Desde o seu lançamento que se
adivinhava que o último número que encerra esta prequela à saga
Sandman, de Neil Gaiman, et al., teria um fecho directa e
organicamente associado ao início da história da personagem. O
próprio título ou sub-título da obra o implicava, até com os seus
laivos de interpretação musical, uma veia de interpretação quiçá
produtiva: um prólogo “fora da acção” do texto principal, mas
que poderá apresentar tematicamente alguns dos seus elementos
estruturais. Aliás, a maneira como cada um dos números tem
revisitado, en passant, muitas das personagens, temas ou
episódios da saga maior, fará recordar precisamente a estrutura de
um ritornello, tal como a apresentação física das páginas
e a fluidez dos desenhos, na sua heterogenia gráfica, a torna
flexível nessa revisitação. (Mais)
Tal qual como nos números anteriores (1, 2, 3, 4 e 5),
também aqui se joga com a possibilidade da estrutura da revista,
havendo apenas duas páginas isoladas, precisamente a que abre e
fecha a distribuição clássica do comic book, para depois se
espraiar uma sequência ininterrupta de 14 pranchas duplas, as quais
tiram bastas vezes partido de um protocolo de leitura horizontal.
Nesse sentido, Sandman. Overture partilha uma distribuição
muito mais próxima aos clássicos pictures books, aspecto que
veremos não é de forma alguma aleatório. Todavia, após a ficha
técnica final, segue-se como que uma espécie de coda, de
cena pós-créditos: quatro páginas protagonizadas pelas irmãs do
Sonho (ou uma irmã e uma irmã-irmão), Desespero e Desejo. Esta
última, descobrimos brevemente, companheira oculta, coadjuvante e
instigadora das acções do percurso de Sandman ao longo de Overture.
Ela própria, Desejo, expõe a razão: se o sonho pode estar no
coração de todas as coisas, é o desejo que as faz mover, que
instila a gravidade que as organiza. Talvez seja essa a razão pela
qual o artista desenha, à guisa de pseudo-molduras de vinhetas em
torno das personagens intervenientes círculos com volutas barrocas e
aparentemente excessivas, que não apenas imitariam as curvas
decorativas de uma figura felina ultra-estilizada como os padrões
produzidos, sejamos específicos, pela desintegração de partículas
no interior de uma câmara de bolhas de um acelerador de partículas.
É possível que seja este um uso somente decorativo, ou simbólico,
mas também é plausível que haja uma intenção autoral que
pretende criar uma associação directa entre a potencialidade desta
pulsão humana ou até além-humana (o desejo) e o fenómeno físico
em questão... Afinal, também Lucrécio falara de que era o “desvio”
das partículas, o clinamen, que permitia que o universo
criasse a diversidade de que era composto, caso contrário seria um
tecido eterno, homogéneo, sem vida.
Essa ligação oculta entre Sonho e
Desejo, mas também as breves aparições, decisivas, do futuro
Sandman, de Delírio, Morte, Desespero, Destino, a mãe-Noite e o
pai-Tempo, e menções a Destruição, mostram uma possibilidade da
rede de colaboração entre todos os membros da família dos Eternos,
que é precisamente pela sua falta de aliança que se lançam em
movimento. Contudo, esse parece ser precisamente um dos temas
recorrentes nesta série. Em termos narrativos poder-se-ia dizer que
ocorre tão pouco, ou nada, neste último número, como ocorre tudo.
Se os números anteriores haviam criado a ideia de um inimigo
derradeiro e poderosíssimo, acabamos por nos aperceber que essa
expectativa, menos do que “gorada”, é derrotada e ultrapassada.
Não há, afinal, um inimigo físico, com o qual Sandman colocasse a
sua capa, máscara, cristal e bolsa e desatasse num combate
corpo-a-corpo. São ideias, noções, fantasmas de eventos
projectados, que se mesclam num perigo cada vez mais iminente, e as
armas empregues pelo “herói” são parte intrínseca do
território e domínio que ele representa e é.
O número final confirma, de certa
maneira, a ideia de que esta personagem não é, nem poderia ser,
aquela que veríamos a desenvolver-se e maturar emocionalmente
durante a saga de oito anos que durou a série The Sandman. O
Sandman de Overture tem uma agência limitada (de maneira a
que seja Deseja a movê-lo, por um lado, e a Esperança/Hope, por
outro). Independentemente do poder que ele terá – e o esforço
final desta série mostra o escopo cósmico desse poder -, as coisas
acontecem-lhe. Desta maneira, é compreensível que J. H.
Williams III o retrate sempre com um rosto esquálido, empedernido,
hierático, estático, no qual se subentende uma figura aparentada
àquela que Clint Eastwood alimentou durante a sua carreira de actor
(até mesmos os traços fisionómicos são similares, dos olhos
sumidos às maçãs do rosto emaciadas).
A estrutura final desta série recorda
por demais a maneira como Jodorowski e Moebius haviam fechado a saga
do Incal, antes de terem imaginado a possibilidade de revisitar esse
universo. Repare-se como a cena finalíssima coloca a personagem de
Morfeu, tal como os autores francófonos o haviam feito a John
Difool, a tombar num vazio a um só tempo físico, mas que atravessa
várias dimensões espaciais, mas também temporal, lançando-o num
tempo tanto fora do tempo como circular, como ainda num vazio
existencial, que lhe permite reescrever a sua própria experiência.
Sandman, tal como Difool “cai no seu início”. Além disso, o
pedido de Sandman e de Hope que todas as personagens reunidas no
navio sonhem juntas, e que “queiram”, isto é “desejem”,
expressem livremente a sua vontade, é por demais próximo do Sonho
Teta de La Planète Difool,
que dissolve o universo e relança Difool no início da sua aventura.
Este retorno (Eterno Retorno?) é
também outra das dimensões desta “abertura”. O tema do tempo
desarrumado mantém-se, não apenas pela presença de Daniel (o
Sandman futuro), como do pai dos Eternos, e ainda o símbolo,
relativamente claro, do relógio derretido. Recordemo-nos de que o
tempo, de acordo com a física contemporânea, é uma dimensão tão
plástica como as outras e, teoricamente, seria possível manipulá-la
como as dimensões e propriedades físicas se tivéssemos nós,
humanos, acesso às forças que o controlassem. Como a gravidade, por
exemplo. Mas o Sandman representa um nível de existência que não é
o dos seres humanos, como esta obra não deixa de demonstrar ao
fazer-nos percorrer as dezenas, senão centenas, de espécies
contraditórias e diversas desse seu universo, e que sobrevivem ao
grande cataclismo, dos seres mortais. Sandman tem acesso a essa
gravidade, capaz de distorcer não apenas as dimensões espaciais,
tais como aquelas que são distorcidas pela trilha visual em
percursos e composições de página inusitadas (mesmo que ainda
“naturalizadas” em termos de protocolo de leitura), como ainda
nas temporais, permitindo que o fim de Sandman. Overture seja
precisamente a abertura da saga de Sandman, iniciada no início
de 1989: para além da fórmula rezada pelo raptor de Morfeus,
desenhada como uma espécie de armadilha, vemos uma imagem
derradeira, possivelmente delineada ou arte-finalizada de novo por
Williams, recuperando a página titular desenhada por Sam Kieth e
Mike Dringenberg no primeiríssimo número da série, “Sleep of the
just”, que agora ganha um significado mais denso.
Qual a consequência desse regresso,
desse retorno, desta reformulação do universo? Mais uma vez,
Gaiman, tal como outros autores-chave da banda desenhada mainstream
dos anos 1980-1990, emprega a técnica da reconstrução, da
re-arquivação do futuro visitando um hipotético passado. Falamos
acima das personagens que são os alienígenas, habitantes do vasto
universo, e que sobrevivem. Se olharmos para algumas delas com
atenção, apercebemo-nos de que elas configuram muitas vezes certos
modelos ou protótipos de personagens conhecidas de outras histórias:
robôs gigantes de programas de animação japonesa, um unicórnio
vestido como o Príncipe Valente, um monstro demasiado parecido com
as personagens de Mercer Mayer, uma personagem parecida com Brainiac
da DC, outra com Morbius da Marvel, outra ainda com o monstro de The
Watchmen, por sua vez associável a outros monstros de programas
televisivos norte-americanos dos anos 1950. E muitas outras que
poderão preencher categorias mais ou menos reconhecíveis e
clássicas (funny animals, high fantasy, cena de
bar intergaláctico, etc.). De certa forma, portanto, levando à
ideia de que todas estas personagens sobreviventes não são
totalmente dissolvidas com a reescrita do universo, mas antes
absorvidas nas histórias, a que o próprio Sandman preside, afinal,
como Príncipe das Histórias. Todas e quaisquer personagens que
habitam o domínio da imaginação dos seres humanos, portanto, no
nosso mundo, são então as notas sobreviventes de um universo
desaparecido, mas transfigurado nessa maneira, pela queda de uma
entidade como Sandman. A qual agora terá um longo caminho a
percorrer. E que podemos nós percorrer de novo.
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