Uma das constantes na apreciação crítica de uma determinada forma de arte é quando esta esbarra num dos supostos limites, ou periferias, de todo um território que é apenas compreendido como tal no momento da sua crise. Não há qualquer resistência enquanto os textos e exemplos de uma determinada arte, no caso, a “banda desenhada”, seguem aquilo que é a percepção média, indiscutida, da sua prestação usual. Narrativo, representacional, subsumido a convenções simbólicas e de géneros literários, associados a gestos individuais de esforço artístico e vontade autoral, etc. Mas quando se apresentam recusas desses mesmos papéis – banda desenhada não-representacional, não-narrativa, sem agência humana de um modo clássico (a hodierna discussão em torno do uso de imagens geradas através de programas de prompts de I.A.) - lá caem os proverbiais Carmo e a Trindade.
Tenho para mim que uma das características principais da banda desenhada é a maneira como ela, enquanto prática artística, a montante arregimenta, coordena e agencia um conjunto de elementos visuais em forma de um texto (tessitura, tecido, pano, construção, justaposição, montagem, etc.) e a jusante exige a interpretação humana da leitura, isto é, uma recombinação daqueles mesmos elementos num qualquer processo de construção de significado. Reparem como não pretendo com essa descrição apresentar um programa definicional, que logo à partida criaria uma constrição das possibilidades. É antes uma compreensão de pontos de partida da sua composição e posterior análise.O facto de existirem figurações humanas permite-me desde logo criar uma pequena âncora na construção do sentido. Isto é, posso afirmar “existem personagens”, e depois procurarei elos que as unam numa qualquer acção, por mais diluída que ela seja. E, com efeito, encontramos alguns exemplos do que se costuma chamar de “emanata”, todas aquelas linhas ou símbolos gráficos tipificados da banda desenhada que dão conta de movimento ou emoções. Vejo corações a flutuar em torno da cabeça de algumas personagens, linhas de movimento perto dos membros ou rostos das mesmas, estrelas de impacto, fazendo-me tecer então uma intriga relacional entre o binarismo que construo na minha mente (e que revelará mais das minhas expectivas moldadas por uma sociedade normativa do que da minha abertura a imaginar outros relacionamentos). Mas a capacidade exploratória do leitor poderá convidar a outras conclusões e alianças entre as partes do texto. Ou seja, não basta tão-somente que tenha havido a capacidade autoral de colocar lado a lado, ou noutra qualquer função de fluidez textual, elementos díspares que possam contribuir para o significado, como o próprio agente da leitura trará uma performance própria, que pode aumentar ou diminuir os factores de ambiguidade/sentido do texto original.
Um investigador de literatura, Armin von Ungern-Sterberg, num outro contexto, fala de algo como “agrupamentos ou códigos inerentes de campos semânticos”. Não pode haver dúvida de que Simão Simões provoca, em Slight, um campo semântico que tira partido das imagens recorrentes que emprega , mesmo que não haja uma possibilidade de a reduzir a uma sinopse simples, unilateral e convencional. Quero acreditar que, pelo início com corações flutuando num espaço quase vazio – apenas ocupado de linhas diagramáticas mas não-simbólicas por não estarem agregadas a nenhuma clara estratégia de figuração/representação –, e depois pelo fecho com os mesmos corações em torno de uma figura simplificada feminina, em silhueta, de telemóvel na mão, que estejamos perante nada mais nada menos do que uma “história de amor”. Poeticamente ambígua, claro. Mas ela é expressa através de toda uma estratégia de desconstruções das convenções de banda desenhada que atomiza as possibilidades clássicas desta na construção de sentido. Todavia, é feito de uma maneira tão leve, quase subtil, tão slight, que o tropo da relação amorosa regressa em força.
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