Introdução: No
espaço desta e da próxima semana, colocaremos neste espaço uma
série de textos sobre banda desenhada brasileira contemporânea que,
por sorte e esforço, nos tem chegado às mãos. Atravessaremos
vários géneros, estilos, territórios e mercados, mas esperamos que
isto permita, por um lado, aos leitores portugueses (ou outros), uma
maior aproximação à pujante produção do Brasil e, por outro, aos
leitores brasileiros, uma perspectiva não-local, que esperamos sirva
para algum diálogo transatlântico.
Este
primeiro texto(s) será curto, pois remeteremos os leitores para a apresentação que já fizéramos deste projecto, o 1000, face ao
qual a nova colecção, Franca, é quase uma pequena variação. Se
aquela se apresenta como um caderno de uma dezena de páginas,
impressas a preto sobre papel colorido, e sem qualquer matéria
verbal para incentivar outro tipo de pesquisa na organização
estrutural das imagens enquanto forma narrativa (ou não-narrativa),
a Franca apresenta-se como uma mais clássica publicação, a
preto-e-branco, com uma sobrecapa, mas onde o conteúdo se pode
alinhavar por princípios mais convencionais, ou não, da relação
entre texto e imagens. Este é um grupo de pequenos, mas
significativos gestos na diversidade da paisagem editorial
brasileira, já que não se conformam à ideia de “novela gráfica”,
“adaptação”, “livro”, os quais, com maior ou menor
felicidade, conquistarão de imediato uma maior atenção,
automática. (Mais)
Velhos
hotéis passam cinema mudo. Guazelli. Este título tem
duas linhas de pesquisa. Por um lado, trata-se de uma agregação de
cenas urbanas modernas e abandonadas: a cada vinheta observamos as
fachadas de cinemas, hotéis, motéis, penetramos pelos corredores de
carruagens de metropolitano e comboios, estações e fábricas,
usinas e centrais eléctricas, auto-estradas e cemitérios de
automóveis. Por outro, a cadência do movimento, pelo menos num
primeiro momento, nada tem a ver com a sequência e a organização
das imagens numa inclinação narrativa, mas pelo contrário segundo
uma lógica de acumulação de identidades. No momento em que se
instala uma espécie de movimento, logo descobrimos que ele não é
teleológico, e rapidamente somos raptados para um outro nível,
metatextual, que nos impede de criar elos entre esses espaços. Todos
eles abandonados, desprovidos de figuras humanas, surgindo apenas um
esqueleto à janela, e atravessada todas as cenas por papéis
esvoaçando e pó, é possível que Velhos hotéis seja um
exercício de uma estranha nostalgia por paisagens obsoletas, ou em
parte apenas informadas por modos fantasmáticos de as imaginar. [depois de todo o texto, apresentamos mais uma prancha de cada livro, por ordem de apresentação.]
11.
LTG (Lucas Gehre). Projecto oubapiano não-dogmático, 11
apresenta-se como uma negociação permanente entre a construção de
um objecto potencial de cruzamentos e possibilidades narrativas – a
tira distribuída e re-montável como um dado de lançar (aliás, os
ateliers Oubapo produziram um objecto tangível irmanável:
Coquetèle, de Anne Baraou e Vincent Sardon) – e uma tira
mostrando uma personagem em gestos totalmente banais e quotidianos. A
distribuição das vinhetas, porém, numa descontrução das formas
habituais, obrigarão o leitor a tentar entender quais são os
caminhos alternativos necessários para a construção do sentido.
História circular e simples, com um desenho minimalista que
recordará uma animação tremida, é a ocupação do espaço o tema
central do título.
Vizinhos.
Laerte. Se poderemos sempre ler todo e qualquer traço material
de um projecto como significativo, não pode haver dúvida que o uso
de um papel vermelho e brilhante para esta história – nos seus
traços gerais, obedecendo a convenções claras – acaba por
informar de forma indelével a imensa tensão que se cria entre as
duas personagens: o habitante do apartamento com garagem e
proprietário do automóvel que tem de estacionar, e o moleque de rua
que tenta ganhar uns trocos a estacionar outros em torno daquele
lugar. Uma intriga concentrada e linear é constituída rapidamente,
mas estará nas mãos dos leitores a atribuição de
responsabilidades e até mesmo de juízos de valor sobre as acções
de ambos os homens, que se desequilibram à volta de questões
sociais, económicas e raciais inclusive. Laerte criou este livro com
um processo rápido, deixando ver o lápis, e apenas colocando linhas
de tinta quase sumárias para trancar as figuras, como se houvesse
uma urgência maior em termos de “conteúdo” do que na moldação
finalizada das “formas”.
Aranha.
Luiza Doria. Destes quatro títulos, este é o mais “simples”
e quase linear, numa tentativa de um género mais infantil e
clássico. Aranha é um pequeno conto de terror para leitores mais
jovens, no qual uma terrível e tremenda aranha consegue impor a sua
vontade ao menino que dorme no quarto ocupado, levando-o a sucessivos
sacrifícios, cada vez mais temíveis. No final, mesmo depois da mais
alta importância paga, é que o jovem protagonista consegue apelar a
forças maiores para a sua salvação, mas cujo nível de poder é
tão caricato, que nos põe a duvidar de todos os acontecimentos.
Risco.
Marcelo D’Salete. Pertencendo à tal colecção Franca, estamos
perante aqui outro nível de experiências, que podendo convidar a
abordagens mais “normalizadas”, não significa que não possa
permitir a cada autor perseguir as suas próprias linhas de
inquirição. Dessa forma, não é particularmente surpreendente
encontrarmos D’Salete a tecer aqui uma narrativa curta em torno de
personagens jovens negras urbanas que permitem colocar, mais uma vez,
questões de equilíbrio dos papéis sociais, dos preconceitos, mas
também das realidades brasileiras da violência sistémica policial
e da conivência de outros círculos sociais: dos mauricinhos brancos
aos meios de comunicação social, passando por aspectos como o
emprego, a marginalidade, a brutalidade e a indiferença. Porém,
D’Salete quer que em Risco, não apenas esteja presente de
forma central o único ingrediente que pode redimir as relações
humanas e fortalecer os elos de solidariedade – o amor – como ele
possa levar a um final feliz.
Cavalos
mortos permanecem no acostamento. Pedro Franz. Tal
como no caso do autor anterior, também neste caso a plataforma de
Franca é empregue para dar continuidade às experiências formais do
autor. Publicado anteriormente pela Kus na antologia Š!,esta
história de 14 páginas enquadra-se de uma forma aparentemente
autobiográfica, mas a memória do evento da vida do narrador dá azo
a uma espécie de desvio, que talvez possa ser lido simbolicamente,
ou pelo menos enquanto capacidade associativa. Esse mecanismo, por
sua vez, abre caminho a uma segunda camada mais recuada ainda de
memórias pessoais, e que se vão desembrulhando em várias
possibilidades de imagens agregadas em sequências poéticas e
abertas. A última página é uma clara homenagem à obra de Seiichi
Hayashi, Red Colored Elegy, na qual Franz imita as figuras e
estilo, para criar uma derradeira nota complicada entre
autobiografia, confissão de arte, multidisciplinaridade da
materialidade da banda desenhada, diálogos interculturais, e as
formas de pesquisa que lhe são tão caras.
Nota
final: agradecimentos a Rafael Coutinho e editora, pela oferta dos
títulos, assim como a Pedro Franz e Marcelo D’Salete, pelo papel
no processo.
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