24 de julho de 2020

Desvio. Ana Pessoa e Bernardo P. Carvalho (Planeta Tangerina)


Este título poderá vir a tornar-se num importante contributo para a literatura gráfica portuguesa, menos pelas suas conquistas estéticas ou reinvenção da arte, relativamente calma, mas por o que ele poderá representar em termos de espelho das emoções mais vigentes nas gerações jovens dos nossos tempos. Desenganem-se aqueles que procurem aqui uma “plot-oriented story” à la Harry Potter ou outra bodega YA que ande por aí à espera de adaptação cinematográfica. Desvio não é bombástico. Sussurra com compreensão. (Mais) 

Desvio não é o primeiro livro que a escritora Ana Pessoa cria com Bernardo Carvalho, nem tampouco uma obra da escritora em que a imagem não participe com um papel muito além do da usual compreensão de “ilustração”, para assumir encargos mais significativos na fabricação dos sentidos. As imagens, seja nos “romances” ou outro tipo de objectos, não se encontra somente para “vender” as frases de Pessoa, mas para estabelecer uma simbiose que leve um pouco mais além as ligações com as suas personagens, as emoções destas, as alianças criadas entre elas, e sobretudo aquilo que fica por dizer na matéria verbal.

Em Mary John, por exemplo, há mesmo sequências, ou pranchas, que trabalhando em paralelo com o texto, oferecem um reforço de intensidade e ritmo. E o que dizer que Aqui é um bom lugar, com Joana Estrela? Chamar-lhe “literatura ilustrada” não é suficiente. É uma verdadeira colaboração. Uma mestria do diálogo entre as autoras. Em Desvio, essa capacidade de jogar ténis volta a estar patente, em que há um movimento líquido entre as possíveis responsabilidades autorais de Pessoa e Carvalho, mesmo que se confundam, seguramente. Todavia, haverá uma diferença, pelo menos de grau, num projecto descrito como “banda desenhada”, em que a “faixa” da narrativa/história se une à da imagem para fundar o território dos sentidos, narrativos, emotivos e secretos, do mundo diegético que tece. Ou seja, ou a banda desenhada é o resultado natural da colaboração entre os dois autores, ou é um território em que se exacerba a capacidade de absorção, em cada um dos autores, das vontades do outro: Pessoa desenhada, Carvalho escreve.

A autora é muitas vezes comparada com outros importantes nomes da literatura dita para jovens, sejam portugueses ou estrangeiros, de décadas passadas ou mesmo contemporâneas. A nosso ver, talvez esteja mais próximo de um tom à la Sue Townsend, em que se afastam todos e quaisquer mecanismos de tentar incutir “lições históricas”, “alta cultura”, “moralismo” ou “dimensões edificantes” em nome de uma genuína compreensão por todo o tumulto da vida dos adolescentes. E os muitos perigos que espreitam esses dias, alguns dos quais sedutores. O frisson da descoberta de domínios “adultos” - fumos, álcoois, sexualidade, e essa coisa tão difusa e estranha e pesada que é a “liberdade” - são, a um só tempo, e para ficarmos nas metáforas de trânsito exploradas neste livro, um paradoxal semáforo com as luzes verde e vermelha ligada. Isto é, não há regras claras nem ditames certeiros, está mesmo nas nossas mãos a decisão. Estaremos prontos? Estará o Miguel, protagonista de Desvio, pronto? São essas questões que ele, durante esta temporada em que passará sozinho em casa, aos 18 anos, estudando o código da estrada, com os pais de férias, os amigos em viagem, e a namorada a pedir-lhe “um tempo”, se colocará, observando rituais domésticos diários de uma forma quase automática, deixando em lume baixinho quaisquer tomadas de acção. Aliás, a ausência dos pais faz com que leitores mais velhos, pais talvez, possam ler este livro como uma forma de “ler os filhos” também, ao passo que os mais jovens, que se identifiquem com o protagonista, possam ler isto como um companheiro com as mesmas preocupações. Não que ele tenha respostas ou seja um “modelo”, mas pelo menos um reflexo, um símile, um aspecto, uma proximidade. Apenas um ligeiríssimo desvio da mesma situação.

No que diz respeito à imagem, recordemo-nos de que Bernardo Carvalho é um exímio, heteróclito e multifacetado ilustrador, que procura reinventar as possibilidades das suas prestações gráficas conforme o projecto a que se dedica. Ainda que munido de um “estilo”, ou de uma “assinatura” que é recorrente entre vários projectos, não é inusual sermos surpreendidos por algo que é escavado na máxima especificidade do texto/projecto em questão. Pense-se em Troscoscópio, feito com celofanes coloridos transparentes, transformando uma performance sobre variações de materiais “fechados” numa re-construção ideológica; em Daqui ninguém passa!, que tira partido total da espacialização absoluta e deíctica do objecto-livro para a diegese; os livros duplos e cruzados Olhe, por favor, etc. e As duas estradas; a transformação do homem-pai em objectos úteis de Pê de pai. As pesquisas do artista nem sempre são as do “escritor” ou mesmo do “contador de histórias”, mas do fabricante de significados.

Em Desvio, até certo ponto, podemos dizer que a arte de Carvalho estará mais subsumido ao programa narrativo, mesmo nos momentos em que “não se passa nada”, ou os diálogos e legendas saem de campo para dar conta de momentos hedonistas senão “desperdiçados”. Dito isto, seria fácil encontrar várias questões em que diríamos não cobrir o artista as várias possibilidades estruturais, expressivas e até comunicativas da banda desenhada. Que haveria hipóteses de sofisticação pelos quais não enveredou. Estaríamos errados? De um ponto de vista analítico, talvez não. Mas seria pertinente? De todo, seria mesmo um desperdício e uma falta de atenção à forma fluida, implicada e tranquila com que o artista cria a sua primeira banda desenhada tout court.

Por exemplo, as cores de Carvalho lançam mão de tudo o que podem, sem grandes estratégias pensadas atempadamente, de limitação criativa, mas funciona, como se facto captasse na perfeição os dias de canícula iluminadíssima pelos céus límpidos e azuis de Portugal, sobretudo Lisboa. A acção passa-se numa cidade que é gémea de Lisboa, e é-nos possível reconhecer certos elementos, cantos, zonas da cidade, edifícios e até atitudes ou possibilidades, mas há um... desvio dessa mesma representação. Reminiscentes dos exercícios ficcionais de Nuno Artur Silva e António Jorge Gonçalves, esta é uma “Lisboa” apenas dois graus desviada da nossa num mundo paralelo, e que por isso cria inveja em relação à existente.

Os autores optam por uma composição de página relativamente clássica, aqui regular, ali menos, de certa forma – mas por pura coincidência, mas também afinidade que se une no selo editorial – similar às de Wary em A Época das Rosas. A intromissão de cenas de filmes, jogos, ou várias pseudo-referências à cultura popular do nosso mundo (outros tantos “desvios”), não surgem propriamente como reflexo simbólico da vida interior de Miguel, que ele vai confessando através de uma incessante presença em legendas de narrador, mas apontam a algo que não é jamais dito de forma clara. O mesmo ocorre com as cenas de flashbacks, memórias súbitas, ou o alcance dos interfaces tecnológicos, tudo isso expandindo o cronótopo da história, para melhor compreendermos a falta de dramatismo na vida de Miguel.
Estamos longe aqui das “subculturas” que Hebdige teorizou nos seus famosos estudos. A resposta deste jovem (destes jovens) A uma sociedade cada vez mais empedernida e desassombrada com a potencialidade humana, e apenas mergulhada em objectivos mínimos e passageiros, não podem nutrir emoções fortes e reactivas em relação à cultura vigente. A única resistência face ao “empreendorismo”, à “carreira”, à “decisão”, é com efeito esta estranha apatia, que como explicou Sianne Ngai, apelidando estas emoções de “sentimentos feios”, “constituem afectos menores que são bem menos intencionais e dirigidos por um objectivo, e por isso mais propensos à produção de ambiguidades políticas e estéticas”.

Contudo, e eis o aspecto fulcral, o que os autores nos pedem é que sejamos compreensivos e sejamos capazes de os ouvir, ver, compreender e estarmos presentes, com empatia, para caminharmos ao seu lado. Mesmo que nos desvie do ponto de partida.
Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta do livro; infelizmente, recorremos às imagens disponibilizadas pelo press release, mas haveria cenas muito interessantes de "dissecar".

1 comentário:

Shaban disse...

Love the drawings, could be easily made into an animation and sold to Netflix!

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