Num
quadro de discussão atreito a estes livros produzidos pela MSP, será
algo inevitável criar uma apertada rede de relações, se bem que
nada nos pode impedir de necessariamente fazer outro tipo de
ligações, ora com outras obras dos mesmos autores, ora num plano
nacional, ora de género, etc. Mas se nos ativermos a estes grupos,
diríamos que Ingá está mais próximo de PavorEspaciar,
tal como Laços
cria uma dupla com Magnetar.
A razão destes “pares” deve-se ao facto de que neste livro, tal
como no caso do de Gustavo Duarte, estarmos perante uma história
dinâmica mas de trama necessariamente linear. Quer dizer, não
poderemos olhar para Ingá
na expectativa de vermos um exercício de sofisticação no que diz
respeito a metalinguagens, jogos pós-modernos, reinvenções
“não-naturais” da narrativa e por aí fora... Bem pelo
contrário, a narrativa parece criada precisamente para que se possam
atravessar vários espaços, cada qual revelando mais uma personagem,
sobretudo todas aquelas que compõem a “matéria” da “Turma do
Piteco”, e as quais vão sendo introduzidas à la deus
ex machina.
Mas essa estrutura clássica é perseguida com grande mestria. No
interior dessa circunferência, Shiko assegura-se que os ingredientes
estão nos sítios certos, nos momentos certos e de forma a que a
trama seja necessária em si mesma, jamais parecendo uma lista a ser
garantida.(mais)
A
primeira característica que, perdoe-se a verdade à la Palisse,
“salta aos olhos” neste livro é a qualidade visual de toda a
matéria, que a torna particularmente distinta da “escola” a que
MSP nos tem habituado, o estilo “limpo” ou “industrial”
infantil. Shiko é detentor de um traço que encontra um bom
equilíbrio entre o realismo – as cores, em vivas e compelxas
aguarelas, delineando bem os contrastes de luz, volumes, tornam
sólida essa abordagem, sem deixarem, aqui e ali, de revelarem os
seus contornos materiais, deixando ver a textura do papel, os gestos
dos pincéis, a acumulação de matizes – e uma aproximação mais
“abonecada”, sobretudo quando existem grandes planos dos rostos
em cenas mais dramáticas e de acção. A sua escolha em raramente
desenhar pestanas nas personagens tornam algumas dessas cenas um
pouco estranhas, muito contrastivas do resto da economia visual da
história, mas são apenas momentos pontuais e que trazem uma espécie
de humor às acções. Nesse sentido, nesse equilíbrio, Shiko
recorda autores muito diversos, desde “clássicos contemporâneos”
como José Ortiz/Segura (cuja referência não é difícil de
adivinhar, ao detectarmos o cameo de Burton & Cyb na curta
história do Astronauta com que Shiko participou em MSP
Novos 50 [ver imagem alusiva neste parágrafo])
ou pesos pesados do mainstream internacional dos nossos dias como
Olivier Coipel e Esad Ribic.
A
trama em si tem pouco de complexo, tratando-se de uma missão de
resgate (tal como em Laços)
e de saída de um lugar inóspito contra um inimigo implacável (tal
como Pavor
e Magnetar);
mas estas outras aproximações dizem mais de uma constante cultural,
de fórmulas narrativas das quais é difícil de escapar no interior
de certos géneros, do que uma constatação de inscrições
similares entre estas obras tão díspares. Mais uma vez, o interesse
deste livro estará menos na premissa central, do que na forma como o
autor reemprega todo este manancial retirado de um universo já
formado para construir algo de novo, ou pelo menos com um novo
fôlego. E Ingá, em contraste com todos os outros volumes, é aquele
que mais surpreende no “desvio” operado pelo autor sobre a
matéria original. A reapropriação no caso de Piteco, uma
personagem que nos perguntamos se terá o mesmo “peso” que as
outras empregues até agora, pela parte de Shiko, é aquela que
parece moldar-se mais de acordo não com a moldura já existente
pelas décadas de produção de Mauricio e o seu estúdio mas com uma
vontade autoral.
Estas imagens são colocadas em estruturas classicizantes, em que as páginas apresentam composições regradas, legíveis, que asseguram acima de tudo o propósito narrativo dos elementos. Nesse aspecto, há toda uma dedicação ao programa, o que torna a leitura dinâmica e até mesmo célere.
Uma
das outras estratégias com que Shiko cria esse tal “desvio”, e que
tanto pode ser vista como interessante mas também como cliché hoje
em dia é a carta jogada da diversidade cultural
no interior da economia ou política da representação.
Shiko opta por uma abordagem algo estilizada e “ethnic-cool”, mas
tanto aberto a fantasias clássicas do género (de Tarzan
a Warlord)
como a uma sensibilidade política actual (com tribos etnicamente
diversificadas, uma distribuição não-simétrica entre sexos,
etc.). Esta atitude “corrige” aquela invisibilidade mencionada na
introdução a estes projectos, de certa forma.
Mas
a maior trouvaille
de Shiko está, claro, na integração da Pedra do Ingá, que é um
artefacto existente, situado na Paraíba, cidade nordestina. Ou seja,
encontra-se aqui um update
e transformação muito inteligente da personagem do Piteco – cujos
anacronismos funcionam na perfeição no seu contexto original, de
humor infantil, mas ganhando um outro peso actancial nesta versão
mais moderta e madura -, um aproveitamento de um legado cultural, até
pessoal, do autor, uma inscrição no tecido cultural-histórico real
do Brasil, e uma reelectrificação de um seu mistério. Esta Pedra,
espécie de muro com mais de vinte metros de comprimento e totalmente
coberta de petróglifos que ainda não foram decifrados, e que
parecem datar de há milhares de anos atrás (estudos contraditórios
apontam para um intervalo de 6 a 2 mil anos, o que é demasiado em
termos de margem de erro), constitui um desses mistérios que permite
não apenas teorias e posições científicas rivais (cruzamento
transatlântico de fenícios versus culturas autóctones) como as
mais expectáveis fantasias para-científicas (aliens,
what else?).
Shiko
não pretende de forma alguma aqui fazer uma proposta ancorada na
história, mas criar uma fantasia desabrida, que reemprega elementos
das histórias originais de Mauricio de Sousa, ou pelo menos os seus
ambientes e personagens, que integra essa Pedra de uma maneira
acabada.
Nota:
agradecimentos à Panini Brasil, a André Diniz, Pedro Franz, Maria
Clara Carneiro, e Sidney Gusman, pela ajuda em obter os livros, e
algumas outras questões. Escusado será dizer que nenhuma das nossas
posições e/ou leituras responsabiliza terceiros.
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