Tendo discorrido
longamente sobre a 1º fase da ditas “novelas gráficas” que reempregaram as
famosas personagens criadas por Maurício de Sousa em novos enquadramentos
criativos – e o emprego desta palavra, “fase”, não é de forma alguma alheio às
estratégias de progressiva editorialização dos seus conteúdos pela Marvel;
afinal, estes títulos são encomendas num contexto, e não fruto somente de uma
vontade autónoma dos autores envolvidos, se bem que haja muitos movidos pelo
desejo de “brincar com estes brinquedos” -, convido os leitores do Lerbd a
remeterem-se a esses outros textos para regressarmos às mesmas considerações
que conduzem aos novos títulos. Desta feita, a criação de expectativas faz-se
de uma forma dupla, mas nenhum delas sobre uma ausência. Em primeiro lugar,
tendo existido já uma experiência anterior, isto permite que se crie um
horizonte de expectativas, para usar a expressão famosa de Jauss, mais
pormenorizado. As regras do jogo, digamos assim, estão compreendidas, logo a
parada é maior. Por outro, tendo em conta que de quatro títulos, dois repescam
as mesmas personagens com a mesma equipa criativa, e outros dão início a um
passo inédito, há uma perfeita distribuição do efeito de novidade e do de
continuidade. (Mais)
Os novos títulos,
continuando a ideia de apresentar livros com um título de uma só palavra,
confirmando uma certa simplicidade e imediaticidade da sua leitura, confirmam
aquela ideia de trazer alguma gravidade emocional e actancial às personagens
unidimensionais de Maurício de Sousa pela criação de uma espécie de pátina
nostálgica, ofertando-lhes uma espessura que nunca tiveram. Em parte, é isto o
que explica o sucesso quase automático destes títulos junto aos seus leitores
principais, o grande público brasileiro (e também algum português). E se esse
sucesso não é imerecido – são as prerrogativas de projectos ditos “comerciais”
feitos nas melhores qualidades desse território, nem sempre eles convidam a
leturas mais cuidadas dos seus instrumentos expressivos e estruturais.
Há como que uma espécie
de direccionalidade do gesto de recriação, mas que nunca se coalesce num total
desprendimento da matéria original, o que é mais do que expectável, afinal de
contas, uma vez que se está a trabalhar no interior de uma gravidade – as
metáforas de Singularidade podem ajudar – que não permite um afastamento
demasiado severo.
John G. Cawelti, que
teorizou em vários dos seus escritos uma espécie de “ciclo de vida dos géneros”
populares do cinema e outras áreas narrativas, explica de forma sucinta como
eles “passam de um período inicial de articulação e descoberta, através de uma
fase de autoconsciência da parte quer
dos criadores quer do público, até um tempo que os padrões genéricos se tornam
tão bem conhecidos que as pessoas se cansam da sua previsibilidade. É nesse
momento que as abordagens paródicas e satíricas proliferam e que novos géneros
emergem gradualmente”. Se afunilarmos a produção MSP à banda desenhada
infantil, diríamos que a sua possibilidade satírica se instalou de uma forma
brilhante logo de imediato com autores iniciais como Busch, Dirks, McCay, e
outros, tendo observado há tempo recente um recrudescimento, na verdade, de um
abraçar descomplexado e bem-disposto desses mecanismos genéricos: Battling Boy é, por exemplo, um sinal desse “regresso”.
Estes objectos estão numa
espécie de meio-caminho. Em caso algum estamos perante sátiras da Turma da
Mônica e amigos, nem tampouco de uma desmontagem da ideologia que informa essa
produção, ou sequer uma rasteira, menos ou mais inteligente, dos elementos que
alimentam a máquina imaginativa dirigida aos mais jovens. É curioso notar como
até mesmo na produção Disney (veja-se algum do material italiano que tem sido
traduzido em Portugal) se criam narrativas que, de uma forma ou outra,
subvertem alguns dos princípios moralizadores da produção original. Mas esse
não é o caso nestes trabalhos. Podem procurar-se emoções ligeiramente mais
complexas, mais tristes e negras, mas na verdade nada disso é um desvio do
território usual da MSP. Há antes uma oferta de uma camada adicional de
complexidade a nível narrativo, e igualmente artístico, que não está presente
na produção mais corrente, fortalecendo dessa maneira metonímica toda a sua
produção. Por outras palavras, estes livros vêm oferecer um filtro pelo qual se
pode olhar, ainda que distorcidamente, para a produção do passado. Nisso, a
Graphic MSP é muito efectiva.
Bidu. Caminhos.
Eduardo Damasceno e Luís Felipe Garrocho.
Apesar deste livro abrir
e fechar em torno de Franjinha, criando um arco teleológico da aventura de Bidu
em relação à sua “salvação” ou “descoberta” pelo menino, Caminhos
estende-se sobretudo na personalidade desta personagem não-humana. É muito
curioso que a característica principal de Bidu, isto é, a sua particular
capacidade de pensamento, de comentários metalinguísticos e que quebram
sistematicamente a dita “quarta parede” (em português, falar-se-ia de apartes
no sentido precisamente teatral) sejam aqui preteridos em nome de uma outra
natureza da pesquisa permitida à matéria gráfica da banda desenhada.
Todas as personagens
humanas se expressam com balões de fala, com matéria verbal, mas sempre que
testemunhamos os animais a falar, os mesmos balões são ocupados com outras
tantas imagens icónicas, remetendo a todo um outro referencial de
imediaticidade e visualidade clara. Essa distinção poderia tornar-se
problemática, mas é tão-somente uma maneira de dar a entender uma possibilidade
de percepção daquele mundo, mantendo ainda assim uma certa lógica realista em Caminhos.
O valor original das histórias não se desfaz assim, mas há duas ou três forças
que conduzem este título em direcções diferentes: se por um lado a “aventura”
de Bidu se pauta como num álbum de banda desenhada “muda”, mais concentrada nas
dinâmicas acções e os mecanismos entre as personagens, por outro, há também uma
pesquisa por como Bidu irá preencher o desejo de Franjinha em ter um cão. Essa
relação na verdade não existe: não há nada nas acções de Bidu que o tornem mais
ou menos apto para ser o cãozinho de Franjinha, a não ser a força das
circunstâncias, portanto é a concentração nas suas caraterísticas: a coragem,
abnegação, capacidade de individualidade mas também de amizade, etc., que o
tornam “digno” desse encontro final.
Há que colocar porém
alguma água na fervura da ideia inicial. Dissemos que o próprio Bidu, e os
restantes cães, não se expressam verbalmente. Mas no início da história e no
seu final, surgem trechos de uma voz narradora desincarnada. É quase automático
que a atribuamos a Franjinha, mas nada nessas palavras nos permitem associá-las
sem quaisquer dúvidas à personagem humana. A voz fala do encontro com o melhor
amigo, mas essa é uma fórmula que tanto poderia dizer respeito do humano para
com o cão, como o seu contrário. Pensamos mesmo que a possibilidade da
atribuição quer num caso quer no outro é mesmo o propósito dos autores, aos
tornarem possível que essa voz, ou essas vozes, se confundam entre si,
reforçando de maneira indelével a amizade que projectaríamos em ambos
personagens.
Os autores não se
esquecem de integrar a aventura do cão azul no universo mais expandido da Turma
da Mônica, no Bairro do Limoeiro, ao colocarem uma cena, brevíssima,
secundária, da fuga de Franjinha, Titi e Jeremias de uma temível Mônica, que
figurativamente assume todos os insultos clássicos que lhe são dirigidos (nesse
aspecto, tal como ocorrera em algumas das histórias curtas das antologias MSP
50, há um ligeiríssimo teor subversivo, talvez). Aliás, a própria integração
geral de Caminhos, procurando ser a “origem” do encontro de Franjinha e
Bidu, encontrar-se-ia “antes” de todas as aventuras criadas pelo próprio
Maurício de Sousa, já que foram precisamente estas personagens as que o
colocariam na senda do seu pequeno império.
Os autores, que trabalham
a quatro mãos, tiram todo o partido dos instrumentos gráficos de que estão
munidos, desde a figuração livre, caricatural, que lhes permite criar variações
marcantes das personagens conhecidas (sobretudo Bugu), à utilização de linhas
coloridas para os contornos e traços e a ausência de linhas para as molduras
das vinhetas, suavizando toda a composição, ainda que mantendo esta no interior
de uma convencionalidade legível. O emprego dos tais balões de fala icónicos,
com por vezes pequenas espirais para dar conta de uma musicalidade oculta,
permite aos autores um trabalho de segundo nível, hipotextual, em relação às
acções retratadas. E finalmente o uso pouco natural das cores, para
precisamente acentuar efeitos emotivos em determinados momentos: a
identificação imediata de todas as personagens, a súbita diferenciação de
momentos do dia, o spread central na chuva, a suavidade do fim do dia, e
até mesmo as onomatopeias que irrompem pelo espaço gráfico. O entardecer é
utilizado no início e no fim da narrativa geral, e o modo como os autores criam
um intervalo de gradações mas que caminham de uma cor complementar a outra (a
saber, de um amarelo torrado a um violeta vivo) demonstra como essa pesquisa,
mesmo que seja intuitiva, é conducente à carga emocional que se pretende vincar
com este projecto.
Penadinho. Vida. Paulo Crumbim e Cristina Eiko.
Apesar deste título ter
propósitos e uma abordagem estilística quase tão infantil quanto o livro de
Bidu, ele reveste-se não apenas de alguns contornos algo mais sofridos –
afinal, é uma “linda história de amor”, como se costuma repetir nestes romances
– como é também o mais completo e terminado dos volumes em termos estritamente
narrativos.
Narrativa concentrada por
seguir à risca os princípios aristotélicos, a trama deste livro atravessa uma
só noite (invertendo a noção proposta na Poética), desde o anoitecer até
à madrugada, colocando nesses limites toda a geometria entre o herói, os seus
coadjuvantes, o violão, os deuteragonistas, e o grande objecto da saga: a
apaixonada, Alminha. Poder-se-ia debater que Vida obedece a um esquema
demasiado simplista e até demasiado expectável, com uma figura feminina
enquanto objecto da acção dos demais personagens masculinos, por exemplo, e
onde a distribuição moral é clara. Não seria falsa essa leitura, mas o modo
como o objecto deste livro abraça esse mesmo propósito desarma, quem sabe,
parte desse avanço conceptual.
Os autores lançam mão não
apenas de todas as personagens desta outra turma em particular – até certo ponto,
os vários “conjuntos” do universo da MSP organizam-se por certos princípios
agregadores -, como de todas as referências possíveis associáveis a este quadro
de “fantasia negra”, que o autor original, Maurício de Sousa, chamara algures
de “histórias de terrir”. De facto, as referências parecem beber das mais
diversas fontes: o vilão chama-se Crowley, os personagens contam até 666 para
jogar às escondidas, surgem demónios com nomes retirados de grimórios, mas
também há toda uma bateria que parece associar-se quase de imediato a um corpus
de animação japonesa, não sendo impossível traçar linhas directas com a
produção dos estúdios Ghibli (acima de tudo, Sen To Chihiro), até mesmo
por os traços de Crumbim e Eiko, lançados no papel juntamente, beberem largamente
de uma linguagem contemporânea, fluida, esquemática, estilizada, informada pela
mangá e animé. Tudo isto, portanto, articulado para uma direcção perfeitamente
coerente.
Esta conjunção de
“figuras clássicas do terror” e um género narrativo infantil não é, hoje,
totalmente inédito, mas se a criação original de Maurício de Sousa não deixou
de ser algo pioneira nesse sentido, sobretudo no Brasil, este projecto de
Crumbim e Eiko é feita num contexto alargado em que existem produções tais como
Addams Family, Casper, the Friendly Ghost, Melvin Monster,
de John Stanley, a obra de Mercer Mayer, e os mais recentes Monsters Inc.,
AAAHH!! Real Monsters, Monster High, Foster's Home for Imaginary
Friends, os livros (e consequentes adaptações) de Neil Gaiman, e todos os
universos das novas séries de animação da Cartoon Network. Já para não falar,
claro está, da produção japonesa de Mizuki às séries contemporâneas... Penadinho.
Vida, contudo, como todo o projecto (aprovado editorialmente, recordemos)
da Graphic MSP, pretende que se coloque a tónica mais na dimensão psicológica e
emocional do que pura e simplesmente na acção e linearidade da aventura.
Esse resultado tem a ver
com a relação amorosa mas jamais confessa de Penadinho por Alminha. A
possibilidade da reencarnação desta última, isto é, a sua dissolução enquanto
fantasma, alerta o protagonista para o perigo de um fim que não pensava ser
possível, já que a vida-após-a-vida lhe pareceria eterna, não o sendo. Ao
confrontar-se com a perda inevitável – e a “inversão” dessa perda ser para a
vida, e não para a morte, torna essa ideia paradoxalmente menos macabra -,
instalam-se todos os mecanismos previsíveis das dinâmicas de grupo necessárias
ao ancoramento das alianças e conflitos das duas forças em jogo.
Vida é também, destes quatro livros, o mais
visualmente dinâmico e diverso no interior. Os autores não seguem sempre a
mesma linha, e exploram o que lhes é possível, ainda assim no interior de uma
certa convencionalidade e legibilidade simples, a heterogenia dos estilos,
composições e esquemas cromáticos. Há mesmo uma página que mostra um dos
percursos percorridos pelos aliados como se se tratasse de um mapa de jogo de
plataforma de 8-bit, aumentando a carga humorísticas desses mecanismos e
referências. Mesmo as reviravoltas mais expectáveis funcionam sempre para
recompensar os “pontos nevrálgicos” necessários para os leitores se sentirem
confortáveis na leitura. Não procurado propriamente revolucionar a forma, Vida
preenche esse limite da forma mais completa possível, o que não deixa de ser
uma vitória para um livro desta natureza.
Astronauta. Singularidade. Danilo Beyruth.
Uma vez que Beyruth havia
criado em Magnetar uma estrutura conceptual sólida e diferenciada para o
Astronauta, “arrastando” essa personagem para um contexto de aventuras mais
convencional mas com os necessários contornos eco-filosóficos da versão
original, em Singularidade o autor centra-se numa acção mais linear e
dirigida, sem grandes desvios desse caminho. Tal como ocorre noutras das suas
obras, como as aventuras curtas do Necronauta ou o seu weird western
Bando de dois, Beyruth é um autor que lança as suas personagens de imediato
no calor da acção, sendo a partir da fricção dos eventos que surgirão as
consequências da construção psicológica das personagens.
Todavia, ao contrário de Magnetar, em que as condições de
isolamento do Astronauta eram conducentes à exploração de uma aventura
“interior”, constituída de memórias, receios e até mesmo algum princípio de
paranóia, aqui a missão envolve mais duas pessoas, a saber, uma psicóloga que
deve avaliar o protagonista e um membro de uma instituição científico-militar
de outra nação (os Estados Unidos, ainda que não de forma explícita), de dúbios
intuitos. Desta forma, a intriga de Singularidade permitirá criar uma
geometria de tensões entre estas personagens. Todavia, essa geometria não ganha
jamais uma configuração demasiado complexa. Bem pelo contrária, ela é clara
desde a partida e segue alguns passos expectáveis. Mas nenhuma dessas
passagens-chave, mesmo que tornem a história linear e formulaica, retiram os
factores de excitação e deslumbre que o autor gere para preencher o seu
propósito de entretenimento. Singularidade, aliás, tem momentos de maior
acção e espectacularidade do que Magnetar, tornando-o um complemento
curioso se pensarmos nos livros como um conjunto (eventualmente a continuar).
Nalguns aspectos,
poder-se-ia pensar que este é o título mais “adulto”, mas isso deve-se à forma
como são geridas as emoções das personagens. Estas são todas adultas –
poder-se-ia pensar que também as de Penadinho o são, mas essoutro mundo,
criado assim, segue um género de humor de tal maneira que a idade não é um
factor – e as tensões que surgem nessas relações são mais “negras”: irritação,
mentiras, desilusões, etc. A introdução da possibilidade sexual entre o
Astronauta e a sua psicóloga é clara, mas não particularmente explorada (é até
desviada com a costumeira “fantasma” da paixão do protagonista, e reduzindo
essa personagem a uma mera lady in distress). Mas essa “maturidade” é
atingida mais por essas dimensões superficiais do que propriamente pela
seriedade ou gravidade dos sentimentos esgrimidos.
Tal como noutros títulos
deste projecto, é como se a Beyruth fosse dada a oportunidade de abrir os
arquivos da personagem, a “Bíblia” existente dela, e pudesse rearranjar os
elementos dessa história como lhe bem aprouver no interior da sua versão. Nesse
sentido, estes projectos seguem aquela tendência identificada por Geoff Klock e
outros teóricos que tem informado a banda desenhada mainstream de
superheróis desde o final dos anos 1980: a possibilidade de reempregar
elementos arquivísticos – personagens, temas, objectos, histórias, etc. - da
longa história das personagens para reescrevê-los num tom mais “adulto”, ou
pelo menos informado por abordagens de géneros bem distintos do usual. Neste
caso, as histórias infantis passam a ter um teor advindo de uma tradição que
associa Flash Gordon às curtas da Métal Hurlant, passando por Incredible
Science Fiction e Tales to Astonish: histórias centradas na acção,
elevando uma qualquer noção científica como “excusa narrativa” para colocar em
movimento todos os elementos. Quanto aos elementos, e como é exposto no
material adicional no fim de cada volume, que remete precisamente para esse tal
arquivo e história das personagens originais, Beyruth aproveita sobremaneira
linhas que Maurício de Sousa havia lançado na sua tira de 1965, tendo sido
reelaborada em 1985 já nas revistinhas.
No caso presente, e tal
como o título indica, a noção científica eleita é a possibilidade de estudar um
buraco negro, ou singularidade, primeiro ponto que leva a missão a partir com o
Astronauta, único capaz de controlar a sua própria nave, e as duas outras
personagens. Quando se aproximam do fenómeno (seguindo muito de perto, mas
sucinta e simplificadamente, as descrições de Stephen Hawking com as correcções
providenciadas pela teoria quântica), rapidamente entram em contacto com o
problema do “segundo acto”: uma nova espacial alienígena e, claro, misteriosa,
permitindo a que a rivalidade entre os dois personagens, masculinos (digamos
que a gestão “Bechdel test”, como se aventada cima, destes títulos deixa algo a
desejar), seja o mais sublinhada possível.
Pensamos que enfrentar Singularidade
como uma narrativa de aventura de ficção científica, linear e descomplicada, de
teor juvenil, é uma melhor atitude do que partir do pressuposto que estaríamos
perante um projecto de maior complexidade e inventabilidade. Por exemplo, é
relativamente fácil identificar alguns dos mecanismos episódicos da trama
narrativa, como espelhando tantos outros da cultura popular – o interrogatório
psicológico do herói que o incomoda, como é feito a Martin Riggs em Lethal
Weapon ou Bond em Skyfall; o protocolo oculto de uma missão espacial,
como em 2001, Alien, Event Horizon; o contacto com uma
civilização tecnológica superior e desaparecida Alien, Total Recall,
Mission to Mars, Prometheus -, em vez de imaginá-la como
plataforma de modos originais.
Turma da
Mônica. Lições. Vitor e Lu Cafaggi.
Como no caso anterior,
repetia-se aqui a equipa e a atribuição das personagens, e também se estabelece
uma história que, até certo ponto, é autónoma da anterior. O ponto em que se
suaviza essa dependência encontra-se em um dos dois factores que tornam Lições
um projecto ligeiramente mais arriscado que o anterior, e até que os demais.
Esse primeiro factor está no da introdução do tempo, uma vez que estamos
perante a ida da turma para a escola, e tudo o que isso acarretará em função do
“crescimento”.
O segundo factor,
intimamente relacionado com esse, está na introdução do conflito central da
narrativa, e que traz uma dinâmica inesperada a Lições. Não pode ser
inocente a escolha dessa palavra, até por eufonia com Laços, tal como
não será de todo inocente que a capa, por mais estudos diferentes que tenha
havido, siga o mesmo esquema que o título anterior, mas de “moral” bem
diferente. Se aquilo que simplifica a acção e dinâmica de grupo é,
precisamente, a sua existência enquanto grupo, em que as forças se vão
complementando, qual é a grande crise que se pode instalar no seu seio? É
quebrá-lo. Os “laços” que os uniam é nesta história “quebrado”, então, devido a
uma falta escolar de todos os personagens, e que leva os pais a tomarem
decisões radicais, levando Mônica a mudar de escola, Cebolinha a ter terapia da
fala, Cascão em aulas de natação e Magali a seguir um curso de boas-maneiras.
Cada um desses comportamentos instituirá uma tensão que os afasta
centrifugamente do magnetismo que os une (seja por amizade genuína ou por
rivalidades e picardias, mas que podem ser vistas também como outra forma de
expressar essa amizade genuína), e o modo como isso os força a todos a
estudarem a hipótese de terem de viver sem esses amigos de sempre.
Claro está que, para que
uma história funcione de modo clássico, esse conflito tem de ser informado
pelos paradoxos naturais das vontades das personagens (medo da água,
resistência a “corrigir” comportamentos, uma mania demasiado forte, etc.),
levando então aos eternos desequilíbrios que colocam em movimento todas as
peças para que se regresse a um estado inicial, mesmo que depois se revele
algum grau de aprendizagem. Dessa forma, é muito inteligente a maneira como os
dois autores introduzem não tanto uma diferença abissal em relação ao
comportamento clássico destas personagens, mas as colocam numa berma do pior
sentimento possível: a dúvida. A imagem de Cascão a contemplar mergulhar o pé
na água da piscina, a uma distância de um cabelo, é uma perfeita metáfora desse
mecanismo.
Os irmãos Cafaggi tiram
partido dos mesmos métodos do livro anterior, mas com diferenças de grau. Lições
é um livro pesado em termos de diálogos, o que não deixa de ser surpreendente
já que potencialmente seria aquele que, pautado pela vontade de chegar a um
público mais alargado e jovem, se poderia escudar dessa estratégia. Mas a
verdade é que no burilar desses diálogos que muitas das personagens conseguem
expressar as suas angústias, medos e dúvidas, o que nem sempre é um facto
explorado na banda desenhada para crianças – mormente aquela infantil e
comercial da própria MSP -, ainda que seja uma cada vez maior constante noutros
territórios, como os livros ilustrados.
Há também um conjunto de
referências que engrossam a integração no universo, como dissemos a propósito
de Bidu. Caminhos, nomeadamente ao introduzir-se uma peça teatral
escolar, Romeu e Julieta, que relembrará alguns leitores do projecto da MSP em
torno dessa peça, numa versão onde os papéis principais eram distribuídos pelo
Cebolinha e Mônica. Essa é sempre, pelos vistos, uma decisão editorial, ou pelo
menos uma estratégia facilitadora da parte da editora, precisamente para
atingir aqueles objectivos indicados acima na pequena introdução.
Nota final:
agradecimentos a Maria Clara Carneiro, pelo favor imenso de comprar e enviar
por correio estes títulos.
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