Das
versões vindas a lume neste projecto, Laços é aquele que
tem angariado mais reacções emocionais da parte dos seus leitores.
De certa forma, a conquista deste livro está menos do lado da sua
estrutura narrativa, ou até mesmo da sua capacidade em reinventar
estas personagens, do que na integração delas num esquema emocional
relativamente diferente, talvez mais complexo, do que o usual, mas
sobretudo importante pela sua relevância histórica, uma vez que se
vem prender a mecanismos nostálgicos da geração dos seus criadores
e leitores “principais”, que serão adultos que leram a Mônica
nas suas infâncias, hoje distantes, mas que ressoam nos filhos, por
exemplo. (mais)
Em
primeiríssimo lugar, e na continuidade da expectável política “de
homenagem” e “celebração”, o que acontece em Laços é
uma manutenção da positividade destas personagens. É sempre
tentador criar versões subversivas extremas com ícones desta
estirpe. Impossível de ultrapassar em termos de fama, de personagem
amada por várias gerações de crianças e adultos (não apenas de
crianças que são agora adultos, mas de adultos que lêem essas
produções enquanto adultos entretidos por elas), Mônica e seus
companheiros podem surgir como representantes de uma certa ordem, até
de um certo poder, que não se pode negar - basta pensar as vezes em
que são empregues para publicidade de certos produtos ou mesmo nos
manuais escolares para exemplificar e educar -, ordem e poder que
apetecerá desmontar com os instrumentos suspeitos do costume: a
pornografia, a violência extrema, o gore, o cruzamento com
política contemporânea real, ou com géneros totalmente
inesperados, sejam eles realistas e maduros sejam de outras paragens
estilísticas que surgirão como disruptivos. Ou então expectáveis
mas em tratamentos inesperados: se existem inúmeros casos de
narrativas com super-heróis na MSP, não haverá certamente espaço
para os tratamentos “maduros” que esse género tem conhecido nos
últimos vinte anos ou mais. Portanto, apesar da fantasia proposta no blog Fora do Beiço (e seguramente que se poderia pensar em nomes mais experimentais que
os gémeos), essa realidade não acontecerá oficialmente. Mas o que
não falta são versões dessa natureza, como a curta tira de Daniel Lafayette ou esta
imagem de uma hipotética Playboy.
Mas
Laços não quer, de forma alguma, entregar-se a esses
desvios. Quer antes confirmar a natureza “protegida” e
“protectora” destas personagens. Mais uma vez recorrendo a
mecanismos que têm a ver com uma certa nostalgia.
Algumas
cenas são, como o prefácio e vários críticos repetidamente
sublinham, mais decalcadas de textos cinematográficos da década de
1980 do que da própria matéria original das HQs, e
arriscar-nos-íamos a dizer que, do cinema, será daquele mais
conducente da cultura norte-americana do que a da brasileira
propriamente dita. Afinal de contas, a existência de casas no topo
de árvores, os bullys do outro bairro, as “clones da
Mônica”, a paisagem urbana, a conversa sobre marshmellows
em torno de uma fogueira nocturna, os lobos do parque-bosque, e até
mesmo o bairro suburbano, são todos elementos que podem
perfeitamente corresponder àqueles que existem no imenso território
do Brasil, mas reconheceremos sem grandes dificuldades que são
constantes de uma determinada tradição cinematográfica moderna. Se
existem chamadas textuais (alguns dos “planos infalíveis” do
Cebolinha, pequenas referências, como às “balas Bilula”) a
aventuras anteriores das bandas desenhadas, à própria história
“editorial” das personagens (como que apontando à possibilidade
de uma “continuidade”), existem vários momentos e/ou referências
que assinalam pontos de passagem a obras tais como Goonies
(sobretudo), e, talvez, A Christmas Story, Stand by me,
as animações de Don Bluth e até mesmo Neverending Story ou
Labirinto (sobretudo no que diz respeito à ideia de demanda,
e os contornos à la Sendak).
Claro, E.T. é também uma
referência óbvia naquela que é construída de propósito para ser
uma imagem central de Laços, quando a turma se lança nas
bicicletas emprestadas (aliás, o primeiro título imaginado para o
projecto, Meninos perdidos, remete precisamente para esse
imaginário, que ainda assim resta na narrativa sob a forma das
fantasias de Cebolinha e de Cascão do Peter Pan e Capitão Gancho).
Apesar do encontro da turma com o homem que vive no jardim apontar à
possibilidade de uma dimensão de fantasia, e a presença dos lobos
quase fazer franquear as portas do género, todo o Laços se
mantém no interior de algum grau de realismo urbano, doméstico,
pequeno-burguês mesmo, o que não impede que as franjas da
imaginação em roda livre das crianças não incuta um “sabor”
especial e escapatório. Seja como for, Laços inscrever-se-á
mais rapidamente numa aventura doméstica do que uma desabrida
fantasia, e o toque brasileiro não deixa de estar ausente
precisamente na forma como as pequenas personagens encontram modos de
colaboração no seu fito comum e o modo como o entorno espacial é
criado, a partir de um centro familiar e o território proibido, que
tanto beberá de todos os contos tradicionais (a “floresta”) como
do Sítio do Picapau Amarelo a O meu pé de laranja-lima.
Alguns
elos narrativos não são totalmente claros, nunca ficando decidido
se o Floquinho havia fugido e depois sido capturado pelo vendedor de
sucata, mas esse tipo de informação não faz falta, se assim se
pode dizer, uma vez que tudo é construído do ponto de vista das
crianças, sendo mais importante a compreensão da perda, a mais
importante decisão em o procurar e, finalmente, o encontro. Claro
que tornando o próprio processo de busca, a aventura em si, o cerne
de Laços.
Vitor
Cafaggi é detentor de um traço de grande simplicidade, que parece
permitir-lhe delinear as personagens de uma pincelada só, depois
acrescentando textura e volumes através de poucas adições
gráficas, e cor. A sua irmã Lu partilha muitas das características
do seu trabalho, mantendo ainda mais vivas as abordagens de uma
figuração suave e “querida”. Porém, o autor já havia feito
projectos anteriores onde trazia uma mistura entre um desenho
delicodoce, arredondado, enfatizado pelo emprego de animais
antropomorfizados, e uma temática semi-realista sobre as relações
amorosas, com a sua personagem Valente (3 volumes até à
data, se não estamos em erro).
O
modo como os autores gerem as várias analepses, desenhadas num
estilo mais cute e num tratamento de cor a sépias e castanhos
empoeirados por Lu Cafaggi, distende o tempo central da narrativa
para toda uma comparticipação do tempo cronológico destas
personagens, incutindo uma ideia de tecido contínuo, de cronologia
real, que também está ausente da “linha principal” da Turma.
Há
toda uma série de pequenas transformações gráficas (e narrativas)
subtis em curso neste livro, e que se têm eco na própria história
da produção MSP. Se o próprio Mauricio tinha uma abordagem
simplificada para certo material nas tiras e primeiros livros, a
verdade é que ele iria ganhar uma abordagem mais “cheia”,
procurando pormenores na forma como criava a vegetação dos cenários
e dos espaços, como nos casos das histórias do Chico Bento, do
Horácio ou do Penadinho, mesmo depois de ter já sob a sua direcção
uma equipa substancial de colaboradores, desde argumentistas a
arte-finalistas e coloristas. Houve uma passagem da década de 1970
para a de 1980 em que as personagens se arredondaram, possivelmente
pelas mãos da colaboradora Emy T. Y. Acosta (que viria também a
contribuir de forma central para a versão Jovem). Existem
outros nomes que surgem de quando em vez (como já havíamos debatido
na introdução, mas repetimos aqui), e que parecem ter sido
decisivos em determinados momentos, como o de Sérgio Tibúrcio
Graciano - que criou uma forma de fazer os cabelos do Cascão com o
dedo borrado de tinta, e que se tornaria modelar - ou o de Rosana
Munhoz - cujos argumentos e toques pareciam ser nutridos por toques
particularmente atentos de emoção e atenção para com a vida
humana de certas personagens. Além disso, mas talvez expectável,
encontraremos muitos membros da família próxima de Mauricio de
Sousa envolvidos na companhia, desde os argumentos à gestão da
parte empresarial. No entanto, na ausência de uma total clareza na
atribuição dos trabalhos leva qualquer destas tentativas a estarem
minadas à partida. Quem sabe, no futuro, talvez surja um projecto
idêntico ao do Inducks em relação às produções MSP… Tudo isto
contribui para a ideia de uma modulação e transformação interna
do “estilo da casa” feita organicamente, pelos diálogos da
empresa enquanto família e, em última instância, enquanto gesto de
um só autor, uma só assinatura.
É
ainda evidente quem, no nosso tempo presente, e no interior somente
da economia de produção da própria MSP, temos acesso a, por um
lado, vários estádios de desenvolvimento ou presença das
personagens, via as publicações das tiras “clássicas”, as
reedições dos primeiros números de cada revista, as edições
comemorativas e antológicas, e por outro, as versões da Turma da
Mônica Jovem, à mangá, a linha “regular” que ainda se
mantém, e os desenhos animados, inclusive as versões “Toy”.
Basta olhar para as capas dos volumes das tiras para vermos
imediatamente uma curva de transformações nos estilos das
personagens mais famosas, para se compreender que é um processo
longo de procuras e de negociações, e não uma fórmula preservada
para sempre. Mas agora, eis que surge mais esta linha de variação,
e dupla: as “homenagens” e as “versões autorais”. Laços
será uma versão autoral - já que procura salientar também
preocupações perenes dos autores nas suas obras singulares - mas
que tenta entrosar-se com essa história visual e narrativa das
famosas personagens.
Houve
também algumas mudanças que foram impostas, digamos, pelos ares do
tempo, e por razões positivas. As personagens deixaram de brincar
com armas, de pregarem partidas que, se fossem imitadas, seriam
desastrosas, e até mesmo as “fórmulas” de se aborrecerem uns
aos outros – que outro seria visto como formas de bullying,
talvez – seriam matizadas até aos nossos dias.
Convidamos
a verem a “resenha em quadrinhos” a Laços de Fábio Ochôa. O
que se passa aqui? Será um retorno à leitura das produções
originais da MSP? Não, pois esse tipo de aventuras não teve lugar
jamais nesses materiais. Se fosse, por hipótese, a Disney, tínhamos
os exemplos das histórias de Floyd Gottfredson com o Mickey ou as de
Barks, que não são apenas aquelas que muitos leitores adultos da
Almanaque Disney mais se recordam, mesmo sem saberem o nome
dos artistas, como têm sido aquelas recuperadas pelos gestos
memorializantes das colecções prestigiantes. Mas não é o caso. Só
mais recentemente é que a MSP começou a criar material de
narrativas mais alargadas e com alguns dos ingredientes narrativos
necessários. O que sucede aqui é uma projecção falsa mas eficaz
(como, claro está, toda a ilusão o é eficaz, ou não seria
ilusão). Laços lança a turma da Mónica no que jamais teve
lugar, ou faz ocupar uma fórmula ficcional com essas personagens.
Cria, portanto, um espaço do que nunca foi mas se deseja agora
(sublinhe-se esta última palavra várias vezes) que tivesse
existido. A pior ilusão é se se julgam que essas personagens estão
a regressar a um ponto que no fundo nunca existiu. Mas não é esse
mesmo o mecanismo ilusório que constitui a nostalgia?
Nota:
agradecimentos à Panini Brasil, a André Diniz, Pedro Franz, Maria
Clara Carneiro, e Sidney Gusman, pela ajuda em obter os livros, e
algumas outras questões. Escusado será dizer que nenhuma das nossas
posições e/ou leituras responsabiliza terceiros.
1 comentário:
Olá Pedro,
Não estou totalmente de acordo :-) com a tua definição de nostalgia. Gostaria, portanto :-D, de acrescentar que, da minha experiência, a ilusão produzida pela nostalgia resulta do esquecimento/afastamento das más memórias pela versão aumentada das boas (quase uma lei de Gresham). Quando alguém nos diz que a música de determinada década era muito melhor que na actual, tende a esquecer toda a má música produzida e reproduzida então, mas tem ainda muito presente a pimbalhice que se produz contemporaneamente e que abafa o que actualmente se faz de bom. Isto, pelo menos, acontece para aqueles (eu)que se esquecem que as décadas no passado tiveram sempre dez anos e não a duração do filme, livro ou documentário de onde filtraram a informação sobre elas. Daí a nostalgia que eu tenho ao pensar na década de 50 da Disney, da qual guardo somente as boas histórias do Carl Barks, da de 60 o traço do Alex Toth nas histórias do Zorro, da de 70 o Zé Carioca do Sindenberg e Canini e o "Pateta faz história" de não sei quantos. Já quanto à Mônica ;-), não há lugar à nostalgia perante a ausência de boas recordações... E mesmo pegando nesta reforma das personagens, como já te tinha comentado na tua entrada de há uns meses atrás prévia a esta abordagem aos 50 anos da MSP, este Laços revela os mesmos "probremas" (exemplar o que identificaste na história do Chico Bento) presentes nas histórias da Mônica da nossa infância.
Um Abraço,
José
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