Em quatro publicações com
centenas de gestos diferentes entre si, é algo difícil fazer um juízo global, e
inevitável que se sintam diferentes intensidades a nível narrativo e/ou visual,
que fazem imaginar a possibilidade de um crivo mais rigoroso. No entanto, o
objectivo de todas as antologias era duplo: por um lado, permitir um novo
“fôlego” a estas personagens através do seu uso por autores alheios à política
de estúdio da MSP, e por outro servirem também de uma espécie de embaixada da
cultura contemporânea dos quadrinhos brasileiros, tudo isto sob o signo, ou
desculpa, de uma homenagem às personagens e ao seu autor, por altura das
comemorações. Estamos a falar aqui dos três títulos MSP por 50 artistas, MSP por
+ 50 artistas e MSP por 50 novos
artistas, já que Ouro da casa trabalha
exclusivamente com os artistas que trabalham no estúdio MSP, mas dando-lhes a
oportunidade de “assumirem” uma linguagem própria, fora do “estilo” oficial (house style). (mais)
No entanto, perguntamo-nos qual será
a pertinência a longo prazo de ambas essas vias, já que uma “embaixada”, mesmo
dando palco nacional a alguns artistas que trabalham sobretudo a nível regional
naquele país imenso, não subsumiria a produção de tantos autores a um tema
desde logo espartilhado, mas antes aos ritmos e vontades criativas individuais
dos artistas, e o “fôlego” apenas se verificará a longo prazo se se der continuidade
às “graphic novels”, ou a outros eventuais gestos que possam surgir. Isto é,
tratar-se-ão estes de um episódio curto na longa vida da “indústria” MSP, ou
poderá este ser um novo passo de diversificação na sua produção?
Não conhecendo o trabalho de muitos
destes artistas, arriscaríamos a seguinte afirmação: nenhum dos autores
procurou alterar o “dispositivo” das suas linguagens próprias para se
aproximarem do “house style” da MSP, mas apenas abriram espaço para que os
“corpos” das personagens (e eventos, se os aceitarmos como módulos recorrentes
e variáveis: o rapto de Sansão, o desvio de Cascão da água, etc.) entrosassem
nesse mesmo “dispositivo”. Esta última palavra merece alguma explicação. Ele
quer dar conta de todos os elementos, apenas isoláveis na análise, posterior à
criação que o artista tem à sua
disposição e são por si usualmente empregues, até mesmo fora da
consciência da sua separabilidade analítica: os pormenores de figuração, a
composição de páginas, as perspectivas e planos no interior das vinhetas, os
jogos de cor e de sombra e de linguagem, as opções de simbologia própria da
banda desenhada e de onomatopeias, os temas recorrentes e os laços de
intertextualidade, etc. Mas também as condições materiais da leitura, desde o
suporte (papel e tintas, classicamente) à luz, posição do corpo, atenção, etc.
Adrian Martin, num artigo sobre
cinema, intitulado “Turn the Page, From Mise
en scène to Dispositif”, explica
esse conceito (cujas raízes conceptuais se partilham entre Jean-Louis Baudry e
Foucault) da seguinte forma: o dispositivo é “literalmente qualquer coisa que
tem a capacidade, de alguma maneira, de capturar, orientar, determinar,
interceptar, modelar, controlar ou assegurar os gestos, comportamentos,
opiniões ou discursos dos seres vivos”. Neles, Martin arrolará o habitual, das
confissões religiosas às instituições escolares e prisionais, as fábricas e as
disciplinas, os tribunais e os manicómios, enfim, as heterotopias de Foucault, espaços que de facto têm tempo e lugar
mas nessa mesma existência disciplinam os outros espaços. Mas além disso, o
crítico também falará de “a caneta, a escrita, a literatura, a filosofia, a
agricultura, os cigarros, a navegação, os computadores, os telemóveis”, etc.” O
cinema é um desses dispositivos, compreendendo não apenas todos os aparelhos
técnicos que facilmente se imaginam, mas tudo o que há em torno do cinema para
o tornar cinema: do argumento ao trabalho de actores aos actores eles mesmos à
recepção. E o mesmo pode ser dito da banda desenhada.
Nesse sentido, é curioso, ou seria
curioso, entender em que medida é que os artistas ora encontram nestas
personagens e matérias narrativas formas para explorarem o seu próprio caminho
autoral, ou até vida pessoal, ra procuram respeitar as regras da casa, ou que
tipo de equação é que se forma nesses encontros. Eles são muito diversos.
São por demais as histórias que se
entregam a homenagens relativamente simples, ora com as próprias personagens
celebrando o aniversário da carreira de Maurício, ora existindo crossovers entre as personagens da MSP e
as propriedades intelectuais dos autores (os casos de Ziraldo, Lailson,
Christie Queiroz) ou com que os autores costumam trabalhar (Ivan Reis), também
se dando o caso de colocar estas personagens em ambientes ficcionais provindos
de obras ou géneros famosos (são várias as versões, por exemplo, de cruzamento
com Alice no País das Maravilhas).
Não se pode ver nessas escolhas um problema, claro está, uma vez que é mesmo
esse propósito destas edições (tal como havia sido ainda mais na colecção Mônica 30 Anos): tornam-se, portanto, um
ponto de encontro particular.
O mesmo se poderia dizer daquelas
histórias que colocam as personagens numa idade adulta e que “redescobrem a
infância” por vários caminhos, remetendo precisamente a leitura das aventuras
originais ou contemporâneas da MSP num campo nostálgico dos envolvidos (veja-se
no texto anterior a questão das relações amorosas). Há ainda um número
substancial de narrativas que mostram, de uma forma ou outra, a própria figura de
Maurício como uma espécie de Demiurgo do universo (em que as personagens
habitam), ou artista moldador da sua matéria expressiva, fazendo com se
misturem laivos místicos, metalinguísticos e fantásticos nesses mesmos relatos.
Por exemplo, Maurício surge como “pai” das personagens, ou mestre, constelação
ou capaz de mover os céus. Neste enquadramento, estamos dentro de um campo
muito convencional de homenagens (um pouco como o cliché de, quando algum autor
importante morre, as homenagens mostram as personagens a chorarem ou a se
despedirem do autor…).
Muitas destas histórias curtas, ou
mesmo ilustrações isoladas, vivem numa economia narrativa do “conflito
interpessoal central”, que tem sido a fórmula constante de tanta ficção
popular, seja na literatura ou no cinema e na banda desenhada, apesar de
existirem alternativas. E a Turma,
como vimos, vive no coração dessa estrutura. Afinal de contas, não estamos
perante experimentalismos a esse nível, sensibilidades menos comuns, buscas
pela expansão das possibilidades expressivas e mesmo poéticas da banda
desenhada. Nem no material original nem mesmo nestas homenagens. Estamos antes
num campo mais circunscrito aos géneros existentes, mesmo que atravessem várias
plataformas de redesign (no estilo,
cores, narrativas, etc.), reformação (de “gibis” a “livros”), reformulações.
Mas “formulações” quand-même.
No entanto, apesar destas descrições
generalistas, existem autores que tomaram o seu tempo para de facto lançarem as
personagens dos estúdios de Maurício de Sousa em situações diegéticas
totalmente inéditas, interessantes e que prometem em si mesmas um
desenvolvimento imaginário curioso, o qual se viria a verificar parcialmente
nos projectos MSP Graphic.
Um outro ponto de contenção, que
abordámos apenas superficialmente no texto de introdução, tem a ver com a
representação racial. Apesar da diversidade étnica do Brasil, olhando para a
constituição da turma principal, não pode deixar de ser curioso que ela
responda a uma representação de uma classe média branca. Essa não é uma questão de somenos importância. É
significativo que apenas exista, historicamente, uma personagem negra,
Jeremias. Assim como o é que seja focada, nas antologias, exclusivamente por
André Diniz, também não sem significado na acção política e social desse autor,
que em Morro da Favela cria um espaço
privilegiado para abrir espaço de voz a quem usualmente a não tem, uma criação
de condições para que as pessoas possam assumir uma voz na primeira pessoa,
autêntica, mesmo que atravessa vários graus necessários de factura ou
estruturação literária. Além do mais, Jeremias inscreve essa personagem numa
tradição africana, incorporando a lenda do monstro Kammapa, dos contos da
África do Sul. Olhando para as quatro personagens principais, também não deixa
de ser curioso que Cascão possa ser lido de formas não-previstas,
preparando-nos sem surpresas de maior que ele seja ora tratado como uma
personagem negra assumidíssima por um número de autores (Luciano Félix, Rafael
Coutinho, J. Márcio Nicolosi, Romahs, Galvão) ou de formas mais subtis ou
ambíguas por outros (Luciano Irrthum, Daniel Brandão, Paulo Visgueiro, João
Montanaro, Estevão Ribeiro e Leo Finocchi, e o próprio André Diniz). Nesta
constelação de autores, portanto, alguns deles parecem ter consciência, ou pelo
menos, avançado pequenos modos de inquirir a dimensão racial da Turma.
Mas não é só. As diferenças a nível
da classe social podem também emergir, misturadas com aquela representação
“neutra” que mencionámos. Uma das histórias mais bem conseguidas nestas
antologias, e que, mais uma vez, quase obriga a reescrever as histórias
passadas, as convencionais e oficiais iluminadas por uma nova luz, é a de André
Kitagawa. Ora Kitagawa cria toda uma série de pormenores na representação
icónica, simbólica e social, que dá mais “corpo”, detalhes que “ancoram na
realidade” estas ruas e edifícios. Ao mesmo tempo largando as personagens
nesses espaços, recriamos o contexto social.
A narrativa em si também foca num
ponto que, parecendo “típico” – a conhecida característica da “fobia ao banho”
de Cascão -, é transformado. Vemos Cebolinha, Mônica e Magali e aproveitarem a
possibilidade de tomarem banho na piscina do velho vizinho, mas Cascão a evitar
esse contacto, e apenas a rondar a turma… Mais tarde, já no Outono, ele acaba
por poder “mergulhar” na piscina vazia, cheia de folhas secas (ou húmidas?). A
leitura, porém, que se torna possível é uma espécie de vergonha do menino pobre
de estar com os meninos mais ricos, e apenas na ausência do contacto com o
privilégio destes é que ele se sente totalmente livre para expressar uma sua
alegria própria e um acesso a um espaço proibido socialmente.
Há casos, porém, em que os conflitos
sociais não-ditos das histórias são suspensos, para se tecerem histórias de uma
carga emocional inédita nos materiais originais (que, pelas suas abordagens
mais convencionais e simplistas, mergulham mais rapidamente no melodrama, numa
cadeia de emoções simples, ou mesmo simplistas, do que numa pesquisa
sofisticada da realidade humana). Nessa dimensão, é talvez a história de Tiago
Elcerdo, por exemplo, a que se providencia como uma história magnífica,
totalmente deslocada do ponto de vista das personagens usuais, e criando a
“backstory” que leva o Sr. Lau a proteger com tanto acinte a sua goiabeira do Chico
Bento e amigos...
Apenas deixaremos uma breve palavra
sobre a antologia Ouro da casa,
surpreendentemente a menos conseguida das antologias (por haver limitações
auto-impostas da parte dos seus autores?, por haver já um treino mental a não
cruzar uma certa linha editorial?, por hábito?). Esta antologia torna-se mais
interessante pelas informações que revela de algum dos bastidores da Maurício
de Sousa Produções do que pelos gestos a integrar este novo corpo de trabalho.
Sem esquecer o nível de informação breve e “interessante” de uma revista
popular, mostra-se rapidamente o processo de trabalho usual (com muitos
conteúdos remetidos ao site específico), as biografias dos colaboradores do
volume, sempre com chamadas para o trabalho na MSP, e espraiam-se nas próprias
histórias algumas informações da vida longa destas produções. No entanto, sem
querer imaginar que existam pressões nesse sentido, nem “segredos ocultos”, e
mesmo aceitando que o propósito comemorativo deverá sublinhar todo o esforço, a
contínua apresentação de homenagens ao próprio Maurício de Sousa enquanto
“pai”, “criador”, “génio”, etc., ou de possibilidade de regressar à infância
com a leitura destas histórias, ou dos ingredientes mais usuais de cada
personagem, torna algo maçuda a leitura deste volume. Além do mais, o cômputo
final em termos artísticos e literários é raramente surpreendente, se não mesmo
confrangedor nalguns casos, trabalhando-se sempre num registo seguro e mínimo,
mas mais uma vez isso não é de admirar uma vez que temos toda a equipa (dos
desenhadores propriamente ditos aos coloristas ou pessoas com outras funções) a
desenhar.
Na diversidade de gestos, haverá
intensidades para todos os gostos, naturalmente, como já havíamos dito. Elas
criam a possibilidade de imaginar o que seria uma economia de produção diversa,
que permitisse uma contínua contribuição da parte de autores alheios à MSP, no
regime de “work for hire”, mas antes no de “possibilidade de diálogo”, na
fabricação de histórias com estas personagens, espaços e realidades fictícias.
Algo semelhante à diversidade de estilos que ocorrem nas versões de banda
desenhada de várias séries de animação da Cartoon Network, ou projectos de
humor afectos à DC (Bizarro Comics),
Marvel (Strange Tales) ou Hellboy (Hellboy Junior). E não poderiam existir
aqui expectativas de ver pesquisas fora da economia dos seus leitorados mais
expectáveis. Mas mesmo no interior desse espartilho, as antologias acabam por
revelar menos surpresas do que poderia ser.
Nota final: agradecimentos à Panini
Brasil, a André Diniz, Pedro Franz, Maria Clara Carneiro, e Sidney Gusman, pela
ajuda em obter os livros, e algumas outras questões. Escusado será dizer que
nenhuma das nossas posições e/ou leituras responsabiliza terceiros.
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