Esta trilogia é uma verdadeira empreitada do autor, e um livro
que mereceria uma atenção particular que ultrapassasse, não a “mera” leitura –
uma vez que toda a leitura jamais é
“mera”, mas bem pelo contrário necessária e central -, mas a breve opinião, ou
o encómio superficial e célere, ou até mesmo a despreocupação como que se
entrega um prémio, porventura, sem que se coloquem perguntas mais prementes aos
seus mecanismos. É possível que essa importância se acresça pelo facto de ter
uma matéria que é, a um só tempo, tão premente quando deveria ser secundária,
talvez. Afinal de contas, vivemos hoje num tempo e em sociedades
suficientemente laicas para que qualquer revisitação da vida e missão de Jesus
da Nazaré não seja vista de imediato como um anátema, mas antes como uma
interrogação que nascerá de uma vontade genuína. A situação do Brasil é talvez
diferente da de Portugal, no aspecto religioso, mas seriam necessários outros
instrumentos, ancorados numa perspectiva sociológica séria, para dar conta
desse recado. Estranhamente, entre nós, é mais imediata a controvérsia em torno
de Fátima do que debelar a figura do Cristo que causaria mais imediata celeuma,
o que desde logo revela os substratos bem diversos que informam o nada
heterogéneo Catolicismo (nem falemos do Cristianismo), mais matizado do que a
Igreja Católica o quer pintar. (Mais)
Esta trilogia foi composta por Laudo Ferreira durante uma
quinzena de anos, em que o autor foi trabalhando em cada um dos volumes,
publicados em 2009, 2010 e 2014. Os três volumes intitulam-se, respectivamente,
Assim em cima assim embaixo, O círculo interno o círculo externo
e Onde tudo está. Apesar do alto grau de homogeneidade e linearidade da
leitura possível dos volumes, eles têm extensões bem distintas, já que o
primeiro volume tem cerca de 150 páginas, o segundo diminui para 130 e o
terceiro estende-se quase a duzentas e quarenta. Acima de tudo, respeita-se a
cronologia da vida da personagem, e procuram-se três divisões relativamente
claras: Assim em cima assim embaixo inicia-se bem antes do nascimento de
Yeshuah, com a gravidez intempestiva e supostamente milagrosa de Ana, mãe de
Maria, e estende-se até imediatamente após o baptismo de Jesus às mãos do primo
João, chamado de O Baptista, ritual o qual lhe dá acesso a uma visão beatífica
a que temos apenas acesso abstracto, e seguindo-se uma conversa profunda com
Miriam, ou Maria, de Madalena, mulher livre, madura e intelectual que engrossa
o que irá ser o séquito da missão de pregador do protagonista. O segundo volume
dá conta, portanto, do percurso de pregador de Jesus, e na sua angariação de
companheiros e discípulos, não sem antes salientar o papel cada vez mais
incómodo de João Baptista face a Hordus Antipas, e o retiro de 40 dias de Jesus
no deserto. Este volume estende-se, não sem algum melodramatismo controlado,
com o encontro de Jesus e um novo discípulo, o intelectual e tradutor Yehudah
Ish-Kirioth, ou Judas. Finalmente, o terceiro volume inicia-se com o acto
dramático da expulsão dos demónios Legião do corpo de um homem doente e
terminará com – penso não se tratar de um spoiler – com a morte de
Jesus.
Em larga medida, Laudo Ferreira tomou como base de trabalho os
Evangelhos, sobretudo os sinópticos, de maneira a que a narrativa que ele tece
é relativamente consensual, convencional e familiar, existindo somente alguns
momentos de diferenciação criativa que lavra graças ao apoio de certas
pesquisas paralelas, conversas com especialistas da História da Igreja, ou
mesmo textos alternativos, desde escritos apócrifos a lendas e fontes de outras
fés, procurando informar a linha de fuga da “espiritualidade” noutras
correntes, desde a filosofia idealista grega clássica a vários orientalismos.
Numa entrevista que fizemos ao autor (ver final deste texto), interrogámo-lo em
torno do processo de criação e de escolhas, esperando que possa complementar
estas breves notas.
A
figura de Jesus pode ser imaginada como um recife de coral, composta de uma série
de camadas que se vão acumulando ao longo de anos até criar um ecossistema
próprio, assim como uma particular textura, diversidade de materiais e relações
diferentes que com ele se relacionem. Porém, se tentarmos retirar parte das
suas camadas superiores para chegar “ao fundo”, acabaremos por jamais o fazer,
uma vez que esses elementos aparentemente superficiais, isto é, não-essenciais,
são afinal sua parte constituinte. Yeshuah
não é, então, um desses projectos que tenta “escavar até à verdade”, mas tão
pouco (ou tão muito) apresentar a sua possível navegação.
É importante ainda notar, de forma até extrema, que todos os
volumes são introduzidos com um mecanismo em prolepse, ou melhor, num momento
do futuro que permitirá depois a analepse que constitui a história principal.
Uma mulher idosa dita a um escriba as suas memórias, contando a sua versão da
vida de Jesus. Desta forma, o que estamos a ler é menos uma “visão objectiva”,
“verdade”, que pertenceria a um hipotético mega-narrador, do próprio livro, mas
antes tudo acaba subsumido à perspectiva pessoal dessa mulher – que depois
descobrimos tratar-se de Maria Madalena. Apesar de existir um dito “Evangelho
de Maria”, apócrifo mas datando da mesma época que os canónicos, não pensamos
que Laudo Ferreira o tenha empregado. O facto da narrativa a que temos acesso
ser a “voz de Maria Madalena” é tão-somente um mecanismo de contextualização e
focalização da história organizada, a qual, de resto, constrói uma imagem de
Jesus que não procura um tipo de subversão adolescente ou iconoclasta (atravès,
por exemplo, da estética do “sexo e violência” ou “cocó-xixi”). Bem pelo
contrário, nota-se, se não necessariamente uma plena inscrição no dogmatismo
católico ou sequer cristão, que não se verifica, pelo menos um respeito pela figura
em si, e uma preocupação genuína em tentar entender que tipo de espiritualidade
o terá informado para o ter levado a fazer esta e aquela escolha.
O número de obras literárias ditas “sérias”, mas não só, que
exploram a figura do Cristo de formas paralelas, é por demais complexo,
existindo obras incontornáveis como as de Nikos Kazantzákis (A última tentação de Jesus Cristo),
Robert Graves (Rei Jesus), José
Saramago (O evangelho segundo Jesus
Cristo), Catherine Clément (Jesus na
fogueira), entre outros. O número de obras menos sérias, em que se
abandonam simplesmente a exercícios ficcionais absurdos, que se cruzam com a
ficção científica ou a literatura de escaparates, é perfeitamente válida (somos
leitores, e com prazer sem culpas, de Ten
Billion Days and One Hundred Billion Nights de Ryu Mitsuse), mas estamos
aqui a debater obras que pretendem estabelecer um qualquer grau de diálogo com
a realidade histórica, que de uma maneira ou outra entretecem linhas de
inquirição na sua tessitura ficcional. A esmagadora maioria dessas obras não é
necessariamente reverencial mas tampouco iconoclasta de maneiras previsíveis,
e, seja como for, a sua diferenciação e historicização não pode ser exposta e
discutida neste espaço nem por nós. Nalguns casos, há mesmo adaptações
cinematográficas, como se sabe, mas nesse outro campo existem projectos
específicos e fortes, como O evangelho segundo São Mateus, de Pasolini,
que não só Laudo Ferreira cita como uma das suas “fontes dialogantes”, como se
trata de um dos poucos projectos que a Igreja havia apreciado no seu tempo
(conta-se que Pasolini o terá mostrado numa sessão privada ao Papa João XXIII).
E banda desenhada não é alheia a essa visitação permanente, mas temos em mente
o projecto abortado de Chester Brown, cuja adaptação dos Evangelhos (não
conseguimos precisar qual) na sua série Underwater, como sendo aquele
que melhores ecos construiria num estudo comparado com este Yeshuah.
Precisamente pela escolha, numa primeira instância, de uma fonte canónica e
consensual, para depois sobre ela criar pequenos desvios que aumentassem a um
só tempo a humanidade e a espiritualidade do protagonista.
O campo de interpretação dos escritos bíblicos é um mundo
imenso, não fosse a própria noção de hermenêutica fundada pelos estudos desses
textos. Existirão, obviamente, toda uma série de referências de “desvios”,
“códigos secretos”, “a verdade oculta” e projectos quejandos, mas a verdade é
que o estudo mais ancorado na História e na seriedade dos estudos bíblicos
muitas vezes é mais surpreendente do que quaisquer ficções que se criem em
torno da figura de Jesus. Vê-lo como um guerreiro revolucionário,
extraterrestre, super-herói, um cogumelo antropomórfico (tudo teses
existentes!) é possível, mas não é menos fascinante estudá-lo enquanto uma figura
integrada plenamente no tecido histórico da sua época, lendo-o como um profeta
ou líder de uma província particular, e de uma particular facção judaica, da
Palestina do século I. Quer se utilizem os factos concretos para o desenhar
como uma figura realmente histórica quer se utilizem os mesmos para o apontar
como uma espécie de amálgama textual de projecções ulteriores, há uma espécie
de “espaço” que é preenchido pela sua figura que terá uma importância tremenda.
Não é apenas a questão da fé (pistis) que entra aqui em jogo, mas a da
razão (logos) em torno dos textos e informações arqueológica. E, como se
sabe, são os próprios padres os primeiros a formarem-se nesse cadinho de
informações, não se tratando propriamente de “segredos ocultos do Vaticano”. Bastaria
ler as decisões paulatinas dos Concílios para se entender como é que os dogmas
em torno da figura de Cristo foram sendo construídos, desde a sua pessoa em
relação ao Pai-Deus à virgindade de Maria, tudo decisões ou construções
plenamente historicizadas e não de “desvendamento divino”. Enfim, é necessário
compreender que se trata de um processo de uma complexa e culturalmente
ancorada “construção de Jesus”, para citar um livro de José Tolentino Mendonça,
o qual poderá funcionar como uma excelente introdução para as questões de
crítica e reconstrução textual para, de um ponto de vista totalmente sério,
entender as dimensões múltiplas desta figura.
Ora, é nessa tempestade de possíveis linhas de fuga que a obra
de Laudo Ferreira surge enquanto tentativa não tanto de superar outros textos
ou sequer apresentar uma derradeira imagem, mas antes a de um projecto pessoal,
que apresenta uma versão legível. O Jesus que lemos nestas páginas é humano,
tem um corpo, sofre, ama, por vezes duvida, mas não se abdica totalmente de uma
dimensão divina igualmente. Há uma espécie de titubeamento ou balanço nas
escolhas do autor, em que nuns casos opta por desvendar um suposto milagre como
uma escolha de bom senso e diálogo entre seres humanos disponíveis à partilha
(o milagre da multiplicação do pão), mas em que noutros o divino se mostra real
e tangível (a expulsão do demónio Legião, a ressurreição de Lázaro, etc.).
Há, portanto, uma clara navegação por escolhas que, menos do
que serem contraditórias, iriam servindo ao autor à construção que ele
próprio desejava na sua obra. No livro citado de Tolentino Mendonça, o crítico,
poeta e clérigo cita uma frase de Marie-Joseph Lagrange sobre a leitura
comparada de uma passagem em particular dos Evangelhos, mas que julgamos poder
ser aplicada, ainda que mais metaforicamente, a toda a realidade textual:
“vetus et rancida controversia”. Ferreira ultrapassa a ideia de controvérsia
pela sua navegação oblíqua. É possível que os crentes mais fervorosos encontrem
pasto para acusações, mas os não-crentes tampouco encontrarão aqui matéria de
regozijo na demolição dos dogmas da Igreja Católica.
Sendo possível explorar as mais díspares dimensões e episódios
– a relação de Jesus com o poder militar-político romano, a questão da
crucificação como castigo exclusivamente do Estado Romano e que nada tem a ver
com as acusações do foro religioso do Sinédrio, a inscrição de Jesus na
intricada trama das heranças das linhagens reais judaicas, a herança provinda
de outros profetas ou líderes religiosos, ou a sua proximidade ou afastamento
das várias correntes do judaísmo contemporâneo, dos Essénios aos Zelotas, etc.
- escolhamos apenas uma. Alguns estudos hoje entendem que a aparente ausência
de mulheres no séquito de Jesus se deverá antes a um apagamento textual,
posterior (ou melhor, no momento da sua escrita, que é posterior em décadas à
morte de Cristo, depois da derrota em Masala), dos Evangelhos do que uma
verdade histórica. Uma vez que o rabinismo, tal como compreendido classicamente
e hoje, não se havia formado tal qual no século I, o papel da mulher, ainda que
maioritariamente subalterno, teria um papel de preponderância maior do que o
usualmente representado. Dessa forma, queremos compreender o destaque que é
dado a Maria Madalena, pelo autor, como informado por duas razões: por um lado,
para assinalar a abertura de Jesus a essa realidade, criando-se tensões entre a
liberdade de Maria e os preconceitos dos demais, sobretudo Pedro, misógino de
forma explícita; por outro, para salientar narrativamente o amor, inclusive
carnal e sexual, que se desenvolve entre Jesus e Maria. Este último ponto não
deve ser visto como anátema nem chocante, mas tão-somente como mais um dos
sinais da humanidade de Jesus, e até mesmo como “normalidade” do seu tempo: um rabi
que não cumprisse a lei de Deus sobre Aabrão é que seria algo de notável, e
seguramente que seria assinalado de modo especial nos escritos. Os mais sérios
críticos textuais apontam precisamente que a ausência dessa ideia sublinhará o
cumprimento dessa expectativa. Laudo Ferreira, sem entrar nas quezílias
bizantinas em torno desses pontos, faz uma escolha e espera que o leitor,
presumimos, faça o seu próprio caminho para entender a sua significação.
Como vimos, é o magistério de Jesus que alimenta a parte de
leão, como é de esperar, da acção narrativa, mas o autor toma partido dos
vários “episódios” ou capítulos da sua vida para tornar mais anfractuosa a sua
estrutura narrativa. Por exemplo, as visões de Jesus no deserto ecoarão com a
visão da mulher de Pilatos, tradicionalmente conhecida como Santa Prócula (uma
das linhas apócrifas cerzida no tecido de Yeshuah)
e ambas são como que “intervalos” em termos de exposição verbal, procurando
através das composições visuais e esquemática uma certa natureza transcendental.
A utilização de círculos concêntricos, chackras luminosos, serpentes e
correntes de água apenas fortalecem essa dimensão, e associam-na a outras
tradições espirituais (que podem ou não ter informado a missão do Cristo).
Analisar os mecanismos específicos de cada visão poderão salientar as
diferenças e pontos em comum, o que por sua vez poderá ser empregue como
instrumento de análise da construção dessas personagens, em primeiro lugar, e
pela história em geral, em segundo.
O estilo de Laudo Ferreira bebe de uma caricatura bastante
clássica, onde se procuram lavrar traços fisionómicos exagerados nas figuras,
de corpos alongados e plásticos, os quais convidam a trejeitos de alto
dramatismo sobretudo nos momentos de maior tensão emocional. Isto leva também a
que haja, por vezes, escolhas estereotipadas de características “positivas” e
“negativas” conforme a expectativa moral das personagens: olhos enormes e
expressivos, de gazela inocente para as personagens puras de coração, sobrolhos
carregados para as mais dúbias, e uma larga panóplia de elementos de rápida
identificação, de narizes a bocas desdentadas, maleitas e cortes de cabelo que
ajudam à navegação da identificação. Se a distribuição de beleza e feiura é por
vezes convencional, e a composição dos corpos confusa, uma vez que nos casos
das vinhetas mais populadas não há uma clara distinção de planos principais e
secundários, são essas mesmas convenções que ajudam a uma leitura mais clara e
distinta. Existem personagens que são entendíveis de imediato como mais nobres,
por terem uma barba bem recortada, ou terem um porte direito, mas é sobretudo
nos seus comportamentos, diálogos e relações que elas se vão formando. Daí que
Kaifas, ou Pedro, surja como um homem rude, do povo, trabalhador e rente à
carestia da vida, mas que o seu papel se eleve como necessário e humano, ao
passo que alguns dos membros do Sinédrio, pertencendo às altas classes (ou
mesmo castas), desprendam uma arrogância que os torna pouco amistosos à verdade
que Jesus traz.
A complexidade tópica, de tratamento e de abertura ao diálogo
intercultural desta obra é inegável. Uma vez que não podemos prestar-lhe
totalmente justiça nestas breves palavras, esperamos que um diálogo com o autor
possa desvendar mais dimensões. Desta maneira, é com prazer que partilhamos
convosco uma entrevista feita por email, e que é publicada exclusivamente no
site bandasdesenhadas.com, aqui.
Nota final: um saravá a Laudo Ferreira, pela simpática oferta
dos seus livros, e pelo tempo dispensado na entrevista. Agradecimentos a Nuno
Pereira de Sousa, pelo espaço no site para a entrevista.
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