20 de abril de 2014

Turma da Mônica. Laços. Vitor Cafaggi e Lu Cafaggi (MSP/Panini).

Das versões vindas a lume neste projecto, Laços é aquele que tem angariado mais reacções emocionais da parte dos seus leitores. De certa forma, a conquista deste livro está menos do lado da sua estrutura narrativa, ou até mesmo da sua capacidade em reinventar estas personagens, do que na integração delas num esquema emocional relativamente diferente, talvez mais complexo, do que o usual, mas sobretudo importante pela sua relevância histórica, uma vez que se vem prender a mecanismos nostálgicos da geração dos seus criadores e leitores “principais”, que serão adultos que leram a Mônica nas suas infâncias, hoje distantes, mas que ressoam nos filhos, por exemplo. (mais)

Em primeiríssimo lugar, e na continuidade da expectável política “de homenagem” e “celebração”, o que acontece em Laços é uma manutenção da positividade destas personagens. É sempre tentador criar versões subversivas extremas com ícones desta estirpe. Impossível de ultrapassar em termos de fama, de personagem amada por várias gerações de crianças e adultos (não apenas de crianças que são agora adultos, mas de adultos que lêem essas produções enquanto adultos entretidos por elas), Mônica e seus companheiros podem surgir como representantes de uma certa ordem, até de um certo poder, que não se pode negar - basta pensar as vezes em que são empregues para publicidade de certos produtos ou mesmo nos manuais escolares para exemplificar e educar -, ordem e poder que apetecerá desmontar com os instrumentos suspeitos do costume: a pornografia, a violência extrema, o gore, o cruzamento com política contemporânea real, ou com géneros totalmente inesperados, sejam eles realistas e maduros sejam de outras paragens estilísticas que surgirão como disruptivos. Ou então expectáveis mas em tratamentos inesperados: se existem inúmeros casos de narrativas com super-heróis na MSP, não haverá certamente espaço para os tratamentos “maduros” que esse género tem conhecido nos últimos vinte anos ou mais. Portanto, apesar da fantasia proposta no blog Fora do Beiço (e seguramente que se poderia pensar em nomes mais experimentais que os gémeos), essa realidade não acontecerá oficialmente. Mas o que não falta são versões dessa natureza, como a curta tira de Daniel Lafayette ou esta imagem de uma hipotética Playboy.

Mas Laços não quer, de forma alguma, entregar-se a esses desvios. Quer antes confirmar a natureza “protegida” e “protectora” destas personagens. Mais uma vez recorrendo a mecanismos que têm a ver com uma certa nostalgia.

Algumas cenas são, como o prefácio e vários críticos repetidamente sublinham, mais decalcadas de textos cinematográficos da década de 1980 do que da própria matéria original das HQs, e arriscar-nos-íamos a dizer que, do cinema, será daquele mais conducente da cultura norte-americana do que a da brasileira propriamente dita. Afinal de contas, a existência de casas no topo de árvores, os bullys do outro bairro, as “clones da Mônica”, a paisagem urbana, a conversa sobre marshmellows em torno de uma fogueira nocturna, os lobos do parque-bosque, e até mesmo o bairro suburbano, são todos elementos que podem perfeitamente corresponder àqueles que existem no imenso território do Brasil, mas reconheceremos sem grandes dificuldades que são constantes de uma determinada tradição cinematográfica moderna. Se existem chamadas textuais (alguns dos “planos infalíveis” do Cebolinha, pequenas referências, como às “balas Bilula”) a aventuras anteriores das bandas desenhadas, à própria história “editorial” das personagens (como que apontando à possibilidade de uma “continuidade”), existem vários momentos e/ou referências que assinalam pontos de passagem a obras tais como Goonies (sobretudo), e, talvez, A Christmas Story, Stand by me, as animações de Don Bluth e até mesmo Neverending Story ou Labirinto (sobretudo no que diz respeito à ideia de demanda, e os contornos à la Sendak).

Claro, E.T. é também uma referência óbvia naquela que é construída de propósito para ser uma imagem central de Laços, quando a turma se lança nas bicicletas emprestadas (aliás, o primeiro título imaginado para o projecto, Meninos perdidos, remete precisamente para esse imaginário, que ainda assim resta na narrativa sob a forma das fantasias de Cebolinha e de Cascão do Peter Pan e Capitão Gancho). Apesar do encontro da turma com o homem que vive no jardim apontar à possibilidade de uma dimensão de fantasia, e a presença dos lobos quase fazer franquear as portas do género, todo o Laços se mantém no interior de algum grau de realismo urbano, doméstico, pequeno-burguês mesmo, o que não impede que as franjas da imaginação em roda livre das crianças não incuta um “sabor” especial e escapatório. Seja como for, Laços inscrever-se-á mais rapidamente numa aventura doméstica do que uma desabrida fantasia, e o toque brasileiro não deixa de estar ausente precisamente na forma como as pequenas personagens encontram modos de colaboração no seu fito comum e o modo como o entorno espacial é criado, a partir de um centro familiar e o território proibido, que tanto beberá de todos os contos tradicionais (a “floresta”) como do Sítio do Picapau Amarelo a O meu pé de laranja-lima.

Alguns elos narrativos não são totalmente claros, nunca ficando decidido se o Floquinho havia fugido e depois sido capturado pelo vendedor de sucata, mas esse tipo de informação não faz falta, se assim se pode dizer, uma vez que tudo é construído do ponto de vista das crianças, sendo mais importante a compreensão da perda, a mais importante decisão em o procurar e, finalmente, o encontro. Claro que tornando o próprio processo de busca, a aventura em si, o cerne de Laços.

Vitor Cafaggi é detentor de um traço de grande simplicidade, que parece permitir-lhe delinear as personagens de uma pincelada só, depois acrescentando textura e volumes através de poucas adições gráficas, e cor. A sua irmã Lu partilha muitas das características do seu trabalho, mantendo ainda mais vivas as abordagens de uma figuração suave e “querida”. Porém, o autor já havia feito projectos anteriores onde trazia uma mistura entre um desenho delicodoce, arredondado, enfatizado pelo emprego de animais antropomorfizados, e uma temática semi-realista sobre as relações amorosas, com a sua personagem Valente (3 volumes até à data, se não estamos em erro).

O modo como os autores gerem as várias analepses, desenhadas num estilo mais cute e num tratamento de cor a sépias e castanhos empoeirados por Lu Cafaggi, distende o tempo central da narrativa para toda uma comparticipação do tempo cronológico destas personagens, incutindo uma ideia de tecido contínuo, de cronologia real, que também está ausente da “linha principal” da Turma.

Há toda uma série de pequenas transformações gráficas (e narrativas) subtis em curso neste livro, e que se têm eco na própria história da produção MSP. Se o próprio Mauricio tinha uma abordagem simplificada para certo material nas tiras e primeiros livros, a verdade é que ele iria ganhar uma abordagem mais “cheia”, procurando pormenores na forma como criava a vegetação dos cenários e dos espaços, como nos casos das histórias do Chico Bento, do Horácio ou do Penadinho, mesmo depois de ter já sob a sua direcção uma equipa substancial de colaboradores, desde argumentistas a arte-finalistas e coloristas. Houve uma passagem da década de 1970 para a de 1980 em que as personagens se arredondaram, possivelmente pelas mãos da colaboradora Emy T. Y. Acosta (que viria também a contribuir de forma central para a versão Jovem). Existem outros nomes que surgem de quando em vez (como já havíamos debatido na introdução, mas repetimos aqui), e que parecem ter sido decisivos em determinados momentos, como o de Sérgio Tibúrcio Graciano - que criou uma forma de fazer os cabelos do Cascão com o dedo borrado de tinta, e que se tornaria modelar - ou o de Rosana Munhoz - cujos argumentos e toques pareciam ser nutridos por toques particularmente atentos de emoção e atenção para com a vida humana de certas personagens. Além disso, mas talvez expectável, encontraremos muitos membros da família próxima de Mauricio de Sousa envolvidos na companhia, desde os argumentos à gestão da parte empresarial. No entanto, na ausência de uma total clareza na atribuição dos trabalhos leva qualquer destas tentativas a estarem minadas à partida. Quem sabe, no futuro, talvez surja um projecto idêntico ao do Inducks em relação às produções MSP… Tudo isto contribui para a ideia de uma modulação e transformação interna do “estilo da casa” feita organicamente, pelos diálogos da empresa enquanto família e, em última instância, enquanto gesto de um só autor, uma só assinatura.

É ainda evidente quem, no nosso tempo presente, e no interior somente da economia de produção da própria MSP, temos acesso a, por um lado, vários estádios de desenvolvimento ou presença das personagens, via as publicações das tiras “clássicas”, as reedições dos primeiros números de cada revista, as edições comemorativas e antológicas, e por outro, as versões da Turma da Mônica Jovem, à mangá, a linha “regular” que ainda se mantém, e os desenhos animados, inclusive as versões “Toy”. Basta olhar para as capas dos volumes das tiras para vermos imediatamente uma curva de transformações nos estilos das personagens mais famosas, para se compreender que é um processo longo de procuras e de negociações, e não uma fórmula preservada para sempre. Mas agora, eis que surge mais esta linha de variação, e dupla: as “homenagens” e as “versões autorais”. Laços será uma versão autoral - já que procura salientar também preocupações perenes dos autores nas suas obras singulares - mas que tenta entrosar-se com essa história visual e narrativa das famosas personagens.

Houve também algumas mudanças que foram impostas, digamos, pelos ares do tempo, e por razões positivas. As personagens deixaram de brincar com armas, de pregarem partidas que, se fossem imitadas, seriam desastrosas, e até mesmo as “fórmulas” de se aborrecerem uns aos outros – que outro seria visto como formas de bullying, talvez – seriam matizadas até aos nossos dias.

Convidamos a verem a “resenha em quadrinhos” a Laços de Fábio Ochôa. O que se passa aqui? Será um retorno à leitura das produções originais da MSP? Não, pois esse tipo de aventuras não teve lugar jamais nesses materiais. Se fosse, por hipótese, a Disney, tínhamos os exemplos das histórias de Floyd Gottfredson com o Mickey ou as de Barks, que não são apenas aquelas que muitos leitores adultos da Almanaque Disney mais se recordam, mesmo sem saberem o nome dos artistas, como têm sido aquelas recuperadas pelos gestos memorializantes das colecções prestigiantes. Mas não é o caso. Só mais recentemente é que a MSP começou a criar material de narrativas mais alargadas e com alguns dos ingredientes narrativos necessários. O que sucede aqui é uma projecção falsa mas eficaz (como, claro está, toda a ilusão o é eficaz, ou não seria ilusão). Laços lança a turma da Mónica no que jamais teve lugar, ou faz ocupar uma fórmula ficcional com essas personagens. Cria, portanto, um espaço do que nunca foi mas se deseja agora (sublinhe-se esta última palavra várias vezes) que tivesse existido. A pior ilusão é se se julgam que essas personagens estão a regressar a um ponto que no fundo nunca existiu. Mas não é esse mesmo o mecanismo ilusório que constitui a nostalgia?

Nota: agradecimentos à Panini Brasil, a André Diniz, Pedro Franz, Maria Clara Carneiro, e Sidney Gusman, pela ajuda em obter os livros, e algumas outras questões. Escusado será dizer que nenhuma das nossas posições e/ou leituras responsabiliza terceiros. 

1 comentário:

José Sá disse...

Olá Pedro,

Não estou totalmente de acordo :-) com a tua definição de nostalgia. Gostaria, portanto :-D, de acrescentar que, da minha experiência, a ilusão produzida pela nostalgia resulta do esquecimento/afastamento das más memórias pela versão aumentada das boas (quase uma lei de Gresham). Quando alguém nos diz que a música de determinada década era muito melhor que na actual, tende a esquecer toda a má música produzida e reproduzida então, mas tem ainda muito presente a pimbalhice que se produz contemporaneamente e que abafa o que actualmente se faz de bom. Isto, pelo menos, acontece para aqueles (eu)que se esquecem que as décadas no passado tiveram sempre dez anos e não a duração do filme, livro ou documentário de onde filtraram a informação sobre elas. Daí a nostalgia que eu tenho ao pensar na década de 50 da Disney, da qual guardo somente as boas histórias do Carl Barks, da de 60 o traço do Alex Toth nas histórias do Zorro, da de 70 o Zé Carioca do Sindenberg e Canini e o "Pateta faz história" de não sei quantos. Já quanto à Mônica ;-), não há lugar à nostalgia perante a ausência de boas recordações... E mesmo pegando nesta reforma das personagens, como já te tinha comentado na tua entrada de há uns meses atrás prévia a esta abordagem aos 50 anos da MSP, este Laços revela os mesmos "probremas" (exemplar o que identificaste na história do Chico Bento) presentes nas histórias da Mônica da nossa infância.
Um Abraço,
José