência e, acima de tudo, o tal amigo, Jupará.

O autor confessou igualmente que o livro se trata de uma espécie de carta de amor e de ódio à cidade de São Paulo, que surge aqui não apenas enquanto cenário e muito menos como espaço circunstancial da acção, mas como uma personagem a tempo inteiro, mesmo que a sua relação com a história e com Ramsés seja algo complexa, e merecedora de uma leitura isolada. Existem alguns apontamentos, como por exemplo sobre as bancas de revistas da cidade, que são efectivamente pequenos retratados de uma história cultural muito rica e estimulante.
Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta dos livros.

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