Este livro faz precisamente um ano que foi publicado, mas infelizmente o acesso das edições brasileiras em Portugal – e a inércia de quem escreve estas linhas – leva a que a sua recepção seja tardia. Porém, esperemos, jamais desatempada. E quando se trata de obras que almejam uma certa atemporalidade, qualquer momento para a sua descoberta é o momento certo e recompensador.
Recordar-se-ão alguns dos leitores e visitantes deste espaço que a obra de André Kitagawa esteve presente em Portugal integrada na exposição “Seisesquinas de inquietação”, integrada no Festival da Amadora de 2013, comissariada por mim mesmo. A minha capacidade de acompanhamento da obra deste autor não foi pautada pela maior das proximidades – apesar de termos salientado a sua peça num dosprojectos da Graphic MSP – mas isso dever-se-á igualmente à própria produção do autor ser mais esparsa do que outros seus companheiros em termos de temática, atenção política e sensibilidade social, como Marcelo D'Salete, Wagner Willian, André Diniz ou Rafael Sica. Mesmo este volume é relativamente curto: 120 páginas com 3 histórias individuais, e muitos textos/blurbs de terceiros e outros complementos. A sua concisão, porém, é precisamente a da lâmina, célere, certeira e que, num clarão, nos fere.
É inevitável, e estou seguro que o próprio autor não a achará como redutora ou diminuinte do poder do seu livro, que se crie uma imediata comparação com as primeiras obras de D'Salete, a saber, NoiteLuz e Encruzilhada. As razões são múltiplas. Tal como aqueles dois volumes, Risca Faca é uma colecção de três curtos relatos, todos eles numa zona social mais ou menos concentrada da metrópole de São Paulo, atenta sobretudo às suas classes mais desprotegidas e miseráveis. Se D'Salete procurava explorar as suas histórias a partir de um ponto de vista racializado, mas em busca de uma dignidade humana atingida pela própria conquista da agência das suas personagens, Kitagawa faz-nos mergulhar em histórias de profundo desespero, violência e tragédia. “O filho da mãe” é protagonizado por um jovem cuja espiral de miséria e consecutivos derrubes sociais da família o empurram para uma personalidade vindicativa, irascível e propenso a assumir traços de sociopatia violenta. “Zoinha” mostra uma jovem mulher, aparentemente inocente, a atravessar uma aventura nocturna da mais desabrida das violências, como se se tratasse de uma peça a sacrificar em nome de crimes a perpretar por outros. “Já morreu” coloca no centro da sua novela uma dessas personagens “invisíveis”, no sentido racial e social preconizado por Ralph Ellison. É uma “tragédia de erros”, com consequências estúpidas e facilmente evitáveis, se o protagonista dissesse uma palavra, fizesse um gesto, tornasse clara uma intenção, e os seus interlocutores escutassem. Mas esses condicionalismos jamais têm lugar, e não há palavra, gesto, intenção ou atenção, e mais um crime se perpetua.Ainda como os livros de D'Salete, também os contos de Kitagawa se unem “pelas traseiras”. Isto é, há personagens, espaços ou até cenas que, se numa das histórias são apenas cenário e complemento de densidade social, na outra são o centro da atenção. Desta forma, Risca Faca cria um mecanismo falso, ou melhor, enganador para o leitor, uma vez que se o tratamento temático quer demonstrar ou explorar o isolamento, essa estrutura acaba por revelar a continuidade e as ligações existentes. A cegueira é, então, totalmente da responsabilidade dos intervenientes, sejam eles as personagens das diegeses ou os leitores.
O retrato de uma, que me perdoem os paulistanos, desacolhedora e eternamente nocturna São Paulo, dos bairros mauricinhos à Cracolândia, os inúmeros botecos espalhados pelos seus bairros, é particularmente sólido, graças à arte de Kitagawa, cumprida por desenhos de várias densidades de grafite, que acabam sempre com um ar esfumado, como se fossem fruto de um incêndio tremendo que já passou. Mas é uma escuridão que tira partido igualmente dos espaços ou intervalos em branco do papel para moldar os espaços e os intervenientes. Algo que espelha igualmente as estratégias narrativas do autor, que “escreve” através de elipses, breves relampejos de momentos do passado mas pouco ou nada desenvolvidos, deixando aos leitores a responsabilidade de ceriz os sentimentos das personagens e os putativos acontecimentos que desaguam na miséria que testemunhamos no agora das histórias.
As suas personagens são diversas e acabadas, graças à sua incrível capacidade de moldar rapidamente uma personagem graças a uma postura física, uma expressão do rosto, um nome memorável e esclarecedor. Mas ao mesmo tempo com uma natureza algo inerte, como estátuas frente aos desastres que ocorrem em seu torno. O autor tem vários exemplos, noutras produções, de uma capacidade de composição experimental, surpreendente e inovadora. Em Risca Faca ele tenta manter os princípios mais clássicos da legibilidade, mas sentimos aqui e ali algumas tensões que parecem querer escapar dessa normalidade da página. Páginas que se atomizam em um grande número de vinhetas desacelarando o tempo e concentrando a energia em cada um dos movimentos mostrados. Vinhetas que isolam um objecto de atenção, desincorporando o gesto mostrado. Cenas que se explodem noutros registos de informação. Personagens que se isolam dos cenários para garantir a sua presença em cena. Em suma, modos de demonstrar o domínio desta arte em particular e que obra a uma atenção às alianças que vai criando dos seus elementos.
Possivelmente tranfigurada, de uma maneira pesada e contudente, a São Paulo de Risca Faca não é uma bela imagem. As suas personagens não serão felizes. Os acontecimentos não redimem nada. Esperamos, todavia, que a compreensão, mesmo que superficial, das conexões das histórias humanas, seja um breve traço, ou corte, que nos permita acreditar que haverá ainda hipóteses de solidariedade futura.
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