Este livro de Julia Round já há muito
tempo que estava prometido, dado o incansável trabalho da autora, em vários
artigos, não somente no estudo narratológico da banda desenhada como de facto
abordando tópicos agregáveis sob esta designação: o gótico. Este livro
apresenta novas abordagens críticas, e engloba-o não somente de uma forma
histórica e literária, como procurando os seus desenvolvimentos posteriores em
várias frentes criativas e a sua influência mais alargada em termos culturais.
No que diz respeito à banda desenhada em particular, a sua importância está
menos até no tema em si – que pode ou não interessar a um público mais alargado
– mas na forma excelente através da qual a autora consegue integrar, numa
estrutura inconsútil, todos os domínios analisáveis desta disciplina. (Mais)
O género do “gótico” terá emergido por
oposição precisamente à cada vez maior presença na sociedade e, por
conseguinte, na literatura e produção artística, daquilo que David Punter, na
introdução, chama das “assunções 'iluminadas' do realismo” (pg. 1). O gótico é
caracterizado por uma atenção particular para com toda uma série de
contradições da condição humana, uma permanente divisão e desequilíbrio entre o
racionalismo e o pensamento mágico, entre a natural escolha pela vida e a
“pureza” e o fascínio pela corrupção, trevas e morte, e a paixão estranha por
todo um conjunto de figuras que, tornando-se modelos dessas esferas mais
sombrias, são tanto mais interessantes quanto repelentes. Não se pode, todavia,
considerá-lo como um território homogéneo ou historicamente determinado para
sempre. Bem pelo contrário, e como a autora fará notar ao longo da sua obra,
“[d]esde as suas origens literárias que [o gótico] tem sido uma série de
reinvenções e revisitações de tropos e temas previamente existentes” (167).
Esta ideia de revisitação não só está desde a própria origem, portanto, do modo
literário do Gótico, como informará sobremaneira as estruturas narrativas e
visuais da banda desenhada gótica, conforme estudada por Round.
O volume é não apenas pequeno (pouco
menos de 230 páginas) como concentrado e organizado de uma forma simples e
dedicada. Inicia-se por uma claríssima organização histórica, que dá conta da
origem e desenvolvimento deste “género” (ou “modo” ou “tradição”), estudando
sobretudo os modelos anglófonos, britânico e norte-americano. Segue-se depois
uma focalização sobre o meio da banda desenhada, procurando entender histórica
e sociologicamente a interacção do género com esta disciplina, pautando-se a
leitura pelas características que J. Hogle (cf. adiante) indica serem as
centrais do gótico, e discute-se uma mão cheia de casos de estudo. Finalmente,
uma terceira parte intitulada “cultura e conteúdo” reitera algumas dessas
linhas de fundo observando temas, estratégias e formas recorrentes, de maneira
a entender o desenvolvimento desses mecanismos no interior da banda desenhada.
Acima de tudo, esta última parte estuda a dimensão sociológica e “participatória”
da cultura gótica, havendo uma atenção particular para com a esfera da banda
desenhada e das actividades que lhe estão associadas (convenções, vestuário,
música, consumismo, transformação e construção de identidade.
A autora fala mesmo de “absorção gótica”,
entendendo por esse conceito “um processo atemporal e bidireccional que
atravessa fronteiras da ficção 'alta' e 'baixa' [no sentido cultural] (155), o
qual está relacionado não apenas com um uso activo e criativo dos modelos,
personagens e símbolos numa estrutura vivencial mais complexa do que o mero
“consumo” como a relaciona com dimensões de “trauma social”, associados à
emergência de novas configurações político-económicas (estamos a falar
sobretudo do tardo-capitalismo, evidentemente, no dito Primeiro Mundo). No
final, a autora elege duas figuras que analisa historicamente, na banda
desenhada mas não só, para corroborar a sua análise: o vampiro e o zombie. Em
vez de considerar estas figuras como definidas de um modo final, contra o qual
existiriam “desvios” ou “versões não-canónicas”, Julia Round estuda antes os
seus “usos” particulares no interior das ficções que os empregam. Por isso,
afirma (podendo pensar-se na sua aplicabilidade às duas figuras, ou até a
outras, como o lobisomem, o monstro da lagoa, a múmia, a mulher louca, o
assassino em série, etc.) “a tradição dos vampiros permite inovação e
interpretações múltiplas” (175). Aliás, seria um pouco pateta querer que as
coisas funcionasse de maneira diferente em relação as estas criaturas... ficcionais
(importa é depois criar juízos de valor, informados, sobre a eficácia ou
elegância dessas ficções).
Round parte do pressuposto, e bem, a
nosso ver, de que o gótico não fará parte de uma cultura “de massas”, como
seria entendida (e a própria banda desenhada!) há umas décadas atrás – e há
ainda quem persiga essa noção algo ultrapassada em relação a estas produções -,
mas antes sob a luz de uma cultura popular mas em relação à qual se (re)criam
sentidos críticos e usos transformativos, sob a influência de autores e
teóricos tais como John Fiske, Dick Hebdige e Henry Jenkins. Dessa forma, há
uma multiplicidade de góticos a concorrer neste descritivo, o que permite assim
ser-se mais atento às diferenças subtis no interior do cadinho da banda
desenhada, mesmo que, com distância, “pareça a mesma coisa”.
Como indicado atrás, a autora cita o
teórico Jerrold Hogle para debater a noção da “matriz gótica”. São vários os
autores que foram contribuindo de forma decidida para os Estudos Góticos, como
precisamente David Punter (autor dos incontornáveis tomos de estudos literários
The Gothic, The Gothic Tradition, etc.), cada qual sublinhando
características específicas, mecanismos de desenvolvimento e estruturas
textuais, etc. O gótico permite pensar dimensões como as do corpo biológico, a
relação com a tecnologia, o espaço, assim como relações com a história ou mesmo
o futuro (veja-se, por exemplo, The Cambridge Companion to Gothic Fiction,
para ver algumas das divisões possíveis). Jerrold Hogle indica, para formar essa
tal matriz, quatro “qualidades”: “um espaço antiquado, um segredo oculto do
passado, uma assombração [haunting] física ou psicológica, e uma
oscilação entre a realidade térrea [earthly] e o sobrenatural” (cf. 17 e
ss.). Cada um desses objectos pode ser lido de formas bem diversas, é
expectável, mas é existindo um cadinho em que se cruzem essas leituras que
emergirá um texto propriamente “gótico”.
De resto, são esses os traços que, deste
ponto de vista, consubstanciam os mecanismos identificadores do género e que
operam na cognição dos leitores (seguindo as ideias de W. Iser) quando estes se
confrontam com um texto e decidem como o categorizar (de formas, como se
imagina, mais ou menos confortáveis, mais ou menos determinadas). Cada um
desses mesmos traços são depois, nos capítulos subsequentes, analisados com
maior rigor, cruzando-se com outras fontes, referências culturais e
filosóficas, já para não falar, obviamente, de um profundo conhecimento de
estudos de banda desenhada (não fosse Julia Round uma das editoras de Studies
in Comics, uma das mais significativas publicações académicas do ramo), ao
mesmo tempo que se procura ancorar essa mesma discussão com exemplos
identificados em várias obras de banda desenhada. Desde análises formais e
estruturais a considerações narratológicas passando por aspectos culturais e
políticos, as várias facetas de expressão do Gótico são passadas a pente fino
nas leituras de Round.
Como vemos, Round não bebe apenas das
teorias literárias, uma vez que a dimensão psicológica e “assombrada” do gótico
convida de imediato a leituras que se cruzem com o território da psicanálise.
Dessa forma, não nos surpreenderá que a noção de “fantasma”, tal como entendida
de forma específica e rigorosa pelo trabalho conjunto de Nicolas Abraham e
Maria Torok, e depois por Avery F. Gordon, por exemplo, esteja presente. Quando
se discutem estes terrenos temáticos, estará sempre presente um inconsciente
mas que “não se trata do âmago [kernel] do Si [self] mas o Outro
que está implantado em nós” (cf. 19). A lição radical de Freud, a de que temos
sempre um Outro no nosso interior, é demonstrada na literatura gótica através
da ascendência do “monstro”, que é sempre concatenação da alteridade. Isso
também irá permitir, num outro capítulo, algumas ideias brilhantes sobre a
relação entre o espaço em branco entre as vinhetas e as noções de “arquivo”,
“cripta” e “fantasmático” que não poderíamos discutir aqui sem entrar em
pormenorização excessiva: é algo a que se poderá responder, certamente, com um paper.
A autora estuda, como é de esperar, não
apenas os títulos de horror da EC dos anos 1950, assim como outros trabalhos
menos famosos, como depois as transformações que a “banda desenhada de género”
sofreu nos anos 1990, acima de tudo nas mãos dos autores envolvidos na Vertigo,
subsidiária da DC que, graças ao trabalho da editora Karen Berger e criadores
como Alan Moore, Neil Gaiman e outros, trouxeram um novo fôlego e uma
“gentrificação literária”, se se desejar, à fantasia negra, ao horror, ao
fantástico/maravilhoso, no campo da banda desenhada. A autora declama mesmo que
o trabalho da Vertigo veio dar “continuidade das tendências de revisionismo,
alegoria e narrativa detalhada que Alan Moore havia lançado no mainstream
norte-americano. Neste sentido, [esses títulos] tornaram-se um corpo de
trabalho que representam a noção de [Michel] Foucault de 'heterotopia',
des-familiarizando a banda desenhada, à medida que que as histórias de
superheróis vinham mesclar-se com a mitologia, a narratologia se complicava, e
se faziam alusões literárias eruditas” (48). A heterotopia, enquanto noção de
um espaço totalmente outro, que não apenas subverte as regras do espaço como
funde um seu novo entendimento, encontra n(est)a banda desenhada uma particular
ilustração contundente.
Os suspeitos do costume, portanto,
encontrar-se-ão aqui: Hellblazer, The Sandman, Preacher.
Mas também American Vampire, The Unwritten, The Walking Dead,
Crossed, Chew, etc., são bastamente citados e lidos. Os casos de
estudo que merecem os capítulos exclusivos – curtíssimos, de duas a cinco
páginas, extremamente focados - são os seguintes: um número de The House of
Mystery por Neal Adams e outro de Joe Orlando, a prequela de iZombie,
de Roberson e Allred, um episódio de The Sandman e um “arco” da série The
New Deadwardians, de D. Abnett e INJ Culbard. Se parece que estão ausentes
outros trabalhos, como Saga of the Swamp Thing, de Moore et al., ou mais
Sandman, isso dever-se-á ao facto de que se trata de uma obra já
bastamente estudada, tendo o lerbd já falado de alguns desses títulos. Como
Julia Round indica, Hellblazer é sub-estudado, e de facto o primeiro run,
escrito por Jamie Delano, levaria a um curioso estudo sobre o “gótico urbano”
ou “gótico tatcherita”... Seja como for, é muito positivo que a autora eleja
sobretudo trabalhos originais (por mais que eles bebam de fontes literárias),
em vez de optar por adaptações de romances e/ou novelas “góticas” (como, por
exemplo, o continuado e sustentado trabalho de Culbard).
Por vezes a autora faz afirmações um
tanto ou quanto açambarcantes demais, como quando se fala de uma “redefinição”
da banda desenhada enquanto literatura devido à emergência do formato/conceito
das graphic novels e um novo sistema comercial de distribuição e
comercialização (era preciso ir mais longe e ter em conta vários contextos
sociais e nacionais), mas essa contextualização tem, de resto, de ser bem mais
generalista do que depois os estudos mais focados da autora. Além do mais,
esses passos fazem da contingência da própria escrita do texto (cf. se pode
depreender na entrevista, v. adiante). Seja como for, em muitos aspectos, e
pela própria forma como a autor recupera algumas das suas lições e volta a
reorganizar os princípios analíticos, não nos surpreenderia ver este volume a
ser transformado num “manual” num curso especializado. O interesse vai bem para
além daquele que diz respeito aos tópicos da banda desenhada, já que este é um
dos livros em que a integração de todo o saber disciplinar possível da banda
desenhada encontra um equilíbrio extremamente feliz.
Nota final: agradecimentos à editora,
pela oferta do livro, e à autora, pelo tempo dispendido para uma entrevista, a
qual está disponível, apenas em inglês, no site The Comics Alternative,
que nos dá a contínua honra de colaborar. Link directo, aqui.
Sem comentários:
Enviar um comentário