Tal como sucedera
com The Divine,
também este livro junta dois gémeos para
tecerem a história de outros dois gémeos. No caso presente,
trata-se de uma adaptação do romance Dois
irmãos vem de Milton Hatoum, publicado
em Portugal como Dois irmãos,
na excelente colecção Sabiá da Cotovia, que nos tem permitido
conhecer toda uma geração de escritores brasileiros contemporâneos
(e inclusive outros títulos do autor). (Mais)
Em termos temáticos,
o romance de Hatoum elabora-se em torno de um dos mais antigos tropos
da humanidade: a rivalidade entre irmãos. Espraiando-se ao longo de
umas dezenas de anos na Manaus dos anos do pós-guerra, Dois
irmãos centra-se na vida rapidamente
encapelada e separada de Yaqub e Omar, filhos de um emigrante
libanês, Halim, e de Zana, uma mulher de grandes paixões que quis
manter uma visão romântica até à sua morte. Halim gere uma loja
que vende as mais diversas quinquilharias, mas que servem mais como
ponto de encontro dos seus conterrâneos do que propriamente uma via
de enriquecimento sério. Os dois irmãos partilham a mais esperada
vida, mas os caminhos começam a distorcer-se em torno do amor, até
um ponto de viragem dramático, senão mesmo trágico, e que instala
uma primeira injustiça, empurrando Yaqub para uma temporada na
aldeia natal do pai, e Omar para mais de baixo das saias da mãe.
Montado o esquema da rivalidade e da grande desigualdade –
repetindo os esquemas bíblicos -, é apenas o regresso de Yaqub que,
com a proximidade, pode pôr em movimento a necessária tensão e
conflito que vai alimentar a trama.
Conforme os
restantes romances de Hatoum, também Dois
irmãos é uma mescla entre biografia
familiar – o autor é descendente de libaneses, nasceu em Manaus,
etc. - e ficção, observação cultural local e historiografia
política e literária. Há espaço para todas essas pesquisas em
torno da espinha dorsal da intriga principal, todos esses elementos
aproveitados nesta adaptação à banda desenhada. Aliás, parte da
força visual dos gémeos, neste título em particular, está
precisamente na capacidade de fazerem erguer os vários cantos
diferentes, sob luzes e vivências distintas, daquela cidade numa
espécie de fronteira entre a malha urbana e a selva amazónica, a
vida intensa ao longo do rio e as mais desbragadas noites das boîtes
onde surgem os sons electrificantes e dançantes de tendências
globais... Usando as mais diversas técnicas de enquadramento,
permitindo desde voos de pássaro sobre os rios, deambulando pelos
casebres dos índios, ou as ruas iluminadas em dias de festa, esta
Manaus, apesar do preto-e-branco, pulsa de vida. E é um veículo que
conduz bem esta narrativa de polaridades, as quais, de tanto
contrastadas, se começam a esbater.
Essa é talvez uma
das características da dimensão narrativa de Dois
irmãos. A história é apresentada
com algum grau de desarrumação cronológica, iniciando-se o mais
próximo possível do presente da narração, e depois indo recuando
a passados sucessivos, que se vão revezando para “explicar” a
rivalidade, para depois se manterem no coração da trama. Apenas
avançados na narrativa descobrimos a quem pertence a voz narradora e
condutora – que numa adaptação de banda desenhada se torna ainda
mais paradoxal dada a existência de uma faixa visual, não
“devolúvel” da mesma forma que a matéria verbal -, facto que
pode confundir, por um lado, as expectativas da relação dessa mesma
voz com os protagonistas, a sua inscrição moral, por assim dizer,
como também, por outro lado, vem confundir ainda mais o
posicionamento possível do leitor. Se durante uma determinada fase,
e isto é discutível, os factos parecem contribuir para que tenhamos
uma posição de maior simpatia e compreensão para com Yaqub, e até
antipatia por Omar, essa balança acaba por, mais tarde, tornar-se
demasiado abalada, e terminaremos com uma ambivalência extremamente
marcada. Da melhor forma claro. Pois as pessoas não são más de
todo, ou boas de todo, são pessoas. E, portanto, falíveis, fracas,
com defeitos. Humanas.
Compreende-se assim
que, dado que temos nesta obra uma exploração das teias familiares
e da condição humana mais sólida, e explorada por um outro autor,
evita-se a esmagadora maioria dos escolhos delicodoces em que os
autores se perderam em Daytripper.
A condução permitida pela obra de Hatoum nutre uma capacidade de
vislumbre do humano muito mais matizada e veraz.
Como dissemos, o
romance espraia-se por outras realidades para além da imediata
intriga familiar, por isso testemunhamos também, mesmo que de uma
forma ligeiramente descentrada, a transformação do Brasil numa
economia moderna, a emergência de Brasília, uma certa vida
intelectual e académica que medrava por estas cidades, a folia
possível nas noites e álcoois, e depois também, o surgimento de um
regime cada vez mais repressivo e violento, que vem contribuir de
forma decisiva para a clivagem dos irmãos. Aliás, essa separação,
se no início tem tons bíblicos, e se pauta pela pulsão do sangue,
à medida que vai sendo informada pelos distintos haustos dos dois
irmãos, que vão habitando esferas sociais e culturais diferentes,
vai ganhando igualmente alguns contornos alegóricos. Estamos em
crer, porém, que essa tonalidade jamais se torna demasiado ambiciosa
ao ponto de romper a elegância emocional que Dois
irmãos pode providenciar ao nível da
experiência mais humana.
Sem querer revelar parte
da “chave” que desdobra a história numa tensão de várias
gerações, o facto do narrador ser uma geração mais novo, e também
deslocado socialmente em relação à “família central” torna-o
um foco, a um só tempo, de parte interessada mas também de pólo
independente. Se os irmãos, naquela leitura alegórica, podem
assumir os papéis de quem assume posicionamentos demasiado extremos,
ou pelo menos ancorados em ideias mais ou menos empedernidas, o jovem
menino filho da criada Domingas, cabocla (ou índia mesmo, sendo
caboclo o rapaz), acaba por se colocar numa posição descentrada, de
fora, quase neutra, de um almejado, mas impossível, narrador neutro.
Na verdade, ele é parte interessada, mas ela bascula tal como a
posição do leitor. Uma imagem óptima precisamente da visão de
quem não experiencia uma determinada situação extrema: tomar
partido em relação a algo que não se experienciou é sempre
problemático, sobretudo se se tomar uma das posições extremas.
Pensamos que, em parte pelo menos, é essa uma das grandes
interrogações do livro.
Em termos gráficos,
Dois irmãos
aumentou o grau do contraste preto/branco, assim como da estilização
das personagens, estando quase perante um desses delírios da
animação da UPA da década de 1950 (o que seria apropriado). Porém,
se isso leva a algumas composições muito elegantes, nos momentos
mais dramáticos (a vigília nocturna no coreto, as cenas de dança
nos lupanares, alguns dos panoramas urbanos abertos), há outros em
que afecta a clareza narrativa e até mesmo uma distinção das
personagens mais célere, o que atrapalha a leitura mais fluida e
emocional que a obra pede. Os gémeos brasileiros, afinal de contas,
não procuram o mesmo tipo de dramatismo dinâmico de um Frank Miller
na fase Sin City,
ou de um Eduardo Risso. Bem pelo contrário, sempre cultivaram uma
legibilidade suave das suas figuras, uma identificação esquemática
das emoções, etc. que aqui perde alguma da sua eficácia.
Já em termos de
composição, estrutura, ritmo, distribuição das focalizações
narrativas, Dois irmãos
é possivelmente o seu livro mais acabado, mais musculado que
Daytripper,
mais nítido que Pixu,
e mais culturalmente ancorado do que Casanova,
animal bem diferente.
Nota final: agradecimentos
à editora, pela oferta do livro.
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