Este
livro, apesar das suas mais de 100 páginas e capa dura, não pode de
forma alguma ser visto como um romance, nem sequer uma novela.
Do ponto de vista estritamente literário, actancial, organizativo, ou melhor, narrativo,
estaremos perante uma história curta, concentrada, linear, de forte
impacto emocional e que tenta explorar antes uma ideia de “duração
interna” pela exploração interior do protagonista, Kyle, na sua
busca por uma identidade. Mais do que uma nova oportunidade de
expressão, ou de conquistar alguma liberdade, ou lançar as bases de
um novo território da sua vida, Kyle pura e simplesmente procura
quem é. Devedor
de um registo quase clássico do desespero adolescente suburbano, da
carta ou diário confessional, esta primeira tentativa de Kachisou
(nom de plume de Cátia Sousa) em espraiar-se numa narrativa
mais larga acaba por seguir
mais um caminho esquemático do que um total desenvolvimento. Há uma
vontade notória em explorar sentimentos complexos, maduros, e
desenterrar daí uma lição profunda, mas a intriga acaba por se
reduzir a meros plots
points para a fazer
avançar para os locais certos. Temos a opressão paternal, o espelho
distorcido na vida do amigo, a primeira tentativa de conquistar
espaço próprio, a queda na tentação, a crise e a sua resolução,
no caso, trágica. Todavia, predomina a sensação de um burilar algo
superficial e demasiado célere das considerações. Temos acesso aos
pensamentos e confissões de Kyle, os seus sonhos e percepções, mas
nesse telling
acabamos por não termos suficiente desenvolvimento no showing. Dito
isto, estamos perante um claro dínamo de energia criativa. Há
anos que falamos de autores “influenciados” pela mangá,
querendo significar com isso aqueles cujas abordagens de figuração,
por vezes dinâmica de composição, e até mesmo de imaginários,
temáticas e organizações narrativas estão próximas das
prestações mais médias da banda desenhada japonesa de género,
sobretudo shonen, independemente do sexo dos autores. Mas
encontraremos aí toda uma panóplia que pode englobar meros epígonos
(abster-nos-emos de citar nomes, pelo juízo negativo implícito), a
autores que, mimando abordagens mais autorais (gekiga ou
autobiografia semi-surreal, como Pedro Franz e Berliac), criam
trabalhos desligados dessas lógicas mais comerciais, até outros
que, iniciando-se numa linguagem formal quase mimada, a cruzam com
outros instrumentos expressivos e chegam a produções próprias. Um
caso flagrante é o de André Lima Araújo, herdeiro, mas livre, de
Katsuhiro Otomo. E também o desta jovem artista de Faro, cujo ponto
de partida é claramente Urasawa Naoki, não apenas a nível da
figuração (em vários pormenores), mas na solidez dos cenários,
nos enquadramentos das suas vinhetas, nas composições de página, e
exímio uso de tramas mecânicas, etc. Pelo menos nas narrativas
curtas que coleccionara no seu primeiro título, antológico, Weak.
Em
Quero Voar, para já, no que diz respeito à abordagem
estilística, temos aqui também uma adaptação. Se acreditamos
estar perante trabalhos nativos digitais, as linhas ganham um sentido
mais gestual, materialmente presente, expressivo, de grandes
flutuações de escala, que aceleram a leitura e, por isso, mimam a
sensação de urgência e lust for life que se tematiza ao
longo das páginas. Essas flutuações têm consequências nos
planos, mas também na legendagem, onomatopeias, etc., insuflando uma
natureza algo titubeante e algo inconsistente. Por exemplo, se num ou
outro momento podemos ser levados a crer que haverá neste livro uma
preocupação em “localizar” a narrativa na realidade portuguesa,
muitos outros elementos afastam-nos dessa ideia. Compreendemos a
ideia de se pretender algum grau de “universalidade”, mas a falta
de ancoramento leva sempre mais a ambivalências e afastamento do que
a engajamento emocional.
Acima
de tudo, e voltando ao ponto de partida do tamanho da narrativa, ela
é inicada um pouco de chofre, sem grandes desenvolvimentos, e
rapidamente nos vemos obrigados a querer criar elos de amizade e
emotivos fortes sem os elementos certos. Contudo, no final da
leitura, mesmo que rápida, fica a ideia de um potente desejo em
compreender o isolamento e sofrimento de jovens abandonados,
reclamando por atenção e amor, pela empatia e ajuda em se
expressarem e realizarem, e se ler é caminho certo para um primeiro
passo, leia-se.
Nota
final: agradecimentos à editora, pela oferta do livro. As nossas
desculpas pelas imagens sem grane qualidade. Indico igualmente que
colaborei com a autora em duas ocasiões, uma integrando o seu
trabalho na exposição Flexágono 2022, integrada no Festival
Literário Internacional Fólio de Óbidos, e numa colaboração para
a revista Cais este mesmo ano.
1 comentário:
quem nunca tomou "drogas" não deveria escrever ou desenhar sobre elas... Quero voar é de uma moral cristãzinha ranhosa, pior do que isto só mesmo o último livro do "Sin City" do frank miller com aquela sequência de trip que é apenas ridícula.
este blogue se é de crítica de "banda desenhada" (se calhar é mesmo BD!) deveria ser mais rigoroso e não enganar o seu público, ao tentar lambuzar-nos com estas "obras" medíocres.
se o seu autor publica na seita, não deveria fazer lobbying desta "editora". E pare de tomar MDMA, sff
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