1 de julho de 2018

Introdução à Filosofia em Banda Desenhada. Michael F. Patton e Kevin Cannon (Gradiva)


Na esteira de toda uma produção de livros de banda desenhada que procuram popularizar, sobretudo junto a um público mais jovem, ou alargado, ou apressado, etc., temas de alguma complexidade através de discursos mais simples mas não menos sistematizados e sempre com humor e a facilitação permitida pela camada visual, este livro é uma espécie de súmula da história da filosofia ocidental. De certa forma, Larry Gonick é o percursor imediato deste projecto, com os seus variadíssimos guias disciplinares e a sua História Universal, igualmente publicada pela Gradiva, a qual também lançou recentemente os primeiros volumes da colecção Pequena Bedeteca do Saber. Mas poderíamos citar ainda projectos tão distintos tais como Dinosaur Empire! ou os Science Comics para um público infantil, ou o projecto mais ensaístico de Jens Harder... (Mais) 

Esta Introdução coloca no centro da atenção um guia, que no caso é Heraclito, cunhador da noção de que Panta rhei, “tudo flui”, para que a sua famosa metáfora do rio cujas águas sempre se alteram ganhe no livro uma presença física, sob a forma de um rápido e serpeante curso de água que ele desce numa canoa, para ir encontrando as figuras que constroem esta narrativa de séculos e ideias que se complementam, opõem, digladiam e abrem novos sulcos nesse rio. De vez em quando, Heraclito abandona a canoa para se aventurar nos não mais sólidos terrenos de cavernas, bosques, laboratórios, galerias e bares populados pelos filósofos.


O livro não é tanto uma defesa de uma teoria ou perspectiva filosófica sobre um determinado aspecto mas um sumário de como os debates sobre esses mesmos aspectos foram sendo feitos historicamente, em diálogos de interlocutores afastados por séculos mas não pelos seus instrumentos conceptuais e intelectuais – se bem que existem claramente tomadas de posição em relação a esses mesmos aspectos. Daí que o livro não esteja organizado tão-somente numa forma cronológica, mas dividido-se em capítulos temáticos, no interior de cada qual já se poderá apontar de facto uma organização temporal, demonstrando as “conquistas” ou “críticas” de cada filósofo do edifício anterior sobre o qual construirá a sua tese. O primeiro capítulo é dedicado à “lógica”, que se pode entender como a linguagem basilar para a discussão filosófica, o uso da argumentação, do conhecimento baseado nas leituras e análises cuidadas dos textos – há um cânone por alguma razão, e o livro problematiza a necessidade de se ater a esse cânone, mas fá-lo -, colocando de lado discursos ditos “alternativos”, mas que não podem de forma alguma ser analisados (ou “falsificáveis”, se nos permitirem empregar um termo da ciência) como o pensamento mágico, as crenças religiosas, ou outros sistemas de significação. Aqui reside a importância da primeira lição da filosofia, que é libertarmo-nos do sofismo e da doxa.

Os capítulos depois organizam-se segundo os temas da “percepção”, “mentes”, “livre-arbítrio”, “Deus” e “ética”. Uma vez que os autores utilizam a tal metáfora do rio, articulam de uma forma muito elegante os entrosamentos de um tema no outro, como se cada um fosse uma matéria básica que se deve compreender e dominar antes de penetrar no seguinte. Haveria seguramente alternativas, mas é admirável a capacidade de síntese e associação cumprida e sobretudo a maneira como se permite uma associação da filosofia a outras disciplinas, do cálculo à astronomia, física e economia, biologia e computação, compreendendo-se a maneira como estas disciplinas se alimentam e reforçam mutuamente.



Para que se facilite a comunicabilidade de todas estas lições, é natural que os autores tenham criado o instrumento retórico da descida de Heraclito do rio e o seu diálogo directo e amigável com todos os outros filósofos que vai encontrando. Há uma espécie de narrativa, de diversões, de acções e de representações das personagens que trazem uma dimensão emotiva curiosa e ajudará a ancorar as ideias (Kant como uma criança pequena, Berkeley como um austero lenhador, Demócrito como um exímio jogador de bilhar, Descartes como um franciú cool, Nietzshe como um náufrago deprimido (ainda bem que Kiekegaard não aparece!). Todos estes instrumentos tornam este livro apropriado a leitores em torno dos 10 anos de idade, sobretudo se for um convite activo a depois descobrir outros livros igualmente apropriados (não nos parece que ler a Crítica da Razão Pura, o Tractatus Logico-Philosophicus ou o Anti-Édipo sejam escolhas apropriadas ou fáceis a qualquer idade...). Sempre que surge uma nova figura, são empregues pequenos quadros informativos, que servem de “cromos” introdutórios a cada filósofo, os quais, como dissemos, constituem um claro cânone: Platão e Aristóteles, Descartes e Leibniz, Hume e Kant, Bentham e Nietzshe.

Apesar das liberdades temáticas, e a fluidez cronológica, a metáfora da descida do rio tem um aspecto que poderá ser contra-producente. É que instila uma ideia de causalidade sobre a própria história, ou pior, uma patente ideia de “evolução”, “avanço” ou “progresso”. Se de um ponto de vista social ou científico poderemos dizer-nos mais avançados do que na Grécia Antiga, a Idade Média europeia ou mesmo o século XIX ou XX, em termos filosóficos haverá sempre uma brecha na aplicabilidade dessas mesmas noções.

O livro está longe de ser perfeito e existem trechos onde pode mesmo ser problemático. Por exemplo, quando se fala da impossibilidade de “ter um número infinito de anos a partir de agora indo para trás no tempo” (é Kant quem o afirma), não se explica a argumentação ou base para poder sustentar esse conceito. Apesar dessa ideia ser imediatamente posta em causa pelo nosso guia (“um passado infinito não terá de conter um momento que esteja a uma distância infinita do momento presente”), essa refutação não é igualmente satisfatória. É natural que, na organização de qualquer projecto, estejamos sempre informados por interesses pessoais ou posicionamentos específicos, e não é sempre legítimo jogar uma expectativa específica contra as decisões dos autores. Todavia, e compreendo a dificuldade que é em fazer uma súmula compreensiva de mais de dois milénios de incessantes diálogos entre os conceitos, não deixa de ser algo insatisfatório ver que o “tempo de antena” de alguns dos nomes arregimentados nesta procissão são demasiado diminutos ou simplificados, ou mesmo totalmente ausentes. Um caso gritante é o do tema do tempo, precisamente, que poderia ter permitido uma maior presença de Kant, o qual participa numa mera meia-dúzia de vinhetas em dois momentos/temas distintos. Ou teria permitido chamar a figura de Henri Bergson ou aberto mais uma linha de diálogo com as especulações ancoradas na física contemporânea.

Há outras duas dimensões, contraditórias entre si, talvez, que nos parecem ter sido colocadas totalmente de lado. Por um lado, como se verificou, trata-se de uma abordagem da filosofia ocidental, que tem sido conduzida pela ideia da razão, do conhecimento e da ontologia, mas que acaba por criar um edifício muitas vezes impenetrável por uma abordagem do “quotidiano”, algo que o pensamento intelectual de outros quadrantes culturais articula de forma mais imediata, ou que é tentando igualmente por autores no mundo ocidental. Não estamos a falar de livros de “auto-ajuda”, de Paulo Coelho, nem de confortos à la Alain de Botton, mas de abordagens que contemplem problemáticas com que nos confrontamos nas nossas escolhas diárias, e até triviais, nas quais poderão emergir conflitos que têm estado no coração dos debates filosóficos. Pessoas como Peter Singer, Judith Butler, Noam Chomsky, Slavoj Zizek têm trazido à baila questões de profundas consequências imediatas e palpáveis de uma forma estimulante, mesmo que não se concorde com todas as suas visões, metodologias ou até se compreendam as controvérsias em que se inscrevem.

Por outro, a questão prender-se-ia com a limitação dos temas e, claro, as figuras que surgem. As escolhas são sempre abertas a serem pensadas por perspectivas distintas, como já indicámos. Pela nota de agradecimentos de Patton, este livro parece que poderia ter sido escrito por David Chalmers, cujo trabalho no campo do cognitivismo tem aberto novas (ou velhas) sendas de discussão sobre o que significa a ideia de “consciência”, humana e não só. Será essa a razão pela qual os autores se sentiram na obrigação de o incluir num cameo, para que falasse brevemente na sua teoria do “zombie/cópia sem consciência” (tudo acaba por surgir de uma forma demasiado sucinta, por vezes) no seguimento das discussões em torno do que faz de nós seres conscientes? Mas se esse é o tema, apetece perguntar, onde está Freud, onde está Arendt? E ao discutir os blocos da linguagem, já que são os instrumentos da nossa construção da comunicabilidade e, discutivelmente, do mundo, porque não chamar as figuras de Saussure, de Peirce, de Wittgenstein, de Derrida? Porque não permitir abrir uma discussão sobre a actividade política associada directamente aos acontecimentos do mundo, discutindo Benjamin, Foucault, autores vivos? E a estética? Os etcs. não serão infinitos, mas são muitos.

Lá está, Introdução é isso mesmo, uma introdução, um primeiro passo, ou descida de um rápido, num território demasiado lato, móvel e aberto a transformações sísmicas à medida que se articulam com outros campos, e não se poderá julgar este livro contra uma putativa colecção de livros que discutissem a história da filosofia atreita a campos determinados. Donna Haraway escreveu há recente, “É importante que histórias estão a contar histórias, que conceitos estão a pensar conceitos”... Este livro é um excelente instrumento para começar a contar as histórias e a pensar os conceitos.
Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta do livro.

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