Na esteira
de toda uma produção de livros de banda desenhada que procuram
popularizar, sobretudo junto a um público mais jovem, ou alargado,
ou apressado, etc., temas de alguma complexidade através de
discursos mais simples mas não menos sistematizados e sempre com
humor e a facilitação permitida pela camada visual, este livro é
uma espécie de súmula da história da filosofia ocidental. De certa
forma, Larry Gonick é o percursor imediato deste projecto, com os
seus variadíssimos guias disciplinares e a sua História
Universal, igualmente publicada pela Gradiva, a qual também
lançou recentemente os primeiros volumes da colecção Pequena Bedeteca do Saber. Mas poderíamos citar ainda projectos tão
distintos tais como Dinosaur Empire! ou os Science Comics
para um público infantil, ou o projecto mais ensaístico de Jens Harder... (Mais)
Esta
Introdução coloca no centro da atenção um guia, que no
caso é Heraclito, cunhador da noção de que Panta rhei,
“tudo flui”, para que a sua famosa metáfora do rio cujas águas
sempre se alteram ganhe no livro uma presença física, sob a forma
de um rápido e serpeante curso de água que ele desce numa canoa,
para ir encontrando as figuras que constroem esta narrativa de
séculos e ideias que se complementam, opõem, digladiam e abrem
novos sulcos nesse rio. De vez em quando, Heraclito abandona a canoa
para se aventurar nos não mais sólidos terrenos de cavernas,
bosques, laboratórios, galerias e bares populados pelos filósofos.
O livro
não é tanto uma defesa de uma teoria ou perspectiva filosófica
sobre um determinado aspecto mas um sumário de como os debates sobre
esses mesmos aspectos foram sendo feitos historicamente, em diálogos
de interlocutores afastados por séculos mas não pelos seus
instrumentos conceptuais e intelectuais – se bem que existem
claramente tomadas de posição em relação a esses mesmos aspectos.
Daí que o livro não esteja organizado tão-somente numa forma
cronológica, mas dividido-se em capítulos temáticos, no interior
de cada qual já se poderá apontar de facto uma organização
temporal, demonstrando as “conquistas” ou “críticas” de cada
filósofo do edifício anterior sobre o qual construirá a sua tese.
O primeiro capítulo é dedicado à “lógica”, que se pode
entender como a linguagem basilar para a discussão filosófica, o
uso da argumentação, do conhecimento baseado nas leituras e
análises cuidadas dos textos – há um cânone por alguma razão, e
o livro problematiza a necessidade de se ater a esse cânone, mas
fá-lo -, colocando de lado discursos ditos “alternativos”, mas
que não podem de forma alguma ser analisados (ou “falsificáveis”,
se nos permitirem empregar um termo da ciência) como o pensamento
mágico, as crenças religiosas, ou outros sistemas de significação.
Aqui reside a importância da primeira lição da filosofia, que é
libertarmo-nos do sofismo e da doxa.
Os
capítulos depois organizam-se segundo os temas da “percepção”,
“mentes”, “livre-arbítrio”, “Deus” e “ética”. Uma
vez que os autores utilizam a tal metáfora do rio, articulam de uma
forma muito elegante os entrosamentos de um tema no outro, como se
cada um fosse uma matéria básica que se deve compreender e dominar
antes de penetrar no seguinte. Haveria seguramente alternativas, mas
é admirável a capacidade de síntese e associação cumprida e
sobretudo a maneira como se permite uma associação da filosofia a
outras disciplinas, do cálculo à astronomia, física e economia,
biologia e computação, compreendendo-se a maneira como estas
disciplinas se alimentam e reforçam mutuamente.
Para
que se facilite a comunicabilidade de todas estas lições, é
natural que os autores tenham criado o instrumento retórico da
descida de Heraclito do rio e o seu diálogo directo e amigável com
todos os outros filósofos que vai encontrando. Há uma espécie de
narrativa, de diversões, de acções e de representações das
personagens que trazem uma dimensão emotiva curiosa e ajudará a
ancorar as ideias (Kant como uma criança pequena, Berkeley como um
austero lenhador, Demócrito como um exímio jogador de bilhar,
Descartes como um franciú
cool, Nietzshe como um
náufrago deprimido (ainda bem que Kiekegaard não aparece!). Todos
estes instrumentos tornam este livro apropriado a leitores em torno
dos 10 anos de idade, sobretudo se for um convite activo a depois
descobrir outros livros igualmente apropriados (não nos parece que
ler a Crítica da Razão Pura,
o Tractatus Logico-Philosophicus
ou o Anti-Édipo sejam
escolhas apropriadas ou fáceis a qualquer idade...). Sempre que
surge uma nova figura, são empregues pequenos quadros informativos,
que servem de “cromos” introdutórios a cada filósofo, os quais,
como dissemos, constituem um claro cânone: Platão e Aristóteles,
Descartes e Leibniz, Hume e Kant, Bentham e Nietzshe.
Apesar
das liberdades temáticas, e a fluidez cronológica, a metáfora da
descida do rio tem um aspecto que poderá ser contra-producente. É
que instila uma ideia de causalidade sobre a própria história, ou
pior, uma patente ideia de “evolução”, “avanço” ou
“progresso”. Se de um ponto de vista social ou científico
poderemos dizer-nos mais avançados do que na Grécia Antiga, a Idade
Média europeia ou mesmo o século XIX ou XX, em termos filosóficos
haverá sempre uma brecha na aplicabilidade dessas mesmas noções.
O livro
está longe de ser perfeito e existem trechos onde pode mesmo ser
problemático. Por exemplo, quando se fala da impossibilidade de “ter
um número infinito de anos a partir de agora indo para trás no
tempo” (é Kant quem o afirma), não se explica a argumentação ou
base para poder sustentar esse conceito. Apesar dessa ideia ser
imediatamente posta em causa pelo nosso guia (“um passado infinito
não terá de conter um momento que esteja a uma distância infinita
do momento presente”), essa refutação não é igualmente
satisfatória. É natural que, na organização de qualquer projecto,
estejamos sempre informados por interesses pessoais ou
posicionamentos específicos, e não é sempre legítimo jogar uma
expectativa específica contra as decisões dos autores. Todavia, e
compreendo a dificuldade que é em fazer uma súmula compreensiva de
mais de dois milénios de incessantes diálogos entre os conceitos,
não deixa de ser algo insatisfatório ver que o “tempo de antena”
de alguns dos nomes arregimentados nesta procissão são demasiado
diminutos ou simplificados, ou mesmo totalmente ausentes. Um caso
gritante é o do tema do tempo,
precisamente, que poderia ter permitido uma maior presença de Kant,
o qual participa numa mera meia-dúzia de vinhetas em dois
momentos/temas distintos. Ou teria permitido chamar a figura de Henri
Bergson ou aberto mais uma linha de diálogo com as especulações
ancoradas na física contemporânea.
Há outras
duas dimensões, contraditórias entre si, talvez, que nos parecem
ter sido colocadas totalmente de lado. Por um lado, como se
verificou, trata-se de uma abordagem da filosofia ocidental, que tem
sido conduzida pela ideia da razão, do conhecimento e da ontologia,
mas que acaba por criar um edifício muitas vezes impenetrável por
uma abordagem do “quotidiano”, algo que o pensamento intelectual
de outros quadrantes culturais articula de forma mais imediata, ou
que é tentando igualmente por autores no mundo ocidental. Não
estamos a falar de livros de “auto-ajuda”, de Paulo Coelho, nem
de confortos à la Alain de Botton, mas de abordagens que contemplem
problemáticas com que nos confrontamos nas nossas escolhas diárias,
e até triviais, nas quais poderão emergir conflitos que têm estado
no coração dos debates filosóficos. Pessoas como Peter Singer,
Judith Butler, Noam Chomsky, Slavoj Zizek têm trazido à baila
questões de profundas consequências imediatas e palpáveis de uma
forma estimulante, mesmo que não se concorde com todas as suas
visões, metodologias ou até se compreendam as controvérsias em que
se inscrevem.
Por outro,
a questão prender-se-ia com a limitação dos temas e, claro, as
figuras que surgem. As escolhas são sempre abertas a serem pensadas
por perspectivas distintas, como já indicámos. Pela nota de
agradecimentos de Patton, este livro parece que poderia ter sido
escrito por David Chalmers, cujo trabalho no campo do cognitivismo
tem aberto novas (ou velhas) sendas de discussão sobre o que
significa a ideia de “consciência”, humana e não só. Será
essa a razão pela qual os autores se sentiram na obrigação de o
incluir num cameo, para que falasse brevemente na sua teoria
do “zombie/cópia sem consciência” (tudo acaba por surgir de uma
forma demasiado sucinta, por vezes) no seguimento das discussões em
torno do que faz de nós seres conscientes? Mas se esse é o tema,
apetece perguntar, onde está Freud, onde está Arendt? E ao discutir
os blocos da linguagem, já que são os instrumentos da nossa
construção da comunicabilidade e, discutivelmente, do mundo, porque
não chamar as figuras de Saussure, de Peirce, de Wittgenstein, de
Derrida? Porque não permitir abrir uma discussão sobre a actividade
política associada directamente aos acontecimentos do mundo,
discutindo Benjamin, Foucault, autores vivos? E a estética? Os etcs.
não serão infinitos, mas são muitos.
Lá está,
Introdução é isso mesmo, uma introdução, um primeiro
passo, ou descida de um rápido, num território demasiado lato,
móvel e aberto a transformações sísmicas à medida que se
articulam com outros campos, e não se poderá julgar este livro
contra uma putativa colecção de livros que discutissem a história
da filosofia atreita a campos determinados. Donna Haraway escreveu há
recente, “É importante que histórias estão a contar histórias,
que conceitos estão a pensar conceitos”... Este livro é um
excelente instrumento para começar a contar as histórias e a pensar
os conceitos.
Nota
final: agradecimentos à editora, pela oferta do livro.
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